O Menino de Sua Mãe
No plano abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Poemas sobre Dois
195 resultadosA Casa Branca Nau Preta
Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se…
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro…
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora…
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim…
Há uma interrupção lateral na minha consciência…
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par…
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma…Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois…
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem…
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir…As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho…Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Sombras da Madrugada
Vi uma sombra bem unida
a dela e a tua
e a minha sombra já esquecida
surpreendida
parou na rua!
os dois bem juntos, tu e ela
nenhum reparou
que a outra sombra era daquela
que tu não queres
mas já te amou!É madrugada não importa
neste silêncio há mais verdade
a noite é triste e tão sózinha
parece minha
toda a cidade!
nem um cigarro me conforta
nem o luar hoje me abraça
eu não te encontrarei jamais
e nestas noites sempre iguais
sou mais uma sombra que passa
sombra que passa e nada mais.Ao longo desta madrugada
a sombra da vida
mora nas pedras da calçada
já não tem nada
anda perdida
quando a manhã, desce enfeitada
no sol, que a procura
nem sabe quanto a madrugada
chora baixinho
tanta amargura!
Carta (Esboço)
Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo,
Não Posso Adiar o Amor
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentasNão posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódioNão posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertaçãoNão posso adiar o coração
Não!
Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio:
Mas ouve-me, receio
Tomar-te desgraçada:
O homem, minha amada,
Não perde nada, goza;
Mas a mulher é rosa…
Sim, a mulher é flor!Ora e a flor, vê tu
No que ela se resume…
Faltando-lhe o perfume,
Que é a essência dela,
A mais viçosa e bela
Vê-a a gente e… basta.
Sê sempre, sempre, casta!
Terás quanto possuo!Terás, enquanto a mim
Me alumiar teu rosto,
Uma alma toda gosto,
Enlevo, riso, encanto!
Depois terás meu pranto
Nas praias solitárias…
Ondas tumultuárias
De lágrimas sem fim!À noite, que o pesar
Me arrebatar de cada,
Irei na campa rasa
Que resguardar teus ossos,
Ah! recordando os nossos
Tão venturosos dias,
Fazer-te as cinzas frias
Ainda palpitar!Mil beijos, doce bem,
Darei no pó sagrado,
Em que se houver tornado
Teu corpo tão galante!
Com pena, minha amante,
De não ter a morte
Caído a mim em sorte…
Caído em mim também!
Sociedade
O homem disse para o amigo:
— Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
— Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.No caminho o homem resmunga:
— Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: — Que idiota.— A casa é um ninho de pulgas.
— Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
Quando Analiso a Conquistada Fama
Quando analiso
a conquistada fama dos heróis
e as vitórias dos grandes generais,
não sinto inveja desses generais
nem do presidente na presidência
nem do rico na sua vistosa mansão;
mas quando eu ouço falar
do entendimento fraterno entre dois amantes,
de como tudo se passou com eles,
de como juntos passaram a vida
através do perigo, do ódio, sem mudança
por longo e longo tempo atravessando
a juventude e a meia-idade e a velhice
sem titubeios, de como leais
e afeiçoados se mantiveram
— aí então é que eu me ponho pensativo
e saio de perto à pressa
com a mais amarga inveja.
A Vida
Ó grandes olhos outomnaes! mysticas luzes!
Mais tristes do que o amor, solemnes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d’Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n’um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!Ó Quarta-feira de Trevas!
Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que allumiaes os prezos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outomnaes, cheios de Graça!
Olhos accezos como altares de novena!
Olhos de genio, aonde o Bardo molha a penna!
Ó carvões que accendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas…
Ó pharolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pyrilampos a allumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligencia pela serra!
Ó Extrema-Uncção final dos que se vão da Terra!
Ó janellas de treva, abertas no teu rosto!
Thuribulos de luar! Luas-cheias d’Agosto!
Luas d’Estio! Luas negras de velludo!
Ó luas negras,
O que se Prende no Tempo
O que se prende no tempo
é do tempo a árvore crua um ídolo sem desejos
e os órfãos feitos de um osso apenasEntre duas crianças amestradas entre duas
moléculas frondosas
de quem tirei os segredos
Nevermore
Ah, lembrança, lembrança, que me queres? O Outono
Fazia voar os tordos plo ar desmaiadoE o sol dardejava um monótono raio
No bosque amarelado onde a nortada ecoa.A sonhar caminhávamos os dois, a sós,
Ela e eu, pensamento e cabelos ao vento.
De repente, fitou-me em olhar comovente:
«Qual foi o teu mais belo dia?» disse a vozDe oiro vivo, sonora, em fresco timbre angélico.
Um sorriso discreto deu-lhe a minha réplica
E então, como um devoto, beijei-lhe a mão branca.— Ah! as primeiras flores, como são perfumadas!
E como em nós ressoa o murmúrio vibrante
Desse primeiro sim dos lábios bem-amados!Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Só nós dois
Só nós dois é que sabemos
O quanto nos queremos bem
Só nós dois é que sabemos
Só nós dois e mais ninguém
Só nós dois avaliamos
Este amor, forte, profundo…
Quando o amor acontece
Não pede licença ao mundoAnda, abraça-me… beija-me
Encosta o teu peito ao meu
Esqueça o que vai na rua
Vem ser meu, eu serei tua
Que falem não nos interessa
O mundo não nos importa
O nosso mundo começa
Ca; dentro da nossa porta.Só nós dois é que sabemos
O calor dos nossos beijos
Só nós dois é que sofremos
As torturas dos desejos
Vamos viver o presente
Tal-qual a vida nos dá
O que reserva o futuro
Só Deus sabe o que será.
Ode a Lídia
Esta súbita chuva que desaba
pela pele morena
de teu rosto
por teu riso por teus ombros
pelos teus longos
cabelos
cai na terra
— ouve bem —com o peso, o
doce peso de miléniosPois verdade é que outra
é a água
mas a mesma
(escorrendo pela
gloriosa nudez
de teu corpo)
mesmo o cheiro húmido
da terra, mesmo
nas árvores
o áspero, esperado canto
de verãoTudo, nada mudou
Pois verdade é que outra
é a água
mas a mesma
(escorrendo pela
gloriosa nudez
de teu corpo)
mesmo o cheiro húmido
da terra, mesmo
nas árvores
o áspero, esperado canto
de verãoTudo, nada mudou
Bebe pois desta água
bebe
bebe com todo o teu corpo
até que toda te farte
bebe
até que te embriague
a milenar
experiência
do planetaBebe e
(sábia)
colhe nas mãos o momento
que esvoaça
— este breve momento em que
como duas crianças
somos
e amamos
Retrato do Artista em Cão Jovem
Com o focinho entre dois olhos muito grandes
por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentosaqui estás tal qual
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra
Os Justos
Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Campainhada
As duas ou três vezes que me abriram
A porta do salão onde está gente,
Eu entrei, triste de mim, contente –
E à entrada sempre me sorriram…
Posfácio à Toca do Lobo
– Pai, vem da morte e vamos às perdizes.
Vejo a aurora, que tinge do seu rajo
de dente a dente a Serra de Soajo…
– Ciprestes, desatai-o das raízes!– Este Inverno as perdizes estão em barda:
criaram-se as ninhadas sem granizo.
Vamos chumbar dos perdigões o guizo,
anda matar securas da espingarda.A tua Holland… O animal de presa…
O azul brunido… Velha e como nova…
Bem a merecias a alegrar-te a cova.
Penou-te de saudades, com certeza.Aqui a tens. Porque era ver-te, olhá-la,
sequer um dia que não fosse vê-la.
Olha deluz-se a derradeira estrela,
já folga a luz no lustra aqui da sala.Trinta anos depois, caçar contigo,
e sempre conversando e à chalaça…
Mais que perdizes, hoje, melhor caça
É matar fomes do caçar antigo.Ver-te sorrir à escapatória sonsa
da velha que não viu «perdiz nem chasco!»
E o Lorde a anunciá-la sob o fasco,
e tu lambendo o cigarrinho de onça…Ó pai, se não vivias há trinta anos,
também há trinta eu não vivia,
Já quasi até Morria
Já quasi até morria
C’os olhos nos da amada.
E ela que se sentia
Não menos abrasada:
– “Ai, caro Atfes! – dizia –
Não morras inda, espera
Que eu contigo morrer também quisera”
A ânsia com que acabava
A vida, Atfes, refreia,
E, enquanto a dilatava,
Morte maior o anseia.
Os olhos não tirava
Dos do ídolo querido,
Nos quais bebia o Néctar diluído.Quando a gentil Pastora,
Sentindo já chegada
Do doce gosto a hora,
Com a vista perturbada
Disse, tremendo: – “Agora
Morre, que eu morro, amor”
– “E eu – disse ele – contigo”
Viram-se desta sorte
Os dois finos amantes
Mortos ambos de um tal corte;
E os golpes penetrantes
Desta casta de morte
Tanto lhe agradaram,
Que para mais morrer recuscitaram.
Agora Mesmo
Está gente a morrer agora mesmo em qualquer lado
Está gente a morrer e nós tambémEstá gente a despedir-se sem saber que para
Sempre
Este som já passou Este gesto também
Ninguém se banha duas vezes no mesmo instante
Tu próprio te despedes de ti próprio
Não és o mesmo que escreveu o verso atrás
Já estás diferente neste verso e vais com eleOs amantes agarram-se desesperadamente
Eis como se beijam e mordem e por vezes choram
Mais do que ninguém eles sabem que estão a
[despedir-seA Terra gira e nós também A Terra morre e nós
Também
Não é possível parar o turbilhão
Há um ciclone invisível em cada instante
Os pássaros voam sobre a própria despedida
As folhas vão-se e nós
Também
Não é vento É movimento fluir do tempo amor e morte
Agora mesmo e para todo o sempre
Amen
Assim a Casa Seja
Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nadaVoltaste, já voltaste
Já entras como sempre
Abrandas os teus passos
E paras no tapeteEntão que uma luz arda
E assim o fogo aqueça
Os dedos bem unidos
Movidos pela pressa.Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nada
Voltaste, já voltei
Também cheia de pressa
De dar-te, na parede
O beijo que me peçasEntão que a sombra agite
E assim a imagem faça
Os rostos de nós dois
Unidos pela graça.Amor, é muito cedo
E tarde uma palavra
A noite uma lembrança
Que não escurece nadaAmor, o que será
Mais certo que o futuro
Se nele é para habitar
A escolha do mais puroJá fuma o nosso fumo
Já sobra a nossa manta
Já veio o nosso sono
Fechar-nos a garganta.Então que os cílios olhem
E assim a casa seja
A árvore do Outono
Coberta de cereja.