A Idade
Ao princípio, era a doença de ser, pura e simples
exaltação das trevas de que a casa era a luz do mundo.
Ao princípio, estava o amor oculto no secreto fio
da memória do mundo. Ao princípio, era o insondáveldesconhecido, aberto nas mãos maternais, sortilégio
do mundo. Ao princípio, vinha o silêncio como ponto
de encontro do nada do mundo. Ao princípio, chegava
a dor da pedra opressa nos corações, sublime prodígiodo mundo. Ao princípio, revelava-se o inominável,
o imóvel, o informe, a intimidade temida do mundo.
Ao princípio, clamava-se a concórdia e a piedade,afirmação absoluta da constância do mundo.
Ao princípio, era o calor e a paz. Depois, a casa
abriu-se à terra fértil, a madre terra, a medonha terra.
Passagens sobre Coração
2137 resultadosPor Que Falar De Amor ?
“Por Que Falar De Amor ?”
I
Sonhei fazer-te minha só: – rainha!
Quiseste ser apenas cortesã.
E o desejo a crescer, – planta daninha-
foi tornando este amor sem amanhã.Para mim, não bastava seres minha;
quis no céu, por a estrela da manhã,
e acabei por moldar-me ao que convinha
a essa tua paixão de terra chã.Se não deste valor ao coração,
mas aos sentidos, em que se consomem
restos de um erotismo em combustão,por que falar de amor? Foste lograda;
tu não tens aos teus pés o amor de um homem,
tens um fauno de rastros… e mais nada!
LXXI
Eu cantei, não o nego, eu algum dia
Cantei do injusto amor o vencimento;
Sem saber, que o veneno mais violento
Nas doces expressões falso encobria.Que amor era benigno, eu persuadia
A qualquer coração de amor isento;
Inda agora de amor cantara atento,
Se lhe não conhecera a aleivosia.Ninguém de amor se fie: agora canto
Somente os seus enganos; porque sinto,
Que me tem destinado estrago tanto.De seu favor hoje as quimeras pinto:
Amor de uma alma é pesaroso encanto;
Amor de um coração é labirinto.
Este é o Verdadeiro Amor de que Tanto se Fala
Estranho e inexplicável sentimento este! Que quando sinto transbordar-me do coração toda esta imensa ventura, acomete-me então um terror grande – parece-me que é impossível ser tão feliz – que o Mundo não comporta esta ventura celeste, e que chegado ao ápice de todas as felicidades já será forçoso declinar. (…) Sucede-te isto também a ti, esposa querida do meu coração? Conheces tu também este tormento, anjo divino?
Ai, Rosa, minha doce Rosa, este que nós sentimos, este é o verdadeiro amor de que tanto se fala, e tão pouco se sabe o que é. São regiões pouco conhecidas em que a cada passo se encontram belezas nunca sonhadas, terrores inexplicáveis, felicidades sem par e tristezas que não têm nome.(…) Oh! Como se riria de mim quem lesse esta carta, Rosa! – De mim que eles julgam um incrédulo, um céptico, e cujas palavras sarcásticas no Mundo não significam senão a mais perfeita indiferença por tudo! Há dois homens em mim, vida desta alma; um é o que vêem todos, o que fez a experiência, a sociedade e o conhecimento de suas misérias e nulidades – o outro é o que tu fizeste, é a criação do teu amor,
Reparar, quando o coração repara mais que o juízo, é amar.
Somente se Queixa de Amorosas Esquivanças
Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porqu’inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem um coração atormentado.Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.
O Que Se Escuta Numa Velha Caixa De Música
Nunca roubei um beijo. O beijo dá-se,
ou permuta-se, mas naturalmente.
Em seu sabor seria diferente
se, em vez de ser trocado, se furtasse.Todo beijo de amor, longo ou fugace,
deve ser u prazer que a ambos contente.
Quando, encantado, o coração consente,
beija-se a boca, não se beija a face.Não toquemos na flor maravilhosa,
seja qual for a sedução do ensejo,
vendo-a ofertar-se, fácil e formosa.Como os árabes, loucos de desejo,
amemos a roseira, olhando a rosa,
roubemos a mulher e não o beijo.
Atenção aos Detalhes do Comportamento dos Outros
Devemos ter muito cuidado para não emitir uma opinião demasiado favorável de um homem que acabamos de conhecer; pelo contrário, na maioria das vezes, seremos desiludidos, para nossa própria vergonha ou até para nosso dano. A esse respeito, uma sentença de Séneca merece ser mencionada: Podem-se obter provas da natureza de um carácter também a partir de miudezas. Justamente nestas é que o homem, quando não se procura conter, é que revela o seu carácter. Nas acções mais insignificantes, em simples maneiras, pode-se amiúde observar o seu egoísmo ilimitado, sem a menor consideração para com os outros e que, em seguida, embora dissimulado, não se desmente nas grandes coisas.
Não se deve perder semelhante oportunidade. Quando alguém procede sem consideração nos pequenos acontecimentos e circunstâncias da vida diária, intentando obter vantagens ou comodidade, em prejuízo de outrem, nas coisas em que se aplica a máxima de a lei não se ocupa com ninharias, ou ainda apropriando-se do que existe para todos, etc., podemos convencer-nos de que no coração de tal indivíduo não reside justiça alguma; ele será um patife também nas grandes situações, caso as suas mãos não sejam atadas pela lei e pela autoridade. Não lhe permitamos, pois,
Aerograma
Deus queira que esta
Vos mate a fome aos sentidos
Por agoraDeus queira que esta
Vos guarde a dor aos gemidos
Noite foraDançamos fandangos
Sobre uma navalha
Pássaros em bando
Em nuvens de limalhaE assim eu cá vou indo.
Vem-me o fel à boca
As tripas ao coração
A noite trás a forca pela sua mãoSonho com fantasmas
De pele preta e luzidia
Com manuais de coragem e cobardiaDizem que há sempre
Um barco azul para partir
Nosso hino
Embarca a alma
E os restos de um rosto a sorrir
Do destinoPõe o meu retrato
No altar de S. João
E uma vela com formato de canhãoCansa-se esta escrita
Com dois dedos num baraço
Assim o quis a desdita
Vai um abraço.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não está lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Só se sente nos ouvidos o próprio coração. Pois nós não fomos feitos senão para o pequeno silêncio.
Noites em Claro
Passas em claro as noites a chorar;
Dia a dia, teu rosto empalidece…
Faze tu, pobre Mãe, por serenar,
Santa Resignação sobre ela desce!Rochedo que a penumbra desvanece,
Tu, por acaso, não lhe podes dar
Um pouco d’esse frio que entorpece
O coração e o deixa descançar?…Jamais! Não ha remedio! Nem as horas
Que passam! Toda a fria noite choras;
Tua sombra, no chão, é mais escura.Soffres! E sinto bem que a tua dôr,
Como se fôra um beijo, acêso amôr,
Vae-lhe aquecer, ao longe, a sepultura.
Deves cuidar bem dos objetos alheios como se fossem teus; do contrário, teu coração não estará em sintonia com a vontade de Deus. Em todas as coisas se aloja a Vida de Deus; por isso, aquele que não tem zelo por uma folha de papel ou uma xícara que seja, é uma pessoa que não ama a Deus. Vendo-se os pratos trincados na cozinha, pode-se perceber a escassez de amor da pessoa que deles cuida.
Na Desesperação Já Repousava
Na desesperação já repousava
o peito longamente magoado,
e, com seu dano eterno concertado,
já não temia, já não desejava;quando üa sombra vã me assegurava
que algum bem me podia estar guardado
em tão fermosa imagem que o treslado
n’alma ficou, que nela se enlevava.Que crédito que dá tão facilmente
o coração áquilo que deseja,
quando lhe esquece o fero seu destino!Oh! deixem-me enganar, que eu sou
contente; que, posto que maior meu dano seja,
fica-me a glória já do que imagino.
A Eterna Ausência
Eu aguardei com lágrimas e o vento
suavizando o meu instinto aberto
no fumo do cigarro ou na alegria das aves
o surgimento anónimo
no grande cais da vida
desse navio nocturno
que me trazia aquela com lábios evidentes
e possuindo um perfil indubitável,
mulher com dedos religiosos
e braços espirituais…Aquela mulher-pirâmide
com chamas pelo corpo
e gritos silenciosos nas pupilas.Amante que não veio como a noite prometera
numa suspensa nuvem acordar
meu coração de carne e alguma cinza…Amante que ficou não sei aonde
a castigar meus dias involúveis
ou a afogar meu sexo na caveira
deste carnal desespero!…
A clemência é a chave dos corações.
Canção de Batalha
Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,
Que andaram contemplando a Lua branca e fria…
Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia
E já rasga o arado as terras fumegantes…Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros d’arsenais;
E bater, é bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze, as lanças e os punhais.Acendei a fornalha enorme — a Inspiração.
Dai-lhe lenha — A Verdade, a Justiça, o Direito —
E harmonia e pureza, e febre, e indignação;
E p’ra que a labareda irrompa, abri o peito
E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!
O poeta é como o Sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora…
Queimemo-nos a nós, iluminando a Terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!
Saber Terminar uma Amizade Indesejável
Sucede, também, como por calamidade, que algumas vezes é necessário romper uma amizade: porque passo agora das amizades dos sábios às ligações vulgares. Muitas vezes quando os vícios se revelam num homem, os seus amigos são as suas vítimas como todos os outros: contudo é sobre eles que recai a vergonha. É preciso, pois, desligar-se de tais amizades —, afrouxando o laço pouco a pouco e, como ouvi dizer a Catão, é necessário descoser antes que despedaçar, a menos que se não haja produzido um escândalo de tal modo intolerável, que não fosse nem justo nem honesto, nem mesmo possível, deixar de romper imediatamente.
Mas se o carácter e os gostos vierem a mudar, o que acontece muitas vezes; se algum dissentimento político separar dois amigos (não falo mais, repito-o, das amizades dos sábios, mas das afeições vulgares), é preciso tomar cuidado em, desfazendo a amizade, não a substituir logo pelo ódio. Nada mais vergonhoso, com efeito, que estar em guerra com aquele que se amou por muito tempo.
(…) Apliquemo-nos, pois, antes de tudo, em afastar toda a causa de ruptura: se contudo, acontecer alguma, que a amizade pareça antes extinta do que estrangulada. Temamos sobretudo que ela não se transforme em ódio violento,
Quanto mais puro for um coração, mais perto estará de Deus.
A Grande Literatura
Os romances nunca serão totalmente imaginários nem totalmente reais. Ler um romance é confrontar-se tanto com a imaginação do autor quanto com o mundo real cuja superfície arranhamos com uma curiosidade tão inquieta. Quando nos refugiamos num canto, nos deitamos numa cama, nos estendemos num divã com um romance nas mãos, a nossa imaginação passa o tempo a navegar entre o mundo daquele romance e o mundo no qual ainda vivemos. O romance nas nossas mãos pode-nos levar a um outro mundo onde nunca estivemos, que nunca vimos ou de que nunca tivemos notícia. Ou pode-nos levar até às profundezas ocultas de um personagem que, na superfície, parece-se às pessoas que conhecemos melhor. Estou a chamar a atenção para cada uma dessas possibilidades isoladas porque há uma visão que acalento, de tempos a tempos, que abarca os dois extremos. Às vezes tento conjurar, um a um, uma multidão de leitores recolhidos num canto e aninhados nas suas poltronas com um romance nas mãos; e também tento imaginar a geografia de sua vida quotidiana. E então, diante dos meus olhos, milhares, dezenas de milhares de leitores vão tomando forma, distribuídos por todas as ruas da cidade, enquanto eles lêem, sonham os sonhos do autor,