O Saber Altera a Economia de um Ser
O que aprendemos por nós próprios, seja que conhecimento for extraído do nosso próprio fundo, é algo que teremos que expiar por um suplemento de desequilíbrio. Fruto de uma desordem íntima, de uma doença definida ou difusa, de uma perturbação na raiz da nossa existência, o saber altera a economia de um ser. Cada um de nós terá que pagar pelo mais pequeno golpe que vibra num universo criado para a indiferença e para a estagnação; cedo ou tarde, arrepender-se-á, arrepender-nos-emos, de o não ter, ou de o não termos, deixado intacto.
O que sendo verdade para o conhecimento é mais verdade ainda para a ambição, porque invadir o terreno de outrem acarreta consequências mais graves e mais imediatas do que invadir o terreno do mistério ou simplesmente da matéria.
Começamos por fazer tremer os outros, mas os outros acabam por nos comunicar os seus terrores. É por isso que os tiranos, também eles, vivem no pavor. O que o nosso futuro senhor há-de conhecer será sem dúvida exacerbado por uma felicidade sinistra, como ninguém experimentou comparável, à medida do solitário por excelência, erguido diante da humanidade toda, semelhante a um deus entronizado no medo, num pânico omnipotente,
Passagens sobre História
759 resultadosO que é para um homem a vergonha abstracta de um país quando comparada com a sua vergonha pessoal, as dores silenciosas da sua humilhação? No grande plano da História, o sofrimento é sobrevalorizado pelo colectivo e diluído na multidão. No plano fechado do indivíduo, as angústias têm de ser digeridas a frio, na solidão, sem que ninguém nos possa valer.
A história é a caixa forte da memória.
Quem Somos
Quem somos, senão o que imperfeitamente
sabemos de um passado de vultos
mal recortados na neblina opaca,
imprecisos rostos mentidos nas páginas
antigas de tomos cujas palavrasnão são, de certo, as proferidas,
ou reproduzem sequer actos e gestos
cometidos. Ergue-se a lâmina:
metal e terra conhecem o sangue
em fronteiras e destinos poucoa pouco corrigidos na memória
indecifrável das areias.
A lápide, que nomeia, não descreve
e a história que o historia,
eco vário e distorcido, é jádiversa e a si própria se entretece
na mortalha de conjecturados perfis.
Amanhã seremos outros. Por ora
nada somos senão o imperfeito
limbo da legenda que seremos.
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
O fim da arte é quase divino: ressuscitar, se faz história; criar, se faz poesia.
Derradeira Inspiração
Este é o último verso onde talvez
a tua imagem seja percebida,
– o instante derradeiro em que te vês
a inspirar o meu verso e a minha vida…Guarda-o depois das linhas que tu lês
morrerás… e hás de ser sempre esquecida…
– não tornarei sequer uma só vez
a falar na lembrança mais querida…Este é o último adeus que ainda te dou,
– termina aqui a imensa trajetória
que o teu destino sobre o meu traçou…Daqui por diante… avançarei sozinho,
e nunca mais te encontrarás na história
dos versos que fizer em meu caminho!
Há mais realidade no vazio, na cerimónia em que se tece o vazio, do que na história.
Nada pode ser tão valioso como fazer parte integrante da história de um país.
A história é um presídio de imortais.
De Deus e da morte não se tem contado senão histórias, e esta é mais uma delas.
Quero-te Apenas Porque a Ti Eu Quero
Não te quero senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.Quero-te apenas porque a ti eu quero,
a ti odeio sem fim e, odiando-te, te suplico,
e a medida do meu amor viajante
é não ver-te e amar-te como um cego.Consumirá talvez a luz de Janeiro,
o seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.Nesta história apenas eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.
História: um relato geralmente falso de acontecimentos geralmente fúteis, contados por governantes geralmente velhacos e soldados geralmente tolos.
A verdade é a alma da história.
A história da humanidade é um processo contínuo de transformação de valores. É verdade que o tempo que vivemos se caracteriza pelo desaparecimento de valores tradicionais, sem que apareçam, de uma forma clara, valores novos capazes de informar eticamente as sociedades.
Aos Vindouros, se os Houver…
Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
O Tédio é a Raiz de Todo o Mal
Não admira, pois, que o mundo vá de mal a pior e que os males aumentem cada vez mais, à medida que aumenta o tédio, e o tédio é a raiz de todo o mal. A história deste pode acompanhar-se desde os primórdios do mundo. Os deuses estavam entediados, pelo que criaram o homem. Adão estava entediado por estar sozinho, e por isso foi criada Eva. Assim o tédio entrou no mundo e aumentou na proporção do aumento da população. Adão aborrecia-se sozinho, depois Adão e Eva aborreceram-se juntos, depois Adão e Eva e Caim e Abel aborreceram-se en famille; depois a população do mundo aumentou e os povos aborreceram-se en masse. Para se divertirem congeminaram a ideia de construir uma torre tão alta que chegasse ao céu. Esta ideia, por sua vez, é tão aborrecida como a torre era alta, e constitui uma prova terrível de como o tédio se tornou dominante.
A história ensina-nos que o homem não teria alcançado o possível se, muitas vezes, não tivesse tentado o impossível.
O que a história nos ensina é que a história não nos ensina nada.