Recordação
Foi por aqui, sob estes árvoredos,
Sob este doce e plácido horizonte,
Perto da clara e pequenina fonte
Que murmura lá baixo os seus segredos…Recordo bem todos os cantos ledos
Da passarada — e lembro-me da ponte
Por sobre a qual via-se além, de fronte,
O mar azul batendo nos penedos.Sinto a impressão ainda da paisagem,
Do trêmolo (…)* da folhagem,
Das culturas rurais, do sítio agreste.A luz do dia vinha então morrendo…
Foi por aqui que eu pude ficar crendo
O quanto pode o teu olhar celeste.* Rasurado
Sonetos sobre Mar
243 resultadosCantares Bacantes (I)
O mar lava a concha cava
e cava concha lava o mar
como a língua limpa lava
tua concha antes de amar.Delírio da estrela d’alva
mistério da preamar
vinda e volta abrindo a aldrava
da concha do paladar.Oh minhas parcas de mel!
Eu me afogo em mar vinho
à espera de algum batel.Sou cantador de cordel:
estórias sabor marinho
bacantes da moscatel.
Soneto XXXXIIII
Do fundo sobe do mar Indo acima
A recolher o orvalho a concha, e nela,
Despois que pouco a pouco se congela,
A pérola nos dá de tanta estima.Hoje, despois que o Céu choveu de cima
O rico orvalho, aquela concha, aquela
Divina humana, mais que todas bela,
O mundo pobre com seu parto anima.Mas ai que a concha aberta o orvalho fino
Recebe, e em pedra dá; porém, Maria,
De outra invenção e modo extraordinário.E como vem tão pobre este minino?
Vem tosca pedra, e seu preço e valia
Só conhece o discreto lapidário.
Língua Portuguesa
Da avena dos pastores, da harmonia
Que o vento imprime às palmas das palmeiras,
Do bramido do mar e das cachoeiras,
Da voz que impreca à voz que balbucia;Do sol que fala quando nasce o dia,
Do luar que enche de unção as cordilheiras,
Vem este claro idioma, que é poesia
E alma das gentes luso-brasileiras.Rumor de asas de abelha, um ruído apenas…
Doce afago de arminhos e de penas,
Perdão, queixume, lágrima, reclamo,Ou grito estuante de alma incompreendida,
Do desgraçado: “Eu te condeno, ó vida!”
Do poeta que sofreu: “Ó vida, eu te amo!”
IV – Sempre O Brasil
Nunca noite dormi tão sossegado,
Quem nem mesmo sonhei com o meu Brasil,
Porém, vendo infinito mar d’anil,
Lembra-me a aurora dele nacarada.Cada dia que passa não é nada,
E os que faltam parecem mais de mil.
Se o tempo que lá vivo é um ceitil,
Aqui é para mim grande massada.E a doença porém me consentir,
Sempre pensando nele, cuidarei
De tornar-me mais digno de o servir,E, quando possa, logo voltarei;
Pois na terra só quero eu existir
Quando é para bem dele que eu o sei.
Flor Do Mar
És da origem do mar, vens do secreto,
Do estranho mar espumaroso e frio
Que põe rede de sonhos ao navio,
E o deixa balouçar, na vaga, inquieto.Possuis do mar o deslumbrante afeto,
As dormências nervosas e o sombrio
E torvo aspecto aterrador, bravio
Das ondas no atro e proceloso aspecto.Num fundo ideal de púrpuras e rosas
Surges das águas mucilaginosas
Como a lua entre a névoa dos espaços…Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
Auroras, virgens musicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços…
Últimas Vontades
Na branca praia, hoje deserta e fria,
De que se gosta mais do que de gente,
Na branca praia, onde te vi um dia
Para sonhar, já tarde, eternamente,Achei (ia jurá-lo!) à nossa espera,
Intacto o rasto dos antigos passos,
Aquela praia, inamovível, era
Espelho de pés leves, depois lassos!E doravante, imploro, em testamento,
Que, nesta areia, a espuma seja a tiara
Do meu cadáver, preso ao teu e ao vento…— Vaivém sexual, que o mar lega aos defuntos? —
Se em vida, agora, tudo nos separa
Ó meu amor, apodreçamos juntos!
Redenção
I
Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n’um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento…Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha…
Almas irmãs da minha, almas cativas!II
Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares…Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D’esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares…Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão…
E acabará por fim vosso tormento.
Soneto Para Eugênia
O tempo que te alonga todo dia
é duração que colhes na paisagem,
tão distante e tão perto em ventania,
sitiando limites na viagem.Desse mar que se afasta em maresia
o vago em teu olhar se faz aragem
nas vagas que se vão em vaga via
vigia de teus pés no vão das margens.E o fio da teia vai fugindo fosco,
irreparável névoa pressentida
nos livros que não leste, nesses poucosmomentos que sobravam da medida.
Angústia de ponteiros, sol deposto,
no tédio das desoras foge a vida.Vida que bem mereces por inteiro,
e é pouca a que te dou de companheiro.
Soneto Da Ilha
Eu deitava na praia, a cabeça na areia
Abria as pernas aos alísios e ao luar
Tonto de maresia; e a mão da maré cheia
Vinha coçar meus pés com seus dedos de mar.Longos êxtases tinha; amava a Deus em ânsia
E a uma nudez qualquer ávida de abandono
Enquanto ao longe a clarineta da distância
Era tambêm um mar que me molhava o sono.E adormecia assim, sonhando, vendo e ouvindo
Pulos de peixes, gritos frouxos, vozes rindo
E a lua virginal arder no plexoEstelar, e o marulho das ondas sucessivas
Da monção, até que alguma entre as mais vivas
Mansa, viesse desaguar pelo meu sexo.
O Teu Olhar
Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!E ao sentir-te tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!
A Fermosura Fresca Serra
A fermosura fresca serra,
e a sombra dos verdes castanheiros,
o manso caminhar destes ribeiros,
donde toda a tristeza se desterra;o rouco som do mar, a estranha terra,
o esconder do sol pelos outeiros,
o recolher dos gados derradeiros,
das nuvens pelo ar a branda guerra;enfim, tudo o que a rara natureza
com tanta variedade nos ofrece,
me está (se não te vejo) magoando.Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando
nas mores alegrias, mor tristeza.
Viver é Caminhar Breve Jornada
DESPREOCUPAÇÃO DO VIVER DISTRAÍDO A QUEM A MORTE CHEGA INESPERADA
Viver é caminhar breve jornada,
e morte viva é, Lico, a nossa vida,
ontem p’ra o frágil corpo amanhecida,
cada instante, no corpo sepultada.Nada que, ao ser, é pouco, e será nada
em pouco tempo, que ambiciosa olvida;
pois, da vaidade mal persuadida,
deseja duração, terra animada.Levada por um falso pensamento,
por esperança enganadora e cega,
tropeçará no próprio monumento.Como o que, distraído, o mar navega,
e, sem se mover, voa com o vento,
e, antes que pense em abeirar-se, chega.Tradução de José Bento
Toada Para Solo De Ocarina
Fio tênue do céu em claridade
tece esse manto gris meu agasalho
colhido pelos muros da cidade:
mucosa verde musgo que se espalhacomo tapete denso em chão de jade
Meus pés de crivo cravam esse atalho
riscando seu grafite no mar que arde
o fogo-de-santelmo em céu talhadoNesse caminho caio em minha sina
caio no mar que lava essa lavoura
num barco ébrio que sempre desafinaE colho o sal da noite a lua moura
crescente luz de foice me assassina
e me morro no haxixe com Rimbaud
O Que Diz A Morte
Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem…Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem. –Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.
Soneto Da Mulher Ao Sol
Uma mulher ao sol – eis todo o meu desejo
Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz
A flor dos lábios entreaberta para o beijo
A pele a fulgurar todo o pólen da luz.Uma linda mulher com os seios em repouso
Nua e quente de sol – eis tudo o que eu preciso
O ventre terso, o pelo úmido, e um sorriso
À flor dos lábios entreabertos para o gozo.Uma mulher ao sol sobre quem me debruce
Em quem beba e a quem morda, com quem me lamente
E que ao se submeter se enfureça e soluceE tente me expelir, e ao me sentir ausente
Me busque novamente – e se deixes a dormir
Quando, pacificado, eu tiver de partir…
Neste Horrível Sepulcro Da Existência
Neste horrível sepulcro da existência
O triste coração de dor se parte;
A mesquinha razão se vê sem arte,
Com que dome a frenética impaciência:Aqui pela opressão, pela violência
Que em todos os sentidos se reparte,
Transitório poder que imitar-te,
Eterna, vingadora omnipotência!Aqui onde o peito abrange, e sente,
Na mais ampla expressão acha estreiteza,
Negra idéia do abismo assombra a mente.Difere acaso da infernal tristeza
Não ver terra, nem céu, nem mar, nem gente,
Ser vivo, e não gozar da Natureza ?
Tormanto do Ideal
Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre:
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a côr, bem como a nuvem que erra
Ao pôr do sol e sobre o mar discorre.Pedindo à fórma, em vão, a idea pura,
Tropéço, em sombras, na materia dura.
E encontro a imperfeição de quanto existe.Recebi o baptismo dos poetas,
E assentado entre as fórmas incompletas
Para sempre fiquei palido e triste.
Em uma Tarde de Outono
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono… Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto…Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos…
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol…
Tristeza De Momo
Pela primeira vez, ímpias risadas
Susta em pranto o deus da zombaria;
Chora; e vingam-se dele, nesse dia,
Os silvanos e as ninfas ultrajadas;Trovejam bocas mil escancaradas,
Rindo; arrombam-se os diques da alegria;
E estoira descomposta vozeria
Por toda a selva, e apupos e pedradas…Fauno, indigita; a Náiade o caçoa;
Sátiros vis, da mais indigna laia,
Zombam. Não há quem dele se condoa!E Eco propaga a formidável vaia,
Que além por fundos boqueirões reboa
E, como um largo mar, rola e se espraia…