Ó Meus Irmãos Contrários
Ó meus irmãos contrários que guardais nas vossas
[pupilas
A noite infusa e o seu horror
Onde vos deixei eu
Com vossas pesadas mãos no azeite preguiçoso
Dos vossos actos antigos
Com tão pouca esperança que’a morte tem razão
Ó meus irmãos perdidos
Eu vou para a vida tenho aparência de homem
Para provar que o mundo é feito à minha medidaE não estou só
Mil imagens de mim multiplicam a luz
Mil olhares semelhantes igualam a carne
É a ave é a criança é a rocha é a planície
Que se misturam a nós
O ouro desata a rir ao ver-se fora do abismo
A água o fogo despem-se por uma única estação
Já não há eclipse na fronte do universo.Tradução de António Ramos Rosa
Poemas sobre Mãos
542 resultadosAli não Havia Eletricidade
Ali não havia eletricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a “Primeira Epístola aos Coríntios”.
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A “Primeira Epístola aos Coríntios” …
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim…
Sou nada…
Sou uma ficção…
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
“Se eu não tivesse a caridade.”
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre…
“Se eu não tivesse a caridade…”
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade
Se os Poetas Dessem as Mãos
Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia,
cairiam as grades das prisões
que nos tolhem os passos,
os arames farpados
que nos rasgam os sonhos,
os muros de silêncio,
as muralhas da cólera e do ódio,
as barreiras do medo,
e o Dia, como um pássaro liberto,
desdobraria enfim as asas
sobre a Noite dos homens.Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia.
Já Estou a Ficar Velho
Já estou a ficar velho, ainda que tenha
esta figura fixa sem idade,
e me mantenha em forma o aparelho
a que todos aqui somos sujeitos:
a correria cega, a suspensão elástica,
o salto em trave e trampolim de folhas,
e outras altas artes de ginástica.
Mas eu bem sei sentir além da aparência,
e já me aconteceu, ao visitar o canto
onde o mundo se acaba em chão de areia,
ali ver o meu fim anunciado.
Quando em tranquilo pouso assim medito,
peso, e calculo tudo aquilo
que não fiz, e não tive, e não alcanço
com o rosto extravagante que me deram,
já tudo bem pensado considero
se não devo encontrar algum consolo
na ciência que conduz o feiticeiro,
e acreditar também, como me diz,
que é, esta vida, emaranhada teia
de mal fiado, mal dobado fio,
e a morte tão somente um singular casulo
de onde sairei transfigurado.
Mas não sei de que valha imaginar
um outro ser incólume e perfeito
que da minha substância seja feito
e tome, noutro mundo,
A única Doença é não Haver Paixão
A única doença é
não haver paixão.Há pessoas que encontram no mundo um mero
local de passagem, pessoas que não sentem o que
vêem, que não tocam o que encontram; há pessoas
que não percebem que tudo o que existe foi criado
para apaixonar, para absolutamente apaixonar.Se não houver paixão
para que serve haver a vida?Há pessoas
e depois existes tu.Tu e a loucura de quereres devorar o que te
rodeia, tu e essa pulsão incontrolável para todos
os segundos serem os finais, para todos os instantes
da vida terem desesperadamente de valer pela vida toda.Se não houver o que tu és
para que serve haver o amor?E depois existo eu. A apaixonada que ensinaste
a apaixonar-se. Antes de ti não havia o tesão, havia
talvez uma ligeira excitação quando algo de muito
grande me acontecia. Antes de ti não sabia a
beleza do medo, a sensação sem igual de um coração nas
mãos. Antes de ti não sabia que um coração ou está
nas mãos ou anda a rastejar pelos chãos.
Para Ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudoPara ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do semprePara ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreitaestreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos,
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto sóSou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela músicaSão as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só
A Minha Alma Partiu-se
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
Trevas
De dia não se via nada, mas p’la tardinha já se apercebia gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo nelles. E os punhaes não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençoes de linho escorridos de hombros franzinos. E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes de linho, azas brancas de garças caídas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os mêdos que nasciam.
E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos p’ra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha como a lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios.
A lua é uma laranja d’oiro num prato azul do Egypto com perolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.
Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da briza dos tumulos,
Meu Amor Estou Bem (Carta)
Lanço as palavras ao papel
como pescador calmo
lança os barcos ao rio.
Só no fundo, no fundo inviolado,
contraio e espalmo
as minhas mãos, mãos de afogado
morrendo à sede.– Meu amor estou bem –
Quanto te escrevo,
ponho os olhos no teu retrato
pendurado nos ferros da minha camapara que as palavras tenham o sabor exacto
de quem me ouve,
de quem me fala,
de quem me chama.– Meu amor estou bem –
Ontem vi a Primavera
numa flor cortada dos jardins.
Hoje, tenho nos ombros uma pedra
e um punhal nos rins.– Meu amor estou bem –
Se a morte vier, querida amiga,
à minha beira, sem ninguém,
hei-de pedir-lhe que te diga:– Meu amor estou bem –
Noite de Natal
[A um pequenito, vendedor de jornais]
Bairro elegante, – e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
O pequenito adormeceu…Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu.A noite é fria; a geada cresta;
Em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar…Todas as portas já cerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
Vede as estrelas a chorar!Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu,Em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidéria,
O pequenito adormeceu…Em torno dele – ó dor sagrada!
Ao ver um círculo sem geada
Na sua morna exalação,Pensei se o frio descaroável
Do pequenino miserável
Teria mágoa e compaixão…Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
Com o presépio de Belém…Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
E aos orfãozinhos sem ninguém…
O Mundo Velho
Nas crises d’este tempo desgraçado,
Quando nos pomos tristes a espalhar
Os olhos pela historia do passado…
Quem não verá, contente ou consternado,
– Mundo velho que estás a desabar – ?!…Sim tu estás a morrer, vil socio antigo…
E Pae de nossos vicios e paixões!
Camarada dos crimes, torpe amigo…
– Morre, emfim, correrá no teu jazigo,
Em vez de vinho, o sangue das nações!Deves morrer, provecto criminoso!
Tens vivido de mais, vil sensual!
Tu estás velho, cansado e desgostoso,
E, como um velho principe gotoso,
Ris, cruelmente, ás sensações do mal.– Que é feito do teu Deus, do teu Direito?
– Onde estão as visões dos teus prophetas?
– Quem te deu esse orgulho satisfeito?
Muribundo Caiphaz, junto ao teu leito,
Morrem, debalde, os gritos dos poetas!No tempo em que eras forte, foi teu braço
Que apunhalou os grandes ideaes!…
Hoje estás gordo, sensural, devasso,
E andas, torpe a rir, como um palhaço,
N’um circulo lusente de punhaes.Tu tens vendido os justos no mercado!
Carta a Manoel
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,
Contra a Esperança
É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar,
enquanto um fio de água, um remo,
peixes
existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro
a correr sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite em vão esconde.O universo é um telhado
com sua calha tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.Um balde a mais
na esperança.
Benção
Quando, por uma lei da vontade suprema,
O Poeta vem a luz d’este mundo insofrido
A desolada mãe, numa crise de blasfêmia,
Pragueja contra Deus, que a escuta comovido:— “Antes eu procriasse uma serpe infernal!
Do que ter dado vida a um disforme aleijão!
Maldita seja a noite em que o prazer carnal
Fecundou no meu ventre a minha expiação!Já que fui a mulher destinada, Senhor,
A tornar infeliz quem a si me ligou,
E não posso atirar ao fogo vingador
O fatal embrião que meu sangue gerou.Vou fazer recair o meu ódio implacável
No monstro que nasceu das tuas maldições
E saberei torcer o arbusto miserável
De modo que não vingue um só dos seus botões!”E sobre Deus cuspindo a sua mágoa ingente
Ignorando a razão dos desígnios do Eterno,
A tresloucada mãe condena, inconsciente,
A sua pobre alma às fogueiras do inferno.Bafeja a luz do sol o fruto malfadado,
Vela pelo inocente um anjo peregrino;
A água que ele bebe é um néctar perfumado,
O pão é um manjar saboroso,
Cisne
Amei-te? Sim. Doidamente!
Amei-te com esse amor
Que traz vida e foi doente…À beira de ti, as horas
Não eram horas: paravam.
E, longe de ti, o tempo
Era tempo, infelizmente…Ai! esse amor que traz vida,
Cor, saúde… e foi doente!Porém, voltavas e, então,
Os cardos davam camélias,
Os alecrins, açucenas,
As aves, brancos lilases,
E as ruas, todas morenas,
Eram tapetes de flores
Onde havia musgo, apenas…E, enquanto subia a Lua,
Nas asas do vento brando,
O meu sangue ia passando
Da minha mão para a tua!Por que te amei?
— Ninguém sabe
A causa daquele amor
Que traz vida e foi doente.Talvez viesse da terra,
Quando a terra lembra a carne.
Talvez viesse da carne
Quando a carne lembra a alma!
Talvez viesse da noite
Quando a noite lembra o dia.— Talvez viesse de mim.
E da minha poesia…
Mater Dolorosa
Sozinha, olho para o teu corpo e sei como é dentro de mim que ele
existe;
desde que nasceste compreendi que podiam apenas os meus braços
acolher-te. Fico de novo presa
a este sofrimento. Sentia como chegava a sombra e com ela o que
seria apenas
o teu espírito, perdido como as primeiras imagens que se
desprendem agora
nesta manhã tranquila. Há-de a sua recordação ser talvez a mesma
que vinha com os sonhos ainda suspensos pelas mãos que se
tomam
mais leves, iniciais. Poderia descer para mim este sangue; ele
pertencia-me
como se a luz viesse apenas recolhê-lo. O resto era o que se não
separava
da noite, dessas vestes que ficam caídas sobre o teu corpo
como se fossem a piedade; era tão pouco o que recebias. Ajudo-te
com o meu silêncio. Julgo que talvez nele chegue um pouco
de calor
a que sozinho te poderias acolher. Assim repousas junto de mim
e principio a olhar-te. Que idade era a tua quando se uniram
as mãos? Espero há muito as palavras que traziam consigo
uma recordação que não podia existir na tua voz apagada;
Ruinas
Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.
Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.
Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias e de cabelleiras embranquecidas.
Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castello de nobres naquelle lugar… E a lua, a contar, pára um instante – tem mêdo do frio dos subterraneos.
Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos de sêdas.
Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido – cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e lizes.
Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar…
Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.
Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao palacio pela tapada d’El-rei. Grande caçada na floresta–galgos brancos e Amazonas negras.
À Morte
Tu que mísero vives
no vão dos braços
em súbito furorTu de mãos cativas
senhor dos ombros
indefeso dadorTu que os dedos secas
no liso peito
armado amadorTu no cárcere vivo
das horas idas
impune rumorTu rendida palavra
íntimo trânsito
do barco raptorTu que na minha pele
táctil ardoramável me esperas
Glosa para José Gomes Ferreira
O mundo, dizias tu,
não é só dos pássaros
e do vento, o mundo
é também nosso. Foi
por isso, poeta,
que encheste
uma gaveta
de nuvens com a memória
das palavras e acendeste
no chão
dos dias
comuns
algumas estrelas
com tua mão.