Água
O líquido delgado e transparente
Com que o barro amassou o Autor sob’rano,
Da insigne construção do corpo humano,
Que temperas do home o fogo ardente!Quando a chama se ateia em continente
Tu corres a sustar o nosso dano:
Tu desabafo és do mal tirano,
Que ataca o coração, soltando a enchente.Quando tu pelos poros és filtrada,
Água que o fogo aquece, a calma fica
Da máquina acendida, refrescada.Porém, quando o suor gela na bica,
Quando o frio te torna condensada,
Nossa queda final se verifica.
Sonetos sobre Corpo
194 resultadosQuatro Sonetos De Meditação – IV
Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dormeEnorme. E como o mar denro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.
Sonho Branco
Não pairas mais aqui. Sei que distante
Estás de mim, no grêmio de Maria
Desfrutando a inefável alegria
Da alta contemplação edificante.Mas foi aqui que ao sol do eterno dia
Tua alma, entre assustada e confiante,
Viu descender à paz purificante
Teu corpo, ainda cansado da agonia.Senti-te as asas de anjo em mesto arranco
Voejar aqui, retidas pelo aceno
Do irmão, saudoso de teu riso franco.Quarenta anos lá vão. De teu moreno
Encanto hoje resta? O eco pequeno,
Pequeno de teu sonho – um sonho branco!
A Morte, Que Da Vida O Nó Desata
A Morte, que da vida o nó desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na Ausência, que é contr’ ele espada fera,
e co Tempo, que tudo desbarata.Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.Mas mostre a sua imperial potência
a Morte em apartar dum corpo a alma,
duas num corpo o Amor ajunte e una;porque assi leve triunfante a palma,
Amor da Morte, apesar da Ausência,
do Tempo, da Razão e da Fortuna.
Aquela Que, De Pura Castidade
Aquela que, de pura castidade,
de si mesma tomou cruel vingança
por üa breve e súbita mudança,
contrária a sua honra e qualidade(venceu à fermosura a honestidade,
venceu no fim da vida a esperança
porque ficasse viva tal lembrança,
tal amor, tanta fé, tanta verdade!),de si, da gente e do mundo esquecida,
feriu com duro ferro o brando peito,
banhando em sangue a força do tirano.[Oh!] estranha ousadia ! estranho feito !
Que, dando breve morte ao corpo humano,
tenha sua memória larga vida!
Domicílio
… O apartamento abria
janelas para o mundo. Crianças vinham
colher na maresia essas notícias
da vida por viver ou da inconscientesaudade de nós mesmos. A pobreza
da terra era maior entre os metais
que a rua misturava a feios corpos,
duvidosos, na pressa. E de terraçoem solitude os ecos refluíam
e cada exílio em muitos se tornava
e outra cidade fora da cidadena garra de um anzol ia subindo,
adunca pescaria, mal difuso,
problema de existir, amor sem uso.
Ofélia
Num recesso da selva ínvia e sombria,
Estrelada de flores, vicejante,
Onde um rio entre seixos, espumante,
Cursando o vale, túrgido, fluía;A coma esparsa, lívido o semblante,
Desvairados os olhos, como fria
Aparição dos túmulos, um dia
Surgiu de Hamlet a lacrimosa amante;Símplices flores o seu porte lindo
Ornavam… como um pranto, iam caindo
As folhas de um salgueiro na corrente…E na corrente ela também tombando,
Foi-se-lhe o corpo alvíssimo boiando
Por sobre as águas indolentemente.
Salomé
Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo,
Luz morta de luar, mais Alma do que a lua…
Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua,
Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo…Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas…
O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou…
Tenho frio… Alabastro!… A minh’Alma parou…
E o seu corpo resvala a projectar estátuas…Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me,
Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto…
Timbres, elmos, punhais… A doida quer morrer-me:Mordoura-se a chorar–ha sexos no seu pranto…
Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me
Na bôca imperial que humanisou um Santo…
Noite
Há na expressão do céu um mágico esplendor
e em êxtase sensual, a terra está vencida…
– deixa enlaçar-te toda… A sombra nos convida,
e uma noite como esta é feita para o amor…Assim… – Fica em meus braços, trêmula e esquecida,
e dá-me do teu corpo esse estranho calor,
– ao pólen que dá vida, em fruto faz-se a flor,
e o teu corpo é uma flor que não conhece a vida…Há sussurros pelo ar… Há sombras nos caminhos…
E à indiscrição da Lua, em seu alto mirante,
encolhem-se aos casais, os pássaros nos ninhos…Astros fogem no céu… ninguém mais pode vê-los…
procuram, para amar, a noite mais distante,
e eu, para amar, procuro a noite em teus cabelos!…
Teoria do Amor
Amor é mais do que dizer.
Por amor no teu corpo fui além
e vi florir a rosa em todo o ser
fui anjo e bicho e todos e ninguém.Como Bernard de Ventadour amei
uma princesa ausente em Tripoli
amada minha onde fui escravo e rei
e vi que o longe estava todo em ti.Beatriz e Laura e todas e só tu
rainha e puta no teu corpo nu
o mar de Itália a Líbia o belvedere.E quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e me perder.
Soneto V
Qual Hércules estrela já mudado,
Que quando se quer pôr ao tempo certo,
Cabeça e corpo todo já coberto,
Fica só pelos pés dependurado,Tal c’ua grave dor, grave cuidado
Que o coração me tem de todo aberto,
Perdida a razão já, de meu fim perto
Me vejo agora em semelhante estado.Mas ai! paixão penosa, que além passas,
Que este, enfim, não é sempre no Céu visto,
Ainda que dos pés se ponha tarde.E tu, como meu mal e morte traças,
És qual a mão do filho de Calisto,
Que em todo [o] tempo ao mar cintila e arde.
Nos Teus Gestos
Nos teus gestos há animais em liberdade
e o brilho doce que só têm as cerejas.
É neles que adormeço, e dos teus dedos
retiro a luz azul dos arquipélagos.Os teus gestos são letras, sílabas, poemas.
Os teus gestos são páginas inteiras. São
a tua boca a namorar na minha boca,
o cio dos séculos a saudar o tempo.São os teus gestos que me acordam. Gestos
que vestem o silêncio fundo das ravinas
e assinalam a água dos desertos.Os teus gestos são música. São lume.
São a respiração do teu olhar. A seara
de espigas que ondula no meu corpo.
Pecadora
Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o simb’lo do Pecado.Bela, divina, o porte emoldurado
No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mão da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil. Do fado,Do destino fatal, presa, morria
Uma noute entre as vascas da agonia
Tendo no corpo o verme do pecado!
Amor e Seu Tempo
Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.É isto, amor: o ganho não previsto,
o prémio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe.valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.