Lugares da Infância
Lugares da infância onde
sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.O quarto eu não o via
porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia
e essa era a sabedoria.Agora sei estas coisas
de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.A casa já não cresce
à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois,
já o jantar tinha arrefecido.E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.
Poemas Longos
657 resultadosHá Metafísica Bastante em não Pensar em Nada
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Requiescat
Por que me vens, com o mesmo riso,
Por que me vens, com a mesma voz,
Lembrar aquele Paraíso,
Extinto para nós?Por que levantas esta lousa?
Por que, entre as sombras funerais,
Vens acordar o que repousa,
O que não vive mais?Ah! esqueçamos, esqueçamos
Que foste minha e que fui teu:
Não lembres mais que nos amamos,
Que o nosso amor morreu!O amor é uma árvore ampla, e rica
De frutos de ouro, e de embriaguez:
Infelizmente, frutifica
Apenas uma vez…Sob essas ramas perfumadas,
Teus beijos todos eram meus:
E as nossas almas abraçadas
Fugiam para Deus.Mas os teus beijos esfriaram.
Lembra-te bem! lembra-te bem!
E as folhas pálidas murcharam,
E o nosso amor também.Ah! frutos de ouro, que colhemos,
Frutos da cálida estação,
Com que delícia vos mordemos,
Com que sofreguidão!Lembras-te? os frutos eram doces…
Se ainda os pudéssemos provar!
Se eu fosse teu… se minha fosses,
E eu te pudesse amar…Em vão,
A Encomenda do Silêncio
Já reparaste que tens o mundo inteiro
dentro da tua cabeça
e esse mundo em brutal compressão dentro da tua cabeça
é o teu mundo
e já reparaste que eu tenho o mundo inteiro
dentro da minha cabeça
e esse mundo em brutal compressão dentro da minha cabeça
é o meu mundo
o qual neste momento não te está a entrar pelos olhos
mas através dos nomes
pois o que tu tens dentro da tua cabeça
e o que eu tenho dentro da minha cabeça
são os nomes do mundo em brutal compressão
como um filtro ou coador
de forma que nem és tu que conheces o mundo
nem sou eu que conheço o mundo
mas os nomes que tu conheces é que conhecem o mundo
e os nomes que eu conheço é que conhecem o mundo
o qual entra em ti e o qual entra em mim
através dos nomes que já tem
de forma que o que entra pelos meus olhos não pode
entrar pelos teus olhos
mas só pela tua cabeça através
dos nomes dados pela minha cabeça
àquilo que entrou pelos meus olhos já com nomes
e do mesmo modo
o que entra pelos teus olhos não pode
entrar pelos meus olhos
mas só pela minha cabeça através
dos nomes dados pela tua cabeça
àquilo que entrou pelos teus olhos já com nomes
e assim o que tu vês
já está normalmente dentro de ti antes de tu o veres
e assim o que eu vejo
já está normalmente dentro de mim antes de eu o ver
e tudo quanto tu possas ver para aquém ou para além dos nomes
é indizível e fica dentro de ti
e tudo quanto eu possa ver para aquém ou para além dos nomes
é indizível e fica dentro de mim
e é assim que vamos construindo a nós mesmos pela segunda vez
tu a ti e eu a mim…
Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Viver!
Viver!… E o que é a Vida?…
– Atento, escuto
A primitiva e alta profecia…
E a escutá-la, a sonhar, vou resoluto,
Por caminhos de Amor, com alegria!
E vivo! E na minh’alma, a uma a uma,
Como num quebra mar de encantamentos,
Sinto as ondas bater, – ondas de espuma,
…Evocações, memorias, sentimentos…Amo! – No meu Amor vivo a infinita,
A suprema Beleza, – sou amado!…
E, pelo Sol que no meu peito habita,
Luto! Sinto o Futuro à nossa espera,
Vivo, na minha luta, o meu Amor!…
E sinto bem que a eterna Primavéra
A alcançaremos só por nossa Dor!
Sôfro! E no meu sofrer, nesta anciedade
Com que os meus olhos fitam o nascente,
Em devoção, em pranto, em claridade,
– Sonha o meu coração de combatente…Sofrer, lutar, amar – , vida completa,
Piedosa, humilde e só de Amor ungida –
– Meu coração de amante e de Poeta
– Sente em si mesmo o coração da Vida!…
Sonho exaltado e puro, Amor tão grande,
Que me domina todo e me levanta
Às regiões em que o sentir se expande,
Mimos para Elisa
elisa. elisa tem ancas gordas e beiços carnudos.
elisa gosta de telefonar ao noivo. sentada no so
fá, com o joãozinho à beira, marca o número e diz:
elisa sim meu bem. entretanto o joãozinho mete o
s dedos por baixo da saia de elisa, mete as mãos,
mete os braços. elisa diz: sim meu bem. enquanto
elisa se recosta, joãozinho mete a cabeça debai
xo das saias de elisa, e faz que sim, faz vivamen
te que sim, enquanto elisa diz: sim meu bem. sim.
estes telefonemas com o noivo são tão longos! se
pararam-se há pouco tempo. o noivo suplica: não
chores elisa. não suspires. a separação não será
eterna. elisa acalma-se. joãozinho sai cá para fo
ra. elisa chega-se muito a ele. joãozinho está ag
ora de pé. o noivo fala fala fala. pergunta: elisa
já comeste os bombons todos que te mandei minha
gulosa? elisa não responde. está com a boca cheia
. mesmo na conchinha do ouvido, muito suavemente,
o noivo chama-lhe gulosa. e outros mimos. outros.
À Minha Morte
Sei, que um dia fatal me espera, e talha
A minha vida o estame:
Nem Prosérpina evita uma só frente.
Sei que vivi: mas quando
Tem de soltar-se, ignoro, o vivo laço;
E se claros, ou turvos
Se hão-de erguer para mim os sóis vindouros. —
Pois, que ao sevo Destino
Me é vedado fugir, fugi ao longe
Roazes Amarguras,
Que estes permeios anos minar vínheis.
Rir quero — e mui folgado,
De vos ver ir correndo, de encolhidas,
Escondendo na fuga,
As caudas dos medonhos ameaços.
Quero, entre mil saúdes,
De vermelha, faustíssima alegria
Ir passando em resenha,
Taça após taça, a lista dos amigos,
E o coro das formosas,
Que a vida me entreteram com agrado.
E reforçado e lesto
C’o néctar da videira, as mãos travando
Co’as engraçadas Musas,
Em dança festival, com pé ligeiro,
Na matizada relva,
Cansar de tanto júbilo o meu sp’rito,
Que se vá (sem que o sinta)
Continuar o baile nos Elísios)
Entre o Garção e Horácio.
De lá, em novas Odes,
Este é o Prólogo
Deixaria neste livro
toda minha alma.
Este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.Que compaixão dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam!Que tristeza tão funda
é mirar os retábulos
de dores e de penas
que um coração levanta!Ver passar os espectros
de vidas que se apagam,
ver o homem despido
em Pégaso sem asas.Ver a vida e a morte,
a síntese do mundo,
que em espaços profundos
se miram e se abraçam.Um livro de poemas
é o outono morto:
os versos são as folhas
negras em terras brancas,e a voz que os lê
é o sopro do vento
que lhes mete nos peitos
— entranháveis distâncias. —O poeta é uma árvore
com frutos de tristeza
e com folhas murchadas
de chorar o que ama.O poeta é o médium
da Natureza-mãe
que explica sua grandeza
por meio das palavras.
O Cerimonial das Mãos
Mãe, onde foi que deixaste a outra metade,
a que anunciava o sol na turvação das noites,
a que iluminava a sombra no cerimonial das mãos?
Em que côncavo de rochas buscava abrigo
essa outra metade que eu via projectada
para fora de mim como um sonho evadindo-se
do círculo de medos em que a fúria se jogava?
Eu era gémeo de todos os assombros
e os meus segredos era com essa outra metade
que os partilhava à revelia das bocas
que em surdina me traçavam o destino.
Quanto de mim se perdia nessa metade
que me furtava o riso e me deixava a culpa,
que me feria o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de mim me flagelava
sem que eu lhe conhecesse morada ou nome?
Mãe, eu pedia uma trégua ao vento
e um punhal à chuva e com ambos queria
separar de mim a metade incandescente
que à beira dos meus gestos
ganhava altura de nuvem e fulgor de estrela.
Mãe, eu vejo-me outro nesta cama
que guarda os instrumentos liquefeitos da insónia
e sei que não sou eu quem lá está,
Cantar do Amigo Perfeito
Passado o mar, passado o mundo, em longes praias,
de areia e ténues vagas, como esta
em que haverá de nossos passos a memória
embora soterrada pela areia nova,
e em que sobre as muralhas quanta sombra
na pedra carcomida guarda que passámos,
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas esta, ó meu amigo?Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos
da alheia juventude, impudica ou severa,
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se,
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas;
e o meu e o teu olhar guiando-se leais,
de nós um para o outro conquistando
– em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó meu amigo?Também aqui relembro as ruas tenebrosas,
de vulto em vulto percorridas, lado a lado,
numa nudez sem espírito, confiança
tranquila e áspera, animal e tácita,
já menos que amizade, mas diversa
da suspeição do amor, tão cauta e delicada
– em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda as recordas, diz, ó meu amigo?Também aqui,
Tu? Eu?
Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu qualquer motivo
para haver o ser vivo.A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que, nascido, more
onde, vivendo, morres.Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais (?) perfeita.
Não aceitas teu
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse,
Porque Te Devo Amar
Porque te devo amar,
perguntas,
e eu falo-te no barulho do vento na janela quando me apertas, a tua cabeça no mistério que fica entre os braços e os ombros, escondo os dedos no interior do teu cabelo e ouço-te respirar, pessoas como nós não procuram explicações mas sobrevivências,
Devíamos aprender a querer devagar,
arriscas,
mas entretanto já pousei os meus lábios nos teus, é insuportável o teu cheiro se não puder tocar-te, ficaríamos completos se apenas houvesse palavras, e o mais absurdo é que nem precisamos de falar, pessoas como nós não procuram a eternidade mas os sentidos,
Cada instante merece um orgasmo,
invento,
tento provar-te que os poemas são feitos de carne, nunca de versos, estranhamente não ripostas e deixas-te olhar, fico mais de uma hora só a ver-te e é tudo, peço-te que te coloques nas mais diversas posições, há-de haver um ângulo qualquer em que não seja completamente teu e o teu sorriso o quase céu, mas não o encontro, pessoas como nós não procuram a pele mas a faca,
Há uma certa dignidade na maneira como nos abandonamos,
despeço-me,
visto-me com lentidão enquanto te amo finalmente,
Como Nossos Pais
Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina!
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz
Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração
Já faz tempo eu vi você na rua cabelo ao vento gente jovem reunida
Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais
Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais
Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam,
Véspera
Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquitecto.Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos,
Mãe
Intacta como o silêncio. Terra
Na terra, dela te alimentas e, serena,
A adubas, como orvalho às manhãs.
Fantasma de ti, não; e, como espírito, ardes
Por entre. Ciprestes e ventos. E sóis e
Noites. Mas ardes. E falas. Fétida mi-
Neração de ossos translúcidos
Do azul que me legaste
Ao descer-te as pálpebras na hora verdadeira.
Intacta como os ventos que não vieram
E aguardam a hora de soltar-se.
Intacta por sob. Mas intacta. Pura,
De terra e de sonho. Não sa-u-d-a-
De nem fantasma, não. Alegria.
Como o ser. Como a ladainha que te cantei, tu sabesQuando. ALEGRIA. Como quando os olhos
Não sabiam de lágrimas. Ou sabiam,
Como se não existissem senão para.
Saber-te lá onde és (aqui, tão pertinho,
Onde o teu sopro se fechou… ) Alegria
Ainda e sempre… Intacta. Casta toda
Como os mármores que não quis a emoldurar
Teu corpo de terra. Casta como os ventos.
Ardência solar da meia-tarde de cada dia,
Claridade que me nasces no «bom-dia»
Que nos damos, por sob o sol e a chuva
Das horas e dos dias.
Um Adeus Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificadaNão tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dorNão podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viverNão podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igualNão podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetalNão tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de serNão tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
O Poema Original
Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Canção da Saudade
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha edade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemiterios – as lágens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres bellas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.
A Alvorada do Amor
Um horror grande e mudo, um silêncio profundo
No dia do Pecado amortalhava o mundo.
E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo
Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,
Disse:“Chega-te a mim! entra no meu amor,
E à minha carne entrega a tua carne em flor!
Preme contra o meu peito o teu seio agitado,
E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!
Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,
Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!Vê! tudo nos repele! a toda a criação
Sacode o mesmo horror e a mesma indignação…
A cólera de Deus torce as árvores, cresta
Como um tufão de fogo o seio da floresta,
Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;
As estrelas estão cheias de calefrios;
Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu…Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,
Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!
Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;
Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;
Surjam feras a uivar de todos os caminhos;