Passagens de Vergílio Ferreira

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Falhaste a vida, é evidente. Mas não o digas. Porque haverá logo quem venha proclamar em alvoroço que tu mesmo afinal confessas que falhaste para o cretino trombeteiro se julgar menos falhado e os cretinos como ele.

Uma mulher bela concentra no rosto a atenção dos homens. Mas se essa mulher se despir, a atenção concentra-se noutro lado. E a razão é simples: é que esse lado é que é a razão do outro.

Sinto na Angústia o Quem me Lembrasse

Sinto na angústia o quem me lembrasse
e do lembrar a mim como uma ponte
onde de noite já ninguém passasse
viesse a notícia desse outro horizonte

em que o meu grito preso na garganta
dissesse à voz que não ouvi e veio
quanto cansaço inverosímil, quanta
fadiga me enternece como um seio.

Vibrátil voga vaga pela tarde
que em cigarros distrai o eu estar só
a chama obscura que visível arde
quando arde ao sol o pó.

O grande sonho de todo o escritor – se o tiver – será o de nunca encontrar o leitor «ideal». Porque se o encontrasse, a sua obra morreria aí. Cada leitor, com efeito, recria a obra que lê; e a perpetuidade de uma obra significará a sua perpétua recriação.

O difícil em arte é criar-se emoção sem se mostrar que se está emocionado. Ou estar emocionado para antes e depois de se estar. Ou ter a emoção ao lado para nela ir enchendo a caneta.

A Insustentável Leveza do Ser

Eis que ao despedir-vos, esse teu amigo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu irmão gémeo. Imediatamente uma alteração profunda se instalou nas vossas relações. Mas se te perguntares em quê, não é fácil responderes. Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo é igual nos mínimos pormenores, igual a face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as ideias, os sentimentos, as recordações, o todo integral da sua vida e do que ele é. Se percorreres todos os pormenores, encontrá-los-ás em hipótese absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada minúcia que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verificarás que nada escapa a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te indiferente seres amigo deste como eras amigo do outro. Pois se uma pessoa é aquilo que ela nos é, se uma pessoa é aquilo que a manifesta, se aquilo que nos define é aquilo que somos e se esse alguém que encontrámos em nada difere, em hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as relações com ele se perurbassem.

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Toda a verdade convicta cria logo discípulos. Porque o que seduz na força da verdade é a verdade da sua força. Com a verdade criou-se um sistema, com a força pode criar-se um império. E o domínio importa mais do que o saber. A verdade é impessoal, o domínio não.

Não será difícil ser humilde quando se é grande. Difícil é ser humilde quando se é medíocre. Como é fácil ser generoso quando se é rico e não quando se tem pouco.

O ciúme. Que irritante. Ele é uma expressão da avidez da propriedade. Ou da petulância do domínio. Ou do gosto da escravização.

Quando se apanha um mentiroso, ele pode perguntar-nos – e o que é verdade? E o mais provável é termos de o deixar seguir.

Ser tímido é dar importância aos outros. Ser desinibido é dá-la a si próprio. Mas normalmente o tímido tem-na. O desinibido não.

O homem não gosta da paz. Gosta só de conquistá-la. Entre uma coisa e outra há muita gente estendida. É a que tem a paz verdadeira.

A Dificuldade de Estabelecer e Firmar Relações

A dificuldade de estabelecer e firmar relações. Há uma técnica para isso, conheço-a. Nunca pude meter-me nela. Ser «simpático». É realmente fácil: prestabilidade, autodomínio. Mas. Ser sociável exige um esforço enorme — físico. Quem se habituou, já se não cansa. Tudo se passa à superfície do esforço. Ter «personalidade»: não descer um milímetro no trato, mesmo quando por delicadeza se finge. Assumirmos a importância de nós sem o mostrar. Darmo-nos valor sem o exibir. Irresistivelmente, agacho-me. E logo: a pata dos outros em cima. Bem feito. Pois se me pus a jeito. E então reponto. O fim. Ser prestável, colaborar nas tarefas que os outros nos inventam. Colóquios, conferências, organizações de. Ah, ser-se um «inútil» (um «parasita»…). Razões profundas — um complexo duplo que vem da juventude: incompreensão do irmão corpo e da bolsa paterna. O segundo remediou-se. Tenho desprezo pelo dinheiro. Ligo tão pouco ao dinheiro que nem o gasto… Mas «gastar» faz parte da «personalidade». Saúde — mais difícil. Este ar apeuré que vem logo ao de cima. A única defesa, obviamente, é o resguardo, o isolamento, a medida.
É fácil ser «simpático», difícil é perseverar, assumir o artifício da facilidade. Conservar os amigos. «Não és capaz de dar nada»,

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É curioso. Cheguei já a uma idade em que a deferência dos outros não sei se é por aquilo que realizei, se pelos anos que tenho.