Dentes
Os dentes, porque são dentes,
iniciais. Na espuma,
porque não são saliva
estas ondas
pouco mordentes; este
sal que sobe quase
doce; donde?Numa espécie
de fogo: amor é fogo
que arde sem se ver;
porque não é
de facto fogo este frio aceso;
da saliva à lava
passa pela espuma.Só os dentes.
Duros, ácidos, concentram-se
tacteando a pele,
tatuando signos sempre
moventes
de fúria. Mordida
a pele cintila; espelho
dos dentes, do seu esmalte voraz;
suavemente.
Passagens sobre Sal
91 resultadosOlhar
As grades que me prendem são teus olhos,
aquática prisão, cela telúrica,
liana que me enrosca e me desfolha
no tronco tosco dessa árvore lúbrica.No sol de Gláucia apenas me recolho
e, sendo assim, o sido se faz público
num pelourinho aberto com seus folhos
zurzindo seu chicote em gestos lúdicos.Perau de feras, circo de centelha
regendo as águas tépidas de escamas
no fogo da (a)ventura da parelha.Tudo em suor e sal o amor proclama:
No mar do teu olhar a onda se espelha
na chama que me queima e que te inflama.
XXIX
Por tanto tempo, desvairado e aflito,
Fitei naquela noite o firmamento,
Que inda hoje mesmo, quando acaso o fito,
Tudo aquilo me vem ao pensamento.Sal, no peito o derradeiro grito
Calcando a custo, sem chorar, violento…
E o céu fulgia plácido e infinito,
E havia um choro no rumor do vento…Piedoso céu, que a minha dor sentiste!
A áurea esfera da lua o ocaso entrava.
Rompendo as leves nuvens transparentes;E sobre mim, silenciosa e triste,
A via-láctea se desenrolava
Como um jorro de lágrimas ardentes.
O sal da vida é a amizade.
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Amo-te Sem Saber Como
Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou seta de cravos que propagam o fogo:
amo-te como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.Amo-te como a planta que não floriu e tem
dentro de si, escondida, a luz das flores,
e, graças ao teu amor, vive obscuro em meu corpo
o denso aroma que subiu da terra.Amo-te sem saber como, nem quando, nem onde,
amo-te directamente sem problemas nem orgulho:
amo-te assim porque não sei amar de outra maneira,a não ser deste modo em que nem eu sou nem tu és,
tão perto que a tua mão no meu peito é minha,
tão perto que os teus olhos se fecham com meu sono.
Farto de voar
Farto de voar
Pouso as palavras no chão
Entro no mar
Sinto o sal de mão em mão
Tenho um barco na vida espetado
Só suspenso por fios dum lado
E do outro a cair
a cair
no arpão
no arpãoLevo a dormir
Sonhos que andei para trás
Ergo o porvir
Trago nos bolsos a paz
Tenho um corpo na morte espetado
Só suspenso por balas de um lado
E do outro a escapar
a escapar
de raspão
de raspãoPonho a girar
Cantos que ninguém encerra
De par em par
Abro as janelas para a terra
Tenho um quarto na fome espetado
Só suspenso por água de um lado
E de outro a cair
a cair
no alçapão
no alçapãoFarto de voar
Pouso as palavras no chão
Entro no mar
Sinto o sal de mão em mão
Tenho um barco na vida espetado
Só suspenso por fios dum lado
E do outro a cair
a cair
no arpão
no arpão
As verdades são amargas e bebem-se gota a gota. Mas a mentira, que nos lisonjeia como se fôssemos o sal da terra, engolimo-la às golfadas.
Apocalipse
Porque a lua é branca e a noite
é simples anúncio da aurora;
e porque o mar é o mar apenas
e a fonte não canta nem chora;e porque o sal se decompõe
e são de água e carvão as rosas,
e a luz é simples vibração
que excita células nervosas;e porque o som fere os ouvidos
e o vento canta na harpa eólia;
e porque a terra gera os áspides
entre a papoula e magnólia;e porque o trem já vai partir
e o corvo nos diz never more;
e porque devemos sorrir
antes que o crepúsculo descore;e porque ontem já não existe
e o que há de vir não mais virá,
e porque estamos num balé
sobre o estopim da Bomba H:não marcharemos contra o muro
das lamentações, prantear
a frustração de tudo o que
sonhamos ousar, sem ousar.Títeres mudados em gnomos,
enfrentemos o Apocalipse
como pilotos da tormenta
entre o terremoto e o eclipse.Vamos dançar sobre o convés
enquanto o barco não aderna;
Sede
Boca invisível
na flor da boca,
lábios rachados
de sol e sal,
de folha e palha.
Língua de brasa
queima a garganta;
voz abafada,
som que farfalha.
As cimitarras
voam ao vento,
cortam papéis
(brancas mortalhas).
Ossos ressecos
feitos de pó,
baixos-relevos
no chão gretado.
Rente à corrente
de águas que fervem
alço o meu corpo
círio fanado,
chama indecisa
que arde tão só.
A Luz que Vem das Pedras
A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?
A Guerra
Musa, pois cuidas que é sal
o fel de autores perversos,
e o mundo levas a mal,
porque leste quatro versos
de Horácio e de Juvenal,Agora os verás queimar,
já que em vão os fecho e os sumo;
e leve o volúvel ar,
de envolta como turvo fumo,
o teu furor de rimar.Se tu de ferir não cessas,
que serve ser bom o intento?
Mais carapuças não teças;
que importa dá-las ao vento,
se podem achar cabeças?Tendo as sátiras por boas,
do Parnaso nos dois cumes
em hora negra revoas;
tu dás golpes nos costumes,
e cuidam que é nas pessoas.Deixa esquipar Inglaterra
cem naus de alterosa popa,
deixa regar sangue a terra.
Que te importa que na Europa
haja paz ou haja guerra?Deixa que os bons e a gentalha
brigar ao Casaca vão,
e que, enquanto a turba ralha,
vá recebendo o balcão
os despojos da batalha.Que tens tu que ornada história
diga que peitos ferinos,
Lusíada Exilado
Nem batalhas nem paz: obscura guerra.
Dói-me um país neste país que levo.
Sou este povo que a si mesmo se desterra
meu nome são três sílabas de trevo.Há nevoeiro em mim. Dentro de abril dezembro.
Quem nunca fui é um grito na memória.
E há um naufrágio em mim se de quem fui me lembro
há uma história por contar na minha história.Trago no rosto a marca do chicote.
Cicatrizes as minha condecorações.
Nas minhas mãos é que é verdade D. Quixote
trago na boca um verso de Camões.Sou este camponês que foi ao mar
lavrou as ondas e mondou a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma.Sou este marinheiro que ficou em terra
lavrando a mágoa como se lavrar
não fosse mais do que a perdida guerra
entre o não ser na terra e o ser no mar.Eu que parti e que fiquei sempre presente
eu que tudo mandava e nunca fui senhor
eu que ficando estive sempre ausente
eu que fui marinheiro sendo lavrador.
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal
Estar no Mundo
Ao corpo colados a silenciosas
colunas de sal pavimentados eis os muros
paralelos eis as rápidas deformações da
linguagem (cálido ascetismo)
de quem arde por dentro — estar no mundo
é teu caminho estar na cólera
lavrada
e sobre si mesma dobrada e a guerra
mastigar a morte seca a subalimentada
explosão do corpo deformações suicídio
quotidiano — tal a poesia
se reflecte na luz a erosão do poema
o apodrece e movimenta— cinza mineral
entre restos de música e pão —
Senhora I
No calmo colo pouso meus segredos
Senhora que sabeis minhas fraquezas.
convoco só convosco o que antecedo
na lira ensimesmada da incerteza.Não sei se o vero verso do degredo
vem albergado ou presa de represa
das frias águas íntimas do medo
lavando o frágil lado da tristeza.A depressiva face não mostrada
esplende em vosso espelho que me abriga
lambendo o sal dos olhos da geada.Águas que são do orvalho da fadiga
de recorrentes gotas espalhadas
regando as vossas mãos de amada e amiga
Era um Pássaro Alto
Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.
Essa Chuva de Inverno
Essa chuva de inverno, que fluía
por entre a verde várzea derramada,
já não flui sua linfa em terra fria,
que quente está do sal de que é salgada.
Aqui eterna é a chuva, e não se adia,
e a mudança das coisas proclamada:
só a terra de fértil não vê dia,
que só a água em mágoa vê mudada.
Aqui, de malogradas esperanças,
vive o povo sem crença em tais mudanças,
no fecundo milagre dessa guerra
— que, estando a Natureza em guerra tanta,
não nos transforma a chuva o pranto em planta,
e mais se chore, é mais salgada a terra!
Todos Amam Precisamente o que lhes Falta
Todos amam precisamente o que lhes falta. A escolha individual, que se funda nessas considerações meramente relativas, é bem mais determinada, mais decidida e mais exclusiva do que a escolha que se baseie em considerações absolutas; é desses aspectos relativos que vulgarmente nasce o amor de paixão, enquanto os amores comuns e passageiros só são guiados por considerações absolutas. Nem sempre é a beleza regular e perfeita que dá origem às grandes paixões. Para uma inclinação verdadeiramente apaixonada é necessária uma condição que só nos é possível descrever através de uma metáfora tirada à química. As duas pessoas devem neutralizar-se uma à outra, tal como um ácido e uma base alcalina num sal neutro.
A riqueza é como o sal. Só serve para temperar.