Questionação do Inquestionável
Toda a pergunta implica uma interrogação a um olhar vigilante. Mas a vigília cansa. Nunca porém o soubemos como hoje, porque só hoje verdadeiramente interrogamos – só hoje sabemos ser essa a questionação do inquestionável.
Mas reconhecemo-lo precisamente por termos interrogado. Porque ao longo da História, jamais o homem de facto interrogou, por não saber que interrogava. Esboçada embora há muito a questão do fundamental, ela perturbou-se-nos no entusiasmo de lhe responder em positivo ou negativo. Porque a negação não nega, a destruição não destrói, excepto se não há mais nada para destruir: até lá constrói ainda – nem que seja o próprio acto de destruir. Fazer e desfazer, com efeito, são iguais como acto e entusiasmo desse acto. A grande diferença não é a que separa um do outro, mas a que os separa a ambos de nós. A grande diferença é a que vai da segurança do falar à perturbação do silêncio; do «sim» ou «não» como limite, ao querer ir além do limite sem mais além para ir. Mas a luz que ilumina, o que iluminou? Que a ciência te explique o que é uma simples pedra, explicou por cima do que seria interessante explicar. Há uma questão ainda,
Passagens sobre Pedras
521 resultadosBarreiras de pedra não podem deter o amor.
Aquella Orgia
Nós eramos uns dez ou onze convidados,
– Todos buscando o gozo e achando o abatimento,
E todos afinal vencidos e quebrados
No combate da Vida inutil e incruento.Tocava o termo a ceia – e ia surgindo o alvor
Da madrugada vaga, etherea e crystallina,
A alguns trazendo a vida, e enchendo outros de horor,
Branca como uma flor de prata florentina.Todos riam sem causa. – A estolida batalha
Da Materia e da Luz travara-se afinal,
E eram já côr de vinho os risos e a toalha,
– E arrojavam-se ao ar os copos de crystal.Crusavam-se no ar ditos como facadas;
Escandalos de amor, historias sensuaes…
– Rolavam nos divans caindo, ás gargalhadas,
Sujos como truões, torpes como animaes.Um agitando o ar com risos desmanchados,
Recitava canções, farças, Hamlet e Ophelia;
– Outro perdido o olhar, e os braços encruzados,
De bruços, n’um divan, roia uma camelia!Outros fingindo a dôr, fallavam dos ausentes,
Das amantes, dos paes, com gritos d’afflicção,
– Um brandia um punhal, com ditos incoherentes;
O Incêndio De Roma
Raiva o incêndio. A ruir, soltas, desconjuntadas,
As muralhas de pedra, o espaço adormecido
De eco em eco acordando ao medonho estampido,
Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.E os templos, os museus, o Capitólio erguido
Em mármor frígio, o Foro, as erectas arcadas
Dos aquedutos, tudo as garras inflamadas
Do incêndio cingem, tudo esbroa-se partido.Longe, reverberando o clarão purpurino,
Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte.
Impassível, porém, no alto do Palatino,Nero, com o manto grego ondeando ao ombro, assoma
Entre os libertos, e ébrio, engrinaldada a fronte,
Lira em punho, celebra a destruição de Roma.
Ainda que fôssemos surdos e mudos como uma pedra, a nossa própria passividade seria uma forma de acção.
A Ordem das Coisas
Natura deficit, fortuna mutatur, deus omnia cernit. A natureza trai-nos, a sorte muda, um deus vê do alto todas estas coisas. Apertava ao dedo a mesa de um anel onde, num dia de amargura, mandava gravar estas palavras tristes; ia mais longe no desengano, talvez na blasfémia; acabava por achar natural, senão justo, que devíamos perecer. As nossas letras esgotam-se; as nossas artes adormecem; Pâncrates não é Homero; Arriano não é Xenofonte; quando tentei imortalizar na pedra a forma de Antínoo não encontrei Praxíteles. Depois de Aristóteles e de Arquimedes, as nossas ciências não progridem; os nossos progressos técnicos não resistiriam ao desgaste de uma longa guerra; mesmo os nossos voluptuosos desgostam-se da felicidade. O abrandamento dos costumes, o avanço das ideias no decorrer do último século é obra de uma infima minoria de bons espíritos; a massa continua ignara, feroz, quando pode, de qualquer forma egoísta e limitada, e há razões para apostar que ficará sempre assim. Procuradores a mais, publicanos ávidos, demasiados senadores desconfiados, demasiados centuriões brutais comprometeram adiantadamente a nossa obra; e os impérios, como os homens, já não têm tempo para se instruírem à custa das suas faltas. Onde quer que um tecelão remendar o seu pano,
Corremos Dentro dos Corpos
Como o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo.
Como sangue, somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos. O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto.
Amei a vida inteira e sei de cor as leis do amor. Umas são de pedra, outras de água transparente. A vida inteira e não sei ainda o caminho.
Rumor dos Fogos
hoje à noite avistei sobre a folha de papel
o dragão em celulóide da infância
escuro como o interior polposo das cerejas
antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos…dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens
podia beber a humidade aérea do musgo
derramar sangue nos dedos magoados
foi há muito tempo
quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever
o mundo reduzia-se a um berlinde
e as mãos eram pequenas
desvendavam os nocturnos segredos dos pinhaisnão quero mais perceber as palavras nem os corpos
deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras
prossigo caminho com estes ossos cor de malva
som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono
desta obra que fica por construir… o receio
de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
e teu rosto ter desaparecido no fundo do marficou-me esta mão com sua sombra de terra
sobre o papel branco… como é louca esta mão
tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas
Presídio
Nem todo o corpo é carne… Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco…?E o ventre, inconsistente como o lodo?…
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor… Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo…É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidiovulto da Primavera em pleno Outono…
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
Não Pode Existir Amor Sem Verdadeira Troca
Não te lembras de ter encontrado na vida aquela que se considera um ídolo? Que havia ela de receber do amor? Tudo, até a tua alegria de a encontrares, se torna homenagem para ela. Mas, quanto mais a homenagem custa, mais vale: ela saborearia melhor o teu desespero.
Ela devora sem se alimentar. Ela apodera-se de ti para te queimar à sua honra. Ela é semelhante a um forno crematório. Ela, na sua avareza, enriquece-se de várias capturas, julgando encontrar a alegria nessa acumulação. E não acumula mais do que cinzas. Porque o verdadeiro uso dos teus dons era caminho de um para o outro, e não captura.
Ela verá penhores nos teus dons e abster-se-á de tos conceder em paga. Na falta de arrebatamentos que te satisfariam, a falsa reserva dela far-te-á ver que a comunhão dispensa sinais. É marca da impotência para amar, não elevação do amor. Se o escultor despreza a argila, terá de modelar o vento. Se o teu amor despreza os sinais do amor a pretexto de atingir a essência, o teu amor não passa de um palavreado. Não descuides as felicitações, nem os presentes, nem os testemunhos.Serias capaz de amar a propriedade,
Soneto IV – A Uma Senhora
Dos meus lares, dos meus que choro ausente,
Me vieste acordar saudade ímpia,
Tu, amada do Anjo d’Harmonia,
Que te fazes ouvir tão docemente.Do piano o teclado obediente
Ao teu tocar encheu-se de magia,
E lá dos mortos na soidão sombria
Operou-se um milagre de repente.A morte sobre a fouce, entristecida,
Amarguradas lágrimas verteu,
Talvez do fero ofício arrependida!Bellini do sepulcro a pedra ergueu;
E, cheio de alegria desmedida,
C’um sorriso de glória um — bravo — deu.
Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.Outros, felizes, sejam os rouxinóis…
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
Se nunca tiveste um grande êxito, não sabes o que vales; o êxito é a pedra de toque do caráter
Do atrito de duas pedras chispam faíscas; das faíscas vem o fogo; do fogo brota a luz.
O Fundo é o que Menos Falta Faz
Será possível plantar uma faia num jardim assim tão pequeno? Portas e janelas dos sete «ateliers» contíguos ligam umas com as outras, no pequeno pátio onde eu e o meu irmão vivemos. A semente da faia é uma banana um tanto podre ou uma batata. Há umas velhas que não andam nada contentes connosco. Mas se a faia crescer, nunca será demasiado grande, e se não cresce, de que servirá plantá-la? Ora, ao plantá-la, os meus amigos foram dar com as pedras preciosas que eu tinha perdido.
Toda a gente forceja por criar uma atmosfera que a arranque à vida e à morte. O sonho e a dor revestem-se de pedra, a vida consciente é grotesca, a outra está assolapada. Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem as palavras definitivas. E, como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos.
O homem é feito de água. Seria uma estátua incolor e transparente, quase invisível, se não fosse a armação de pedra em que se firma e as várias imagens misteriosas reflectidas na sua superfície.
As Restrições dos Guardiões Morais
Parece-me a mim que o pressuposto em que se baseiam as acções restritivas dos nossos guardiões morais é simplesmente o de que o acesso à literatura proibida nos pode levar a comportar-se como animais. Mas pensar assim é insultar o reino animal. E, ao mesmo tempo, transformar paixão, o maior atributo do homem, numa caricatura. A gama da paixão humana é quase ilimitada, atingindo alturas e profundidades impensáveis. Precisamente por abarcar tais extremos é a paixão a autêntica pedra de toque da nossa humanidade, e talvez também da nossa divindade. De todas as criaturas da terra, o homem é a única de comportamento imprevisível. Há em nós alguma coisa de toda a criação. Quando nos é negada a menor parcela de liberdade, ficamos espiritualmente limitados e mutilados. É a plena consciência da nossa natureza múltipla e a integração da miríade de elementos de que somos compostos que nos faz completos, que nos faz humanos. A religião faz de nós santos, ou apenas bons cidadãos, mas o que faz de nós homens, o que nos faz humanos até ao âmago, é a liberdade. É uma palavra terrível, a liberdade, para aqueles que viveram toda a vida mentalmente algemados.
O Homem distingui-se dos homens. Nada se diz de essencial acerca da catedral se apenas falarmos das pedras. Nada se diz de essencial a respeito do Homem se procurarmos defini-lo pelas qualidades humanas.