A Felicidade é tão Cansativa como a Infelicidade
Toda a gente tem o seu método de interpretar a seu favor o balanço das suas impressões, para que daí resulte de algum modo aquele mínimo de prazer necessário às suas existências quotidianas, o suficiente em tempos de normalidade. O prazer da vida de cada um pode ser também constituído por desprazer, essas diferenças de ordem material não têm importância; sabemos que existem tantos melancólicos felizes como marchas fúnebres, que pairam tão suavemente no elemento que lhes é próprio como uma dança no seu. Talvez também se possa afirmar, ao contrário, que muitas pessoas alegres de modo nenhum são mais felizes do que as tristes, porque a felicidade é tão cansativa como a infelicidade; mais ou menos como voar, segundo o princípio do mais leve ou mais pesado do que o ar. Mas haveria ainda uma outra objecção: não terá razão aquela velha sabedoria dos ricos segundo a qual os pobres não têm nada a invejar-lhes, já que é pura fantasia a ideia de que o seu dinheiro os torna mais felizes? Isso só lhes imporia a obrigação de encontrar um sistema de vida diferente do seu, cujo orçamento, em termos de prazer, fecharia apenas com um mínimo excedente de felicidade,
Textos sobre Burros
12 resultadosO Prazer do Beneficiador é Sempre Maior do que o do Beneficiado
– Não me podes negar um facto, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado. Que é o benefício? É um acto que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incómodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o acto. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este facto, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno.
Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa;
O Grande Segredo da Felicidade
O grande segredo da felicidade não é – como os pseudo-génios da infelicidade defendiam e defendem – não pensar. O grande segredo da felicidade é dis-pensar. Dispensar o que é dispensável: o que nasceu para ser dispensável. Só quem dispensa o que tem de ser dispensável é que é feliz. E só é capaz de dispensar quem sabe pensar. Pensar a sério. Só os génios dispensam. Qualquer burro é capaz de pensar. Mas dispensar está reservado a uma elite de predestinados. A uma elite de felicinados: de alienados de felicidade.
O Provincianismo Português (II)
Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria “provincianismo”. Como todas as definições simples esta, que é muito simples, precisa, depois de feita, de uma explicação complexa. Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental — a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto, neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás,
Toda a Comunidade nos Torna Vulgares
Viver com uma imensa e orgulhosa calma; sempre para além. – Ter e não ter, arbitrariamente, os seus afectos, o seu pró e contra, condescender com eles por umas horas; montar sobre eles como em cavalos, frequentemente como em burros; – é que se deve saber aproveitar a sua estupidez tal como a sua fogosidade. Conservar os seus trezentos primeiros planos; também os óculos escuros; pois há casos em que ninguém nos deve olhar nos olhos e muito menos ainda nas nossas «razões». E escolher, para companhia, aquele vício matreiro e sereno, a cortesia. E ficar senhor das suas quatro virtudes, a coragem, a perspicácia, a simpatia, a solidão. Pois a solidão é entre nós uma virtude, como tendência e impulso sublimes do asseio que adivinha como, no contacto de homem para homem – «em sociedade» – tudo é, inevitavelmente, sujo, Toda a comunidade nos torna de qualquer modo, em qualquer parte, em qualquer altura – «vulgares».
Um Povo Resignado e Dois Partidos sem Ideias
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. [.]
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A Seriedade é uma Doença
A seriedade é uma doença, e o mais sério dos animais é o burro. Ninguém lhe tira, nem com afagos nem com a chibata aquele semblante cabido de mágoas recônditas que o ralam no seu peito. Há nele a linha, o perfil do sábio refugado no concurso ao magistério, do candidato á camara baixa bigodeado pela perfídia de eleitores que, saturados de genebra e Carta constitucional, desde a taberna até à urna, fermentaram a crisálida de consciências novas. O burro é assim triste por fora; mas é feliz por dentro, e riria dos seus homónimos, se pudesse igualá-os na faculdade de rir, que é exclusiva do homem e da hiena, a qual ri com umas exultações ferozes tão autênticas como as lágrimas insidiosas do crocodilo.
Viver com o Coração ou com a Razão
Viver segundo a razão, alvitre que os filósofos pregoam, é bom de dizer-se e desejar-se, mas enquanto os filósofos não derem uma razão a cada homem, e essa razão igual à de todos os homens, o apostolado é de todo inútil. Melhor avisados andam os moralistas religiosos, subordinando a humanidade aos ditames de uma mesma fé; todavia, e sem menoscabo dos preceitos evangélicos que altamente venero, parece-me que o homem, sincero crente, e devotado cristão, no meio destes mouros, que vivem à luz do século, e meneiam os negócios temporais a seu sabor, tal homem, se pedir a seu bom juízo religioso a norma dos deveres a respeitar, e dos direitos a reclamar, ganha créditos de parvo, e morre sequestrado dos prazeres da vida, se quiser poupar-se ao desgosto de ser apupado, procurando-os.
Como sabem, eu nunca andei em boas-avenças com a religião de meus pais; e por isso me abstenho de lhe imputar a responsabilidade das minhas quedas, seja dos pináculos aéreos onde o coração me alçou, seja do raso da razão, onde as quedas, bem que baixas, são mais igminiosas. Eu comparo o cair das alturas do coração à queda que se dá dum garboso cavalo: quem nos vê cair pode ser que nos deplore;
A Mulher Inteligente
Sou doente pela mulher inteligente.
Sou fanático pela mulher inteligente. Sou viciado na inteligência da mulher inteligente. Preciso dela, exijo-a a toda a hora, persigo-a como um cão com fome persegue o osso. Sou obcecado pela mulher inteligente. A mulher inteligente é a criação suprema de Deus. A mulher inteligente é o próprio Deus. A mulher inteligente, suspeito, deve ser mesmo uma forma superior do próprio Deus. Até Deus tem inveja da mulher inteligente. Meu Deus.
A mulher inteligente despreza o que a mulher não-inteligente ama.
A mulher inteligente não quer saber da conta bancária, não quer saber da marca do carro, da maquilhagem na cara. A mulher inteligente veste Prada a cada vez que fala, a cada vez que pensa. A mulher inteligente faz do que é um estilo, do que defende uma lei, do que parece uma moda. A mulher inteligente faz do tesão um estado de alma. A mulher inteligente dá-me tesão. Mmmm.
Partilhar a vida com uma mulher inteligente é a única forma de partilha possível.
Só com ela consigo partilhar, só a ela consigo dizer tudo o que sinto, tudo o que sou. Só ela saberá como eu sei – e depois de pensar um pouco saberá muito melhor do que eu sei – aquilo que eu quero dizer com aquilo que eu estou a dizer.
Os Verdadeiros Burros e os Falsos Loucos
O mais esperto dos homens é aquele que, pelo menos no meu parecer, espontâneamente, uma vez por mês, no mínimo, se chama a si mesmo asno…, coisa que hoje em dia constitui uma raridade inaudita. Outrora dizia-se do burro, pelo menos uma vez por ano, que ele o era, de facto; mas hoje… nada disso. E a tal ponto tudo hoje está mudado que, valha-me Deus!, não há maneira certa de distinguirmos o homem de talento do imbecil. Coisa que, naturalmente, obedece a um propósito.
Acabo de me lembrar, a propósito, de uma anedota espanhola. Coisa de dois séculos e meio passados dizia-se em Espanha, quando os Franceses construíram o primeiro manicómio: «Fecharam num lugar à parte todos os seus doidos para nos fazerem acreditar que têm juízo». Os Espanhóis têm razão: quando fechamos os outros num manicómio, pretendemos demonstrar que estamos em nosso perfeito juízo. «X endoideceu…; portanto nós temos o nosso juízo no seu lugar». Não; há tempos já que a conclusão não é lícita.
Os Sábios Célebres
Todos vós, os sábios célebres, nunca fostes mais do que os servidores do povo e da superstição popular, e não os servidores da verdade. E é precisamente por isso que vos têm honrado.
E por isso também foi tolerada a vossa incredulidade, porque parecia uma brincadeira, um rodeio engenhoso que vos levava ao povo. Assim o amo dá maior liberdade aos seus escravos e regozija-se até com a sua presunção.
Mas aquele que o povo odeia, com o ódio do lobo pelos cães, é o espírito livre, inimigo das algemas, aquele que não adora, aquele que habita as florestas.
Persegui-lo até ao seu esconderijo, é aquilo a que o povo, sempre chamou ter o «sentido de justiça»; e ainda por cima dão caça ao solitário com os seus ferozes mastins.
‘Porque a verdade está onde o povo está! Ai daqueles que a procuram!’ – é isto o que ecoa através dos tempos.
Queríeis assentar na razão a piedade tradicional do vosso povo e é a isso que chamais «a vontade de verdade», ó sábios célebres!
E o vosso coração insiste em dizer para si próprio: ‘Eu vim do povo, foi também do povo que me veio a voz de Deus.’
Não Julgues Segundo a Soma
Não hás-de julgar segundo a soma. Vens-me dizer que não há nada a esperar daqueles acolá. São grosseria, gosto do lucro, egoísmo, ausência de coragem, fealdade. Mas se me podes falar assim das pedras, as quais são rudeza, peso morno e espessura, já o não podes daquilo que tiras das pedras: estátua ou templo. Quase nunca vi o ser comportar-se como o teriam feito prever as suas partes. Se pegares em vizinhos à parte, virás a concluir que cada um deles odeia a guerra e não está disposto a abandonar o lar, porque ama os filhos e a esposa e as refeições de aniversário; nem a derramar o sangue, porque é bom, dá de comer ao cão e faz carícias ao burro, nem a roubar outrem, pois tu bem vês que ele apenas preza a sua própria casa e puxa o lustro às suas madeiras e manda pintar as paredes e perfuma o jardim de flores.
E dir-me-ás: «Eles representam no mundo o amor à paz…» No entanto, o império deles não passa de uma grande terrina onde se vai cozendo a guerra. E a bondade deles e a doçura deles pelo animal ferido e a emoção deles à vista de flores não passam de ingrediente de uma magia que prepara o tilintar das armas,