Sátira
Besta e mais besta! O positivo é nada…
(Perdoa, se em gramática te falo,
Arte que ignoras, como ignoras tudo.)
Besta e mais besta! Na palavra embirro;
Que a besta anexa ao mais teu ser define.Dás-me louvor servil na voz do prelo,
Grande me crês, proclamas-me famoso,
Excelso, transcendente, incomparável,
Confessas que d’Elmano a fúria temes…
E, débil estorninho, águias provocas,
Aves de Jove, que o corisco empunham!És de rábula vil corrupta imagem;
Tu vendes o louvor, como ele as partes,
Mas ele na enxovia infâmias paga,
E tu, com tústios, que aos caloiros pilhas,
Compras gravatas, em que a tromba enorme
Sumas ao dia, que de a ver se embrusca,
Qual em tenra mãozinha esconde a face
Mimoso infante de papões vexado.
Útil descuido aos cárceres te furta,
À digna habitação de ti saudosa
(Digo, o Castelo), estância equivalente
Aos méritos morais, que em ti reluzem.De saloios vinténs larápio sujo,
A glória do teu ódio restitui
A quem no teu louvor desacreditas.
Se honrada pelos sábios d’Ulisseia
(D’Ulisseia não só,
Poemas sobre Face
97 resultadosA Frescura
Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que’eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora…
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte… Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.
Estátua Falsa
Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha’alma desceu veladamente.Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distancia.Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de mêdo!Sou estrêla ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar…
À Minha Filha
Vejo em ti repetida,
A anos de distância,
A minha própria vida,
A minha própria infância.É tal a semelhança,
É tal a identidade,
Que é só em ti, criança,
Que entendo a eternidade.Todo o meu ser se exala,
Se reproduz no teu:
É minha a tua fala,
Quem vive em ti, sou eu.Sorris como eu sorria,
Cismas do meu cismar,
O teu olhar copia,
Espelha o meu olhar.És como a emanação,
Como o prolongamento,
Quer do meu coração,
Quer do meu pensamento.Encarnas de tal modo
Minha alma fugitiva,
Que eu não morri de todo
Enquanto sejas viva!Por que mistério imenso
Se fez a transmissão
De quanto sinto e penso
Para esse coração?Foi como se eu andasse
Noutra alma a semear
Meu peito, minha face,
Meu riso, meu olhar…Meus íntimos desejos,
Meus sonhos mais doirados,
Florindo com meus beijos
Os campos semeados.Bendita é a colheita,
Deus confiou em nós…
Sol do Meu Dia
Se eu fosse nuvem tinha imensa mágoa
Não te servindo de asas maternais
Que te pudessem abrigar da água
Que chovesse das mais!E sendo eu onda, tinha mágoa suma
Não te podendo a ti, mulher, levar
De praia em praia sobre a alva espuma,
Sem nunca te molhar!E sendo aragem eu, que pela face
Te roçasse de rijo alguma vez
Que o Senhor com mais força respirasse…
Que mágoa imensa… Vês?E a luz do teu olhar que me não luza
Um rápido momento a mim sequer,
Como a águia no ar, que passa e cruza
A terra sem na ver!Mas que me importa a mim! Se me esmagasses
Um dia aos pés o coração a mim,
As vozes que lhe ouviras, se escutasses,
Era o teu nome… sim;O teu nome gemido docemente,
Com toda a fé de um mártir em Jesus.
Se acaso já em Cristo pôs um crente
A fé que eu em ti pus!A fé, mais o amor! Porque ele expira
Sem que a ninguém lhe estale o coração;
O Pai
Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.Depois… Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar… E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.Escutarei de noite as tuas palavras:
… menino, meu menino…E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.Tradução de Rui Lage
Ruínas
Cobrem plantas sem flor crestados muros;
Range a porta anciã; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as roxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos;
— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,
Íntima e funda; — e dos cerrados cílios
Se uma discreta muda
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
Nos serros do poente,
As rosas do crepúsculo.
“Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
— Raio quebrado e frio; — o vento agita
Tímido e frouxo as tuas longas tranças.
Quanto Morre um Homem
Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?
Paixão
Supõe que de uma praia, rocha ou monte,
Com essa vista embaciada e turva
Que dá aos olhos entranhável dor,
Tinhas podido ver transpor a curva
Pouco a pouco do líquido horizonte
A barca saudosa que levasse
Aquele a quem primeiro uniste a face
E o teu primeiro amor!Depois, que toda mágoa e saudade,
Da mesma rocha ou alcantil deserto,
Olhando avidamente para o mar…
Vias na solitária imensidade
Vagas ficções de um pensamento incerto
Surgir das ondas, desfazer-se em espuma,
Não alvejando nunca vela alguma…
E sempre a suspirar!Até que à luz de uma intuição sublime
De alma arrancavas o gemido extremo
De saudade, desespero e dor!…
Pois é assim que eu sofro, assim que eu gemo,
Que nuvem negra o coração me oprime,
Nuvem de mágoa, nuvem de ciúme,
Em te não vendo à hora do costume…
Meu anjo e meu amor!
Londres
Vagueio por estas ruas violadas,
Do violado Tamisa ao derredor,
E noto em todas as faces encontradas
Sinais de fraqueza e sinais de dor.Em toda a revolta do Homem que chora,
Na Criança que grita o pavor que sente,
Em todas as vozes na proibição da hora,
Escuto o som das algemas da mente.Dos Limpa-chaminés o choro triste
As negras Igrejas atormenta;
E do pobre Soldado o suspiro que persiste
Escorre em sangue p’los Palácios que sustenta.Mas nas ruas da noite aquilo que ouço mais
É da jovem Prostituta o seu fadário,
Maldiz do tenro Filho os tristes ais,
E do Matrimónio insulta o carro funerário.Tradução de Hélio Osvaldo Alves
Primavera
O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro.
A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p’la fonte.
Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados
comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do
proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa… porque Deus é bom e perdôa tudo… e depois as faces e depois a bocca e depois… fugiu… Não devia ter fugido… E agora o moleiro, lá no arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda –
A Imagem Divina
Compaixão, Pena, Paz & Amor,
Todos lhes rezam no seu sofrimento;
E a estas virtudes de tanto fulgor
Entregam o seu agradecimento.Compaixão, Pena, Paz & Amor
É Deus, nosso pai adorado,
Compaixão, Pena, Paz & Amor
É o Homem, seu filho amado.Tem Compaixão humano coração,
E tem a Pena uma face humana,
Amor, a forma divina de eleição
E a Paz, o traje que irmana.Todo o homem, em todo o clima,
Que, com dor, reza como é capaz,
Reza à forma humana divina,
Amor, Compaixão, Pena & Paz.A humana forma amar é um dever,
Para os ateus, os turcos, os judeus;
Compaixão, Amor & Pena, haja onde houver,
Também é lá que encontrareis Deus.Tradução de Hélio Osvaldo Alves
Última Folha
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã, — e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
Irás, musa celeste!Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Perdão!
Seria o beijo
Que te pedi,
Dize, a razão
(outra não vejo)
Por que perdi
Tanta afeição?
Fiz mal, confesso;
Mas esse excesso,
Se o cometi,
Foi por paixão,
Sim, por amor
De quem?… de ti!Tu pensas, flor,
Que a mulher basta
Que seja casta,
Unicamente?
Não basta tal:
Cumpre ser boa,
Ser indulgente.
Fiz-te algum mal?
Pois bem: perdoa!É tão suave
Ao coração
Mesmo o perdão
De ofensa grave!
Se o alcançasse,
Se o conseguisse,
Quisera então
Beijar-te a mão,
Beijar-te a face…
Beijar? que disse!
(Que indiscrição…)
Perdão! perdão!
Os Sobreviventes
Quando todos imaginavam a vida sem sentido
chegaram de manhã os sobreviventes,
e levantaram suas moradas, estiveram no rio,
procuravam o rebanho disperso, preparavam
o alimento, cantavam, derramavam
o suor nos campos, faziam fogo à noite
rememoravam o corpo de suas mulheres,
despachavam os barcos, pela manhã.
As chuvas eram sempre bem-vindas,
as chuvas levantavam o pó da terra
e enchiam de confiança a face da vida.
As mulheres viam nascer dentro de si
um novo rebento, os seus ventres cresciam.
Nenhum sinal de confiança quando as mulheres
apareciam de ventre crescido.
Os dias eram os mesmos, a esperança
e a desesperança eram as mesmas.
Olhar e Sentir
Olhar e sentir
por dentro do corpo a massa de que é feito o avesso dele.
Ossos músculos nervos veias
tudo o que está no corpo e mundo é
a pintura contém e depõe na tela e
se acaso aí o pintor deixou reservas
nesse sem nada o avesso do mundo se
recolhe e mostra a face.
À Espera do Amado
Disse-me baixinho:
— Meu amor, olha-me nos olhos.
Ralhei-lhe, duramente, e disse-lhe:
— Vai-te embora.
Mas ele não foi.
Chegou ao pé de mim e agarrou-me as mãos…
Eu disse-lhe:
— Deixa-me.
Mas ele não deixou.Encostou a cara ao meu ouvido.
Afastei-me um pouco,
fiquei a olhá-lo e disse-lhe:
— Não tens vergonha? Nem se moveu.
Os seus lábios roçaram a minha face.
Estremeci e disse-lhe:
— Como te atreves?
Mas ele não se envergonhou.Prendeu-me uma flor no cabelo.
Eu disse-lhe:
— É inútil.
Mas ele não fez caso.
Tirou-me a grinalda do pescoço
e abalou.
Continuo a chorar,
e pergunto ao meu coração:
Porque é que ele não volta?Tradução de Manuel Simões
O Poema Ensina a Cair
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excedeaté à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Sobre um Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
A Rosa
Tu, flor de Vénus,
Corada Rosa,
Leda, fragrante,
Pura, mimosa,Tu, que envergonhas
As outras flores,
Tens menos graça
Que os meus amores.Tanto ao diurno
Sol coruscante
Cede a nocturna
Lua inconstante,Quanto a Marília
Té na pureza
Tu, que és o mimo
Da Natureza.O buliçoso,
Cândido Amor
Pôs-lhe nas faces
Mais viva cor;Tu tens agudos
Cruéis espinhos,
Ela suaves
Brandos carinhos;Tu não percebes
Ternos desejos,
Em vão Favónio
Te dá mil beijos.Marília bela
Sente, respira,
Meus doces versos
Ouve, e suspira.A mãe das flores,
A Primavera,
Fica vaidosa
Quando te gera;Porém Marília
No mago riso
Traz as delícias
Do Paraíso.Amor que diga
Qual é mais bela,
Qual é mais pura,
Se tu, ou ela;Que diga Vénus…
Ela aí vem…
Ai! Enganei-me,
Que é o meu bem.