Uma Obediência Passiva
O homem, bobo da sua aspiração, sombra chinesa da sua ânsia inútil, segue, revoltado e ignóbil, servo das mesmas leis químicas, no rodar imperturbável da Terra, implacavelmente em torno a um astro amarelo, sem esperança, sem sossego, sem outro conforto que o abafo das suas ilusões da realidade e a realidade das suas ilusões. Governa estados, institui leis, levanta guerras; deixa de si memórias de batalhas, versos, estátuas e edifícios. A Terra esfriará sem que isso valha. Estranho a isso, estranho desde a nascença, o soI um dia, se alumiou, deixará de alumiar; se deu vida, dará a si a morte. Outros sistemas de astros e de satélites darão porventura novas humanidades; outras espécies de eternidades fingidas alimentarão almas de outra espécie; outras crenças passarão em corredores longínquos da realidade múltipla. Cristos outros subirão em vão a novas cruzes. Novas seitas secretas terão na mão os segredos da magia ou da Cabala. E essa magia será outra, e essa Cabala diferente. Só uma obediência passiva, sem revoltas nem sorrisos, tão escrava como a revolta, é o sistema espiritual adequado à exterioridade absoluta da nossa vida serva.
Álvaro de
Passagens sobre Servos
50 resultadosQuem não critica o que crê não lapidará suas crenças, quem não lapida suas crenças será será servo de suas verdades. E se suas verdades forem doentias,certamente será uma pessoa doente.
Os servos nunca sentem tanta falta do primeiro senhor como quando experimentam o segundo.
O amor e a admiração só tem profundidade se forem espontâneos, caso contrário produziremos servos e não pessoas livres para decidir.
Estes Homens
estes homens
abrem as portas
do sol nascenteconhecem os íntimos latejos
da cal as soltas águas
os fermentos as uvas
os cílios discretos do pãoamam as urzes e as fontes
o suor dos fenos
a febre moira de um corpo
de mulherestes homens
partem a pedra
com martelos de solidão
(os olhos abismados
nos goivos
da lonjura)erguem as paredes
as janelas crepusculares
as asfaimadas antenas das cidades:
céu de cimento; baba remota
do cansaçoestes homens
tamisam cores: viajam nos navios
pescam no cisco das pérolas
do vidro
são garimpeiros
de uma esponja
de coralmoldam nas forjas
as sílabas secretas
do ferro
afeiçoam os seixos e o linho
o bafo marítimo
das palavrasestes homens
dizem casa com dezembro
nas veias
ternura com a sede de uma seara
grávida
assobiam comovidos contra as sombras
trazem na algibeira
o trevo rugoso das cantigasestes homens:
guardadores de cabras
e de mágoas
de espantos e revoltas
servos emigrantes
contrabandistas
soldados andarilhos do mar
carabineiros da má sorte
trepadores das sete colinas
operários
azeitoneiros
ratinhos
levantam por maio
os cantis do lume: voz de musgo
concha entreaberta
estes homens
(pátria viva;
Amo-te como um Planeta em Rotação Difusa
Amo-te como um planeta em rotação difusa
E quero parar como o servo colado ao chão.
Frágil cerâmica de poros soprados no teu hálito
Vasilha que ergues em tua mão de oleiro
Cálice que não pudeste afastar de ti.
Se eu perder minha capacidade de criticar serei uma serva da teoria e não uma serva da humanidade.
Tristissima
N’um paiz longe, secreto,
Lendaria ilha affastada,
Jaz todo o dia sentada
N’um throno de marmor preto.No seu palacio esculpido
Não entram constellações;
Os tectos dos seus sallões
São todos d’ouro polido!Nas largas escadarias
Sobem vassallos ao cento,
De noute suluça o vento
N’aquellas tapeçarias.E pelas largas janellas
Fechadas, sempre corridas,
Ha flores desconhecidas
Que não olham as estrellas.Na dextra segura um calix,
– Calix da Dôr e da Magoa!
Onde está contida a agoa
E o sangue dos nossos males!Pelas florestas sosinhas
Escuras, sem rouxinoes,
Erram chorando os Heroes,
E as desgraçadas Rainhas.Seguida, á noute, de servas,
Caminha, em cortejo mudo,
Rojando o negro velludo
De seu cabello nas hervas.Sómente ao vel-a passar
Ficam as almas surprezas;
– Ha todo um mar de tristezas
No abismo do seu olhar!
Donos dão e servos choram.
Meu Camarada e Amigo
Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigoAs canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
— mas um poeta só fala
por sofrimento total!Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.