Engrinalda-me com os Teus Braços
Teu corpo de âmbar, gótico, afilado,
Sempre velado de cheirosos linhos,
Teu corpo, aprilino prado,
Por onde o meu desejo, pastor brando,
Risonho há-de viver, pastoreando
Meus beiços, desinquietos cordeirinhos,
Teu corpo é esbelto, ó zagaia esguia,
Como as harpas que o pai de Salomão tangia!Teu corpo eléctrico, ogival,
Núbil, sequinho, perturbante,
É uma dispensa real:
Os teus olhos são duas cabacinhas
Cheias dum vinho estonteante
Os teus dentes são alvas camarinhas,
Os teus dedos, suavíssimos espargos,
E os teus seios, pêssegos verdes mas não amargos.Lira de nervos, glória das trigueiras,
Como tu és graciosa! As laranjeiras,
Desde que viste o sol com esses sóis amados,
Só vinte vezes perfumaram noivados!
Nobre e graciosa és, morena das morenas,
Como as senhoras de olhos belos,
Que passeavam nos jardins de Atenas
Com uma cigarra de ouro nos cabelos!Como tu, eu sou moço! e atrevido
Com Anceu, rei de Samos,
E jamais caçador me fez vencido,
Quando, caçando o javali, ando entre os ramos.
O meu peito é de jaspe,
Passagens sobre Reais
477 resultadosA Companhia da Literatura é Perigosa
A companhia da literatura é perigosa, tanto que eu, por vezes, a pessoas que aprecio não vejo motivos nenhuns para lhes aplaudir que leiam muito e penetrem tanto nos livros, e o que lhes desejo é o Bem, e qualquer um que tenha lido por exemplo Kafka conhece perfeitamente «quanta angústia excessiva para nada» (como dizia Pessoa) há na literatura.
Como diz Magris: «Kafka sabia perfeitamente que a literatura o afastava do território da morte e permitia-lhe compreender a vida, mas deixando-o de fora. Assim como lhe permitia compreender a grandeza do padre judeu, modelo de homem, mas não lhe permitia precisamente sê-lo.»
Precisamente porque a literatura nos permite compreender a vida, deixa-nos fora dela. É duro, mas às vezes é o melhor que nos pode acontecer. A leitura, a escrita, buscam a vida, mas podem perdê-la precisamente porque estão inteiramente concentradas na vida e na sua própria busca.
Talvez seja a melancolia da tarde em que estou a escrever isto, mas a verdade é que estou a falar de um nó inextricável de bem e de mal, de luzes e sombras inerentes à leitura e à literatura. Tudo isto é duro, para quê nos enganarmos. Trata-se de uma dureza que,
Onde Há Inveja, não Há Amizade
Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste: pano é que não toma nunca bem esta tinta; que a Lua recebe a claridade do Sol, e o rosto, do coração. Nada dá quem não dá honra no que dá: não tem que agradecer quem, no que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai o que com ela se compra. Nada se dá de graça o que se pede muito. Está certo! Quem não tem uma vida tem muitas. Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar, e pouco que louvar. Nenhuma cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram, podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça sem almas, como este purgatório a que chamais honra; donde muitas vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há inveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação. Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora, ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E para muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que algo tiene en el cuerpo,
Dificuldade de Prever o Comportamento de qualquer Pessoa, o Nosso Inclusivamente
Sendo variável o nosso “eu”, que é dependente das circunstâncias, um homem jamais deve supor que conhece outro. Pode somente afirmar que, não variando as circunstâncias, o procedimento do indivíduo observado não mudará. O chefe de escritório que já redige há vinte anos relatórios honestos, continuará sem dúvida a redigi-los com a mesma honestidade, mas cumpre não o afirmar em demasia. Se surgirem novas circunstâncias, se uma paixão forte lhe invadir a mente, se um perigo lhe ameaçar o lar, o insignificante burocrata poderá tornar-se um celerado ou um herói.
As grandes oscilações da personalidade observam-se quase exclusivamente na esfera dos sentimentos. Na da inteligência, elas são muito fracas. Um imbecil permanecerá sempre imbecil.
As possíveis variações da personalidade, que impedem de conhecermos a fundo os nossos semelhantes, também obstam a que cada qual se conheça a si próprio. O adágio “Nosce te ipsum” dos antigos filósofos constitui um conselho irrealizável. O “eu” exteriorizado representa habitualmente uma personalidade de empréstimo, mentirosa. Assim é, não só porque atribuímos a nós mesmos muitas qualidades e não reconhecemos absolutamente os nossos defeitos, como também porque o nosso “eu” contém uma pequena porção de elementos conscientes, conhecíveis em rigor, e, em grande parte,
O próprio sonho me castiga. Adquiri nele tal lucidez que vejo como real cada coisa que sonho.
Os Meus Sonhos São Mais Belos que a Conversa Alheia
Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia.
Devo-me a humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus.
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.
O real serve-nos para fabricar melhor ou pior um pouco de ideal.
O real e o verdadeiro corresponde a uma minoria que o mundo está determinado a exterminar.
No meu caso, a literatura é uma espécie de vingança. É algo que me dá aquilo que a vida real não me pode dar – todas as aventuras, todo o sofrimento. Todas as experiências que eu só posso viver na na imaginação, a literatura completa-as.
Enquanto a pessoa continuar pensando que o corpo carnal é existência verdadeira, ela ainda não anulou, isto é, não o crucificou. Logo, não nasceu de novo, não renasceu em espírito. Sua vida ainda é de natureza carnal e não de natureza divina. Quem considera o corpo como existência real e fala no dualismo espírito-carne, ainda não despertou para a Verdade.
Sou Lúcido
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar…).Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
‘As normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Todos os bons intelectos têm repetido, desde o tempo de Bacon, que não pode haver qualquer conhecimento real senão aquele baseado em fatos observáveis.
O homem culto é aquele que sabe encontrar um significado bonito para as coisas bonitas. Para ele a esperança é um fato real
Aspiração
Sinto que há na minha alma um vácuo imenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;
Muita vez, ó poeta, a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,
E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes comoções da verde mocidade,
E responde sorrindo à cruel realidade.Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;
Tu que corres, como eu, na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmã junto a irmã,
Em santa comunhão, sem cárcere, sem véus.
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
Tarja de luto a folha em que lhe deixa escritas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro,
Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Os verdadeiros artistas criam coisas reais e que serão usadas.
Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existência real de outra pessoa.
Elementos de Vitória
Estão cheias as livrarias de todo o mundo de livros que ensinam a vencer. Muitos deles contêm indicações interessantes, por vezes aproveitáveis. Quase todos se reportam particularmente ao êxito material, o que é explicável, pois é esse o que supremamente interessa a grande maioria dos homens.
A ciência de vencer é, contudo, facílima de expor; em aplicá-la, ou não, é que está o segredo do êxito ou a explicação da falta dele. Para vencer – material ou imaterialmente – três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à falta de melhor nome, se chama sorte.
Não é o trabalho, mas o saber trabalhar, que é o segredo do êxito no trabalho. Saber trabalhar quer dizer: não fazer um esforço inútil, persistir no esforço até o fim, e saber reconstruir uma orientação quando se verificou que ela era, ou se tornou, errada.
Aproveitar oportunidades quer dizer não só não as perder, mas também achá-las. Criar relações tem dois sentidos – um para a vida material, outro para a vida mental. Na vida material a expressão tem o seu sentido directo. Na vida mental significa criar cultura.
A falsidade eterna da poesia é que nela os acontecimentos decorrem num tempo diferente do real.
Anoitece em Inferno a Minha Casa
Anoitece em inferno a minha casa.
Fico com este começo de verso
a serenar a exaltação de não dizer nada.
Deixem-me com este sorriso a morrer
por uma sílaba mais real onde um verso
me sossegue
com unhas de lama e sangue,
como garras.
Anoitece em inferno a minha casa.
Fica a certeza de não ter fim o que
de inutilidades se basta,
ou apenas o instante em que,
por um verso, eu fui
à outra parte da casa.