Citação de

A Insustentável Leveza do Ser

Eis que ao despedir-vos, esse teu amigo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu irmão gémeo. Imediatamente uma alteração profunda se instalou nas vossas relações. Mas se te perguntares em quê, não é fácil responderes. Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo é igual nos mínimos pormenores, igual a face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as ideias, os sentimentos, as recordações, o todo integral da sua vida e do que ele é. Se percorreres todos os pormenores, encontrá-los-ás em hipótese absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada minúcia que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verificarás que nada escapa a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te indiferente seres amigo deste como eras amigo do outro. Pois se uma pessoa é aquilo que ela nos é, se uma pessoa é aquilo que a manifesta, se aquilo que nos define é aquilo que somos e se esse alguém que encontrámos em nada difere, em hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as relações com ele se perurbassem. Mas elas perturbam-se, porque esse alguém não é o outro. Em quê, porém, não é o outro?

E eis que se levanta agora flagrante essa coisa obscura que determina o «tu» de alguém. Não é nada. E é tudo. Porque toda a sua pessoa está naquilo que a diz – e no entanto não está. Toda a sua pessoa se revela no que vem à superfície ou aí se anuncia, e no entanto alguma coisa ficou ainda atrás, indizível e inacessível, fugidia e flagrante – início puro e categórico, intocável e nula realidade, e no entanto fulgurante e categórica realidade. Está aí e não se vê, assinala uma irredutibilidade e todavia personifica-se em tudo o que a manifesta. É cognoscível e furta-se, é inegável e não podemos apreendê-la. Mas é essa indizibilidade, essa coisa nenhuma, esse quid real, que marca e determina a verdade de se ser uma pessoa e não outra.