para uma canção de embalar
embalo a minha filha joana que acordou num berreiro.
a casa está às escuras, vou passando com cuidado
para não dar encontrões nos móveis, embalo esta menina
que se calou mas está de olho muito aberto e quer brincar,
e há um halo de luz parda a coar-se pelas persianas
e Ă s vezes uns farĂłis riscando estrias a correrem pelo tecto.levo-a bem presa ao colo, toda de porcelana pesadinha,
enquanto a irmã está a dormir meio atravessada nos lençóis.
ao chegar-me a outra janela vejo as luzes fugindo na auto-estrada
em direcção ao rio, a uma placa da lua sobre o rio,
e trauteio «já gostava de te ve-er», enquanto acendo o fogão
para aquecer o leite e embalo a minha filha e a outra está a dormir.oxalá cresçam ambas airosas e bem seguras,
e possam ir na vida serenamente como os rios correm,
ou como os veleiros voam, ou como elas agora respiram
em cadências regulares neste silêncio táctil.
a meio da noite um homem acordou no sossego da casa
e pĂ´s-se a cuidar do sono das suas filhas pequenas.
Passagens sobre Contentamento
104 resultadosO que Ă© Dar a Vida?
Dar a vida Ă© amar. Abdicar de si… em favor de um outro. Vencer egoĂsmos e medos com a convicção de que dar-se nunca Ă© um excesso nem uma cobardia.
Dar a vida é perder-se para se encontrar. Entregar-se para se receber… É aparecer, sair de si até ao ponto de se poder ver bem diante dos próprios olhos.
Dar a vida é vivê-la tal como ela é na essência: generosa! Ser mais vida na vida de outro alguém. Cuidar da existência do outro com a sua… dar a vida é ser outro. Melhor. Muito.
Dar a vida Ă© ser um sorriso apenas com um olhar. É oferecer lágrimas a quem já perdeu as suas. Ser um silĂŞncio onde há paz… e uma melodia que revela que o melhor do mundo repousa em nĂłs… Ă espera de nĂłs.Dar a vida Ă© reconhecer a beleza que há neste mundo. No outro e no mundo do outro. É contribuir para o equilĂbrio e ficar em harmonia… com tudo e com cada coisa, compreendendo que a verdadeira alegria Ă© a coisa mais sĂ©ria da vida.
Dar a vida Ă© guardar-se para o momento oportuno,
Horas Breves de Meu Contentamento
Horas breves de meu contentamento,
Nunca me pareceo, quando vos tinha,
Que vos visse tornadas tĂŁo asinha,
Em tĂŁo compridos dias de tormento.
Aquelas torres, que fundei no vento,
O vento as levou já, que as sostinha;
Do mal, que me ficou, a culpa Ă© minha,
Que sobre coisas vĂŁs fiz fundamento.
Amor, com rosto ledo e vista branda,
Promete quanto dele se deseja,
Tudo possĂvel faz, tudo segura;
Mas des que dentro n’alma reina e manda,
Como na minha fez, quer que se veja
QuĂŁo fugitivo Ă©, quĂŁo pouco dura.
A Minha Infelicidade
A evolução foi simples. Quando eu ainda estava contente queria estar descontente, e, com todos os meios que o tempo e a tradição me ofereciam, lancei-me no descontentamento — e entĂŁo queria outra vez voltar a trás. Assim, fui sempre descontente, atĂ© com o meu contentamento. Estranho, como uma coisa a fingir, se usada sistematicamente, se pode tornar realidade. Jogos infantis (embora eu tivesse bem consciĂŞncia de que eles eram infantis) marcaram o começo do meu declĂnio intelectual. Cultivei deliberadamente um tique facial, por exemplo, ou entĂŁo andava pelo Graben com os braços cruzados atrás da cabeça. Um jogo repugnantemente infantil mas com ĂŞxito (o meu trabalho literário começou da mesma maneira; sĂł mais tarde, durante a sua evolução, Ă© que veio uma paragem, infelizmente). Se Ă© possĂvel forçar assim a infelicidade sobre nĂłs, Ă© possĂvel forçar o que quer que seja sobre nĂłs. Uma grande parte da minha evolução parece contradizer-me, na medida em que contradiz a minha natureza pensar nisso, nĂŁo posso afiançar que os primeiros laivos da minha infelicidade eram já uma necessidade interior; eles devem de facto ter uma necessidade, mas nĂŁo uma necessidade interior — eles lançaram-se sobre mim como um enxame de moscas e poderiam ter sido afastados de mim com a mesma facilidade.