As cidades não são pátrias. É na província que se encontra o carácter e a mística duma nação, e os grandes escritores deixam-se amarrar ao espírito das terras nulas e sensatas a que extraem um brilho que a pedra polida da capital não tem.
Passagens sobre Místicos
78 resultadosOs Pastores
Guardavam certos pastores
seus rebanhos, ao relento,
sobre os céus consoladores
pondo a vista e o pensamento.Quando viram que descia,
cheio de glória fulgente,
um anjo do céu do Oriente,
que era mais claro que o dia.Jamais os cegara assim
luz do meio-dia ou manhã.
Dir-se-ia o audaz Serafim,
que um dia venceu Satã.Cheios de assombro e terror,
rolaram na erva rasteira.
– Mas ele, com voz fagueira,
lhes diz, com suave amor:«Erguei-vos, simples, daí,
humildes peitos da aldeia!
Nasceu o vosso Rabi,
que é Cristo – na Galileia!Num berço, o filho real,
não o vereis reclinado.
Vê-lo-eis pobre e enfaixado,
sobre as palhas de um curral!Segui dos astros a esteira.
Levai pombas, ramos, palmas,
ao que traz uma joeira
das estrelas e das almas!»Foi-se o anjo: e nas neblinas,
então celestes legiões
soltam místicas canções,
sobre violas divinas.Erguem-se, enfim, os pastores
e vão caminhos dalém,
com palmas, rolas, e flores,
Regenerada
De mãos postas, à luz de frouxos círios
Rezas para as Estrelas do Infinito,
Para os Azuis dos siderais Empíreos
Das Orações o doloroso rito.Todos os mais recônditos martírios,
As angústias mortais, teu lábio aflito
Soluça, em preces de luar e lírios,
Num trêmulo de frases inaudito.Olhos, braços e lábios, mãos e seios,
Presos, d’estranhos, místicos enleios,
Já nas Mágoas estão divinizados.Mas no teu vulto ideal e penitente
Parece haver todo o calor veemente
Da febre antiga de gentis Pecados.
A Vaidade de Obrar Bem
De todas as paixões, a que mais se esconde, é a vaidade; e se esconde de tal sorte, que a si mesma se oculta, e ignora: ainda as acções mais pias nascem muitas vezes de uma vaidade mística, que quem a tem, não a conhece, nem distingue: a satisfação própria, que a alma recebe, é como um espelho em que nos vemos superiores aos mais homens pelo bem que obramos, e nisso consiste a vaidade de obrar bem.
Num Leque
Na gaze loura d’este leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado…
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado!Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado…
Até minh’alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!
O Significado dos Sonhos
Os meu sonhos eram de muitas espécies mas representavam manifestações de um único estado de alma. Ora sonhava ser um Cristo, a sacrificar-me para redimir a humanidade, ora um Lutero, a quebrar com todas as convenções estabelecidas, ora um Nero, mergulhado em sangue e na luxúria da carne. Ora me via numa alucinação o amado das multidões, aplaudido, desfilando ao longo (…), ora o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadoramente para fora das suas casas, dos seus lares, ora o desprezado por todos embora o eleito do bem, por todos a sacrificar-me. Tudo o que lia, tudo o que ouvia, tudo o que via — cada ideia vinda de fora, cada (…), cada acontecimento era o ponto de partida de um sonho. Vinha de um circo e ficava em casa ousando imaginar-me um palhaço, com luzes em arco à minha volta. Via soldados passarem na minha mente a falarem com uma visão de mim próprio, tratando-me por capitão, chefiando, ordenando, vitorioso. Quando lia algo acerca de aventureiros imediatamente me convertia neles, por completo. Quando lia algo acerca de criminosos, morria por cometer crimes até me apavorar com o meu desarranjo mental. Conforme as coisas que via, ou ouvia, ou lia, vivia em todas as classes sociais,
As explicações místicas passam por profundas; a verdade é que nem sequer são superficiais.
À Janela De Garcia De Resende
Janela antiga sobre a rua plana…
Ilumina-a o luar com seu clarão…
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão…Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez…Quem sabe?…Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão…Mística dona, em outras Primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado…Bandeiras! Pajens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!…
Hora Mística
Noite caindo … Céu de fogo e flores.
Voz de Crepúsculo exalando cores,
O céu vai cheio de Deus e de harmonia.
Silêncio … Eis-me rezando aos fins do dia.Névoa de luz criando imagens na água,
Nome das águas esculpindo os céus,
Tarde aos relevos húmidos de frágua,
Boca da noite, eis-me rezando a Deus.Eis-me entoando, a voz de cinza e ouro,
— Oh, cores na água vindo às mãos em branco! —
Minha ópera de Sol ao último arranco.E, oh! hora mística em que o olhar abraso,
— Sol expirando aos Pórticos do Ocaso! —
Dobra em meu peito um oceano em coro.
O Homem e o Mar
Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!E há séculos mil, séc’ulos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n’uma luta selvagem,
De tal modo gostais n’uma luta selvagem,
Eternos lutador’s ó irmãos implacáveis!Tradução de Delfim Guimarães
Alma a Sangrar
Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas à noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em místicos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
– Sem nos dar braços para os alcançar?!…
Passo Triste no Mundo
Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
Passo no mundo alheio, sem o ver,
E místico, ideal e vagabundo,
Sinto erguer-se minh’Alma do profundo
Abismo do seu Ser.Vivo de Mim, em Mim, e para Mim,
E para Deus em Mim ressuscitado,
Sou Saudade do Longe donde vim,
E sou Ânsia do Longe, em que por fim
Serei transfigurado.Vivo de Deus, em Deus, e para Deus,
E minh’alma, sonâmbula, esquecida,
Nele fitando os tristes olhos seus,
Passa triste e sozinha, olhando os céus,
No caminho da Vida.Fui Outro, e, Outro sendo, Outro serei;
Outro vivendo a mística beleza,
Por esta humana forma que encarnei,
Por lágrimas de sangue que chorei
Na terra da tristeza.Espírito na Dor purificado,
Ser que passa no mundo, sem o ver,
Em esta pobre terra de pecado,
Amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser.
A Crença só se Mantém pela Ritualização
Uma verdade racional é impessoal e os factos que a sustentam ficam estabelecidos para sempre. Sendo, ao contrário, pessoais e baseadas em concepções sentimentais ou místicas, as crenças são submetidas a todos os factores susceptíveis de impressionar a sensibilidade. Deveriam, portanto, ao que parece, modificar-se incessantemente.
As suas partes essenciais mantêm-se, contudo, mas cumpre que sejam constantemente alentadas. Qualquer que seja a sua força no momento do seu triunfo, uma crença que não é continuamente defendida logo se desagrega. A história está repleta de destroços de crenças que, por essa razão, tiveram apenas uma existência efémera. A codificação das crenças em dogmas constitui um elemento de duração que não poderia bastar. A escrita unicamente modera a acção destruidora do tempo.
Uma crença qualquer, religiosa, política, moral ou social mantém-se sobretudo pelo contágio mental e por sugestões repetidas. Imagens, estátuas, relíquias, peregrinações, cerimônias, cantos, música, prédicas, etc., são os elementos necessários desse contágio e dessas sugestões.
Confinado num deserto, privado de qualquer símbolo, o crente mais convicto veria rapidamente a sua fé declinar. Se, entretanto, anacoretas e missionários a conservam, é porque incessantemente relêem os seus livros religiosos e, sobretudo, se sujeitam a uma multidão de ritos e de preces.
Os Tentáculos da Escrita
Os tentáculos da escrita. A escrita é um polvo, um molusco versátil. Tem infinitos recursos. Escapa sempre. Abstractiza-se. Disfarça-se, adensa-se, adelgaça-se, esconde-se. Impele-se rápida. Compreende tudo: ascese, consolo íntimo, entrega; fluxos, refluxos, invasões, esvaziamentos, obstinação feroz. O seu rigor é místico. É uma infinita demanda. Perscruta o inaudito. Sideral Alice atravessa todas as portas, todos os espelhos. Cruza, descobre, inventa universos. A escrita é um fragmento do espanto, já alguém o disse.
De Amor nada Mais Resta que um Outubro
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
A. L.
Não és a flor olímpica e serena
Que eu vejo em sonhos na amplidão distante;
Não tens as formas ideais de Helena,
As formas da beleza triunfante;Não és também a mística açucena,
A alva e pura Beatriz do Dante;
És a artista gentil, a flor morena
Cheia de aroma casto e penetrante.Não sei que graça, que esplendor, que arpejo
Eu sinto dentro d’alma quando vejo
Teu corpo aéreo, matinal, franzino…Faz-me lembrar as vívidas napeias,
E as formas vaporosas das sereias
Rendilhadas num bronze florentino.
Na Mazurka
Morava num palácio — estranha Babilônia
De arcadas colossais, de impávidos zimbórios,
Alcovas de damasco e torreões marmóreos,
Volutas primorais de arquitetura jônia.Assim, quando surgia em meio aos peristilos
Descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,
Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,
Cercam-na do belo os místicos sigilos!E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,
O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,
Vibrava nos salões, como uma adaga turca,Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,
— nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo…
Ao vê-la escultural no passo da Mazurka…
Espera…
Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!Espera… espera… ó minha sombra amada…
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!…
Faltam-nos hoje não apenas mestres da vida interior, mas simplesmente da vida, de uma vida total, de uma existência digna de ser vivida. Faltam cartógrafos e testemunhas do coração humano, dos seus infindos e árduos caminhos, mas também dos nossos quotidianos, onde tudo não é e é extraordinariamente simples. Falta-nos uma nova gramática que concilie no concreto os termos que a nossa cultura tem por inconciliáveis: razão e sensibilidade, eficácia e afetos, individualidade e compromisso social, gestão e compaixão, espiritualidade e sentidos, eternidade e instante. Será que do instante dos sentidos podemos fazer uma mística? Não tenhamos dúvidas: o que está dito permanece ainda por dizer.
As explicações místicas são consideradas profundas. Na verdade falta-lhes ainda muito para que sejam superficiais.