Sociedade Cíclica
Um dos primeiros erros do mundo moderno é presumir, profunda e tacitamente, que as coisas passadas se tornaram impossíveis. Eis uma metáfora pela qual os modernos são apaixonados; sempre dizem: «Não se pode atrasar o pêndulo». A resposta é clara e simples: «Pode-se sim». Um pêndulo, que é um objecto construído pelo homem, pode ser modificado por um dedo humano a qualquer hora. Assim, a sociedade, que é um objecto de construção humana, pode ser reconstituído sob qualquer forma já experimentada.
Textos
4483 resultadosA Charrua do Mal
Foram os espíritos fortes e os espíritos malignos, os mais fortes e os mais malignos, que obrigaram a natureza a fazer mais progressos: reacenderam constantemente as paixões que adormecidas – todas as sociedades policiadas as adormecem -, despertaram constantemente o espírito de comparação e de contradição, o gosto pelo novo, pelo arriscado, pelo inexperimentado; obrigaram o homem a opor incessantemente as opiniões às opiniões, os ideais aos ideais.
As mais das vezes pelas armas, derrubando os marcos fronteiriços, violando as crenças, mas fundando também novas religiões, criando novas morais! Esta «maldade» que se encontra em todos os professores do novo, em todos os pregadores de coisas novas, é a mesma «maldade» que desacredita o conquistador, se bem que ela se exprime mais subtilmente e não mobilize imediatamente o músculo; – o que faz de resto com que desacredite com menos força! – O novo, de qualquer maneira, é o mal, pois é aquilo que quer conquistar, derrubar os marcos fronteiriços, abater as antigas crenças; só o antigo é o bem! Os homens de bem em todas as épocas, são aqueles que implantam profundamente as velhas ideias para lhes dar fruto, são os cultivadores do espírito. Mas todos os terrenos acabam por se esgotar,
Que Tristeza Isto de a Gente Escrever
Que tristeza isto de a gente escrever! Secos como paus na vida, e sai-nos depois a ternura pelo bico da pena! Comigo é assim. E como ninguém me lê—ninguém dos que eu mais desejava que recebessem ternura de mim (minha Mãe, meu Pai, minha Irmã, uns pobres amigos rudes que tenho na minha terra e uns infelizes que encontro por este mundo) —, fica tudo em letra morta. Hoje todo eu fui uma sede ardente de abraçar um infeliz que calcorreava às apalpadelas as ruas escaroladas da Nazaré. Um dia como uma estrela, aquela maravilha ali para se ver, e o desgraçado cego de nascença! Mas o abraço saiu-me aqui, a tinta.
Feliz o justo, porque tudo lhe vai bem. Com efeito, colherá o fruto do seu procedimento
Feliz o justo, porque tudo lhe vai bem. Com efeito, colherá o fruto do seu procedimento.
Tem de se Ser Verdadeiro na Escrita
Tem de se ser verdadeiro na escrita, porque os leitores sentem. A mentira é impossível na boa literatura. E o que procuro, mais do que a beleza ou qualquer outra coisa, é a verdade, livro após livro, tentando desvendar um pouco mais de mim e esperando que essa possa ser uma forma de desvendar alguma coisa dos outros e que eles também se vejam reflectidos nessa procura que faço.
A Crença só se Mantém pela Ritualização
Uma verdade racional é impessoal e os factos que a sustentam ficam estabelecidos para sempre. Sendo, ao contrário, pessoais e baseadas em concepções sentimentais ou místicas, as crenças são submetidas a todos os factores susceptíveis de impressionar a sensibilidade. Deveriam, portanto, ao que parece, modificar-se incessantemente.
As suas partes essenciais mantêm-se, contudo, mas cumpre que sejam constantemente alentadas. Qualquer que seja a sua força no momento do seu triunfo, uma crença que não é continuamente defendida logo se desagrega. A história está repleta de destroços de crenças que, por essa razão, tiveram apenas uma existência efémera. A codificação das crenças em dogmas constitui um elemento de duração que não poderia bastar. A escrita unicamente modera a acção destruidora do tempo.
Uma crença qualquer, religiosa, política, moral ou social mantém-se sobretudo pelo contágio mental e por sugestões repetidas. Imagens, estátuas, relíquias, peregrinações, cerimônias, cantos, música, prédicas, etc., são os elementos necessários desse contágio e dessas sugestões.
Confinado num deserto, privado de qualquer símbolo, o crente mais convicto veria rapidamente a sua fé declinar. Se, entretanto, anacoretas e missionários a conservam, é porque incessantemente relêem os seus livros religiosos e, sobretudo, se sujeitam a uma multidão de ritos e de preces.
A Inutilidade dos Sindicatos
A sindicação, saída da liberdade como o monopólio espontâneo, é igualmente inimiga dela, e sobretudo das vantagens dela; é-o com menos brutalidade e evidência e, por isso mesmo, com mais segurança. Um sindicato ou associação de classe — comercial, industrial, ou de outra qualquer espécie — nasce aparentemente de uma congregação livre dos indivíduos que compõem essa classe; como, porém, quem não entrar para esse sindicato fica sujeito a desvantagens de diversa ordem, a sindicação é realmente obrigatória. Uma vez constituído o sindicato, passam a dominar nele — parte mínima que se substitui ao todo — não os profissionais (comerciantes, industriais, ou o que quer que sejam), mais hábeis e representativos, mas os indivíduos simplesmente mais aptos e competentes para a vida sindical, isto é, para a política eleitoral dessas agremiações. Todo o sindicato é, social e profissionalmente, um mito.
Mais incisivamente ainda: nenhuma associação de classe é uma associação de classe. No caso especial da sindicação na indústria e no comércio, o resultado é desaparecerem todas as vantagens da concorrência livre, sem se adquirir qualquer espécie de coordenação útil ou benéfica. O caráter natural do regímen livre atenua-se, porque surge em meio dele este elemento estranho e essencialmente oposto à liberdade.
A Dor e o Prazer
A natureza colocou o género humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é recto do que é errado, e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos.
Os dois senhores de que falamos governam-nos em tudo o que fazemos, em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para sacudir esse senhorio outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo. Através das suas palavras, o homem pode pretender abjurar tal domínio, porém na realidade permanecerá sujeito a ele em todos os momentos da sua vida.
As Pernas Pesadas
Hoje, temos as pernas pesadas com o nosso peso. Andamos a ver onde pomos os pés, a acautelarmo-nos para não cair, porque se partíssemos uma perna era a nossa morte. Sentimos uma tremura invisível nas pernas, e hoje avançou essa tremura para o dobro, e já se nota ao olhar. Os ossos não se dobram da mesma maneira. Até o respirar é muito diferente do que já foi. Dantes, era corrido, era uma coisa em que não reparávamos. Hoje, é precisa mais força para sorver o ar e, quando o sopramos, soltamos um ruído de asma, como se tivéssemos o pescoço meio entupido ou tivéssemos engolido uma gaita enferrujada.
Quando Falo com Sinceridade não sei com que Sinceridade Falo
Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou váriamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpétuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
A Europa é um Comboio Disparado e sem Freios
Foi a falta de solidariedade que fez na Europa 18 milhões de desempregados, ou são eles tão-somente o efeito mais visível da crise de um sistema para o qual as pessoas não passam de produtores a todo o momento dispensáveis e de consumidores obrigados a consumir mais do que necessitam? A Europa, estimulada a viver na irresponsabilidade, é um comboio disparado, sem freios, onde uns passageiros se divertem e os restantes sonham com isso.
A Importância de Aprender várias Línguas
Pessoas com poucas capacidades não conseguirão realmente assimilar com facilidade uma língua estrangeira: embora aprendam as suas palavras, empregam-nas apenas no significado do equivalente aproximado da sua língua materna e continuam a manter as construções e frases próprias desta última. Com efeito, esses indivíduos não conseguem assimilar o espírito da língua estrangeira, que depende essencialmente do facto do seu pensamento não se dar por meios próprios, mas, em grande parte, de ser emprestado pela língua materna, cujas frases e locuções habituais substituem os seus próprios pensamentos. Eis, portanto, a razão de eles sempre se servirem, também na própria língua, de expressões idiomáticas desgastadas, combinando-as de modo tão inábil, que logo se percebe quão pouco se dão conta do seu significado e quão pouco todo o seu pensamento supera as palavras, de modo que tudo se reduz a um palratório de papagaios. Pela razão oposta, a originalidade das locuções e a adequação individual de cada expressão usada por alguém são o sintoma inequivocável de um espírito preponderante.
Por conseguinte, de tudo isso resultam os seguintes factores: no aprendizado de toda a língua estrangeira, são formados novos conceitos para dar significado a novos signos; certos conceitos separam-se uns dos outros, enquanto antes constituíam juntos um conceito mais amplo e,
Não tenhas ciúme da tua amada esposa para não lhe ensinares o mal contra ti
Não tenhas ciúme da tua amada esposa para não lhe ensinares o mal contra ti.
Ser Devasso é Pior do que não Ter Domínio de Si
Uma vez que alguns prazeres são necessários e outros não são, e são necessários apenas até certo ponto, sem admitir excesso nem defeito, e uma vez que o mesmo se passa com os desejos e os sofrimentos necessários, – devasso é quem persegue o excesso no prazer ou prazeres excessivos, e, na verdade, quando os persegue por decisão própria em vista do excesso e não de qualquer outra consequência daí resultante. É forçoso que alguém deste género não tenha nenhuma disposição natural para se arrepender do que faz, de tal sorte que é incurável. Pois, na verdade, quem for capaz de se arrepender pode ser curado. Quem não sente falta nenhuma [destes prazeres] é o oposto do devasso. Mas quem se encontrava na disposição intermédia é temperado. De modo semelhante [devasso] é também quem foge aos sofrimentos do corpo [causados pela insatisfação do desejo], não por lhes sucumbir, mas por uma decisão tomada pelo próprio.
Há também os que não chegam a tomar nenhuma decisão. Estes são obrigados a perseguir o prazer, e a procurar escapar ao sofrimento causado pelo desejo insatisfeito. Há assim diferenças entre esses dois modos de ceder ao prazer ora por uma decisão tomada ou sem decisão prévia.
Os Propósitos ao Sabor da Paixão
Actor Rei: Acredito, sim, que [tu, actriz rainha] penses o que dizes agora; mas aquilo que decidimos, não raro violamos. O propósito não passa de servo da memória, de nascer violento mas fraca validade. E que agora, como fruta verde, à árvore se agarra, mas, quando amadurecida, despenca sem chacoalho. Imprescindível é que nos esqueçamos de nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido. Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos, a paixão cessando, o propósito está perdido.
Bem Supremo e Razão
Quando a experiência me ensinou que os acontecimentos ordinários da vida são fúteis e vãos e me apercebi de que tudo que era para mim causa ou objecto de receio não tem em si mesmo nada de bom ou de mau, a não ser na medida da comoção que excita na alma, resolvi, finalmente, indagar se existia um bem verdadeiro e susceptível de se comunicar, qualquer coisa enfim cuja descoberta e posse me trouxessem para sempre um júbilo continuo e soberano.
(…) O que nos ocupa mais frequentemente na vida e que os homens, como pode concluir-se dos seus actos, consideram ser o bem supremo pode reduzir-se a três coisas: riqueza, fama, prazer dos sentidos.
Ora cada um deles distrai o espírito de tal modo que mal pode pensar noutro bem. (…)
– Pelo prazer sensual se detém a alma como se repousasse num bem verdadeiro, o que a impede em absoluto de pensar noutra coisa; após o prazer vem a extrema tristeza, que, se não suspende o pensamento, perturba e embota. A busca da fama e da riqueza não absorve menos o espírito, sobretudo quando a riqueza é desejada por si mesma, conferindo-lhe, então, a categoria de bem supremo.
É o Que a Gente Leva Desta Vida…
A persistência instintiva da vida através da aparência da inteligência é para mim uma das contemplações mais íntimas e mais constantes. O disfarce irreal da consciência serve somente para me destacar aquela inconsciência que não disfarça.
Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e com mais complexidade. Guia-se por normas que não sabe que existem, nem que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos, são todos inconscientes – não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há duas consciências.
Vislumbres de ter a ilusão – tanto, e não mais, tem o maior dos homens.
Sigo, num pensamento de divagação, a história vulgar das vidas vulgares. Vejo como em tudo são servos do temperamento subconsciente, das circunstâncias externas alheias, dos impulsos de convívio e desconvívio que nele, por ele e com ele se chocam como pouca coisa.
Quantas vezes os tenho ouvido dizer a mesma frase que simboliza todo o absurdo, todo o nada, toda a insciência falada das suas vidas. É aquela frase que usam de qualquer prazer material: «é o que a gente leva desta vida»…
Quando souberes o que é eterno, saberás o que é recto
Quando souberes o que é eterno, saberás o que é recto.
Conhecimento: uma pequena luz que ilumina a escuridão.
Casar por Amor
Quando eu pensava que não podia ser mais feliz, manhã após manhã era mais, mas só um bocadinho mais do que o máximo humanamente possível; pensava eu ser absolutamente impossível que eu fosse, de repente, muito mais feliz, do que a própria felicidade até. Mas, de repente, fui. Muito mais. Casei com o meu amor e o meu amor tornou-se a minha mulher, minha em tudo, para tudo, para sempre. E eu, finalmente, consegui divorciar-me de mim e deixar de ser tão triste e aborrecidamente meu, trocando-me, no melhor negócio do século, por ela. Ela ficou minha. Eu fiquei dela. É ou não é estranho e lindo e bem pensado por Deus Nosso Senhor que ambos pensemos que nos livrámos de boa e ficámos a ganhar? É.
É sim. A minha mulher é mais minha do que eu alguma vez fui meu — e eu antes não podia ter sido mais para mim, felizmente. Por ter tudo agora para lhe dar. Que alívio. Nunca mais me quero ver na vida.
A não ser aos olhos dela, onde sou muito bem visto — talvez o maior homem que já viveu, logo a seguir ao pai dela, claro. É um milagre como melhorei tanto.