Branco e Vermelho
A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.Todo o meu ser, suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso…
Que delícia sem fim!
Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distancia reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
Na areia imensa e plana
Ao longe a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana…
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
Poemas sobre Morte
319 resultadosViolada
Possuíram-te nas ervas,
Deitada ao comprido
Ou lívida a pé:
Do estupro conservas
O sangue e o gemido
Na morte da fé.Chegaste a cavalo
Trémula de espanto:
Esperavas levá-lo
Com modos de amor:
O fátum, num canto,
Violento ceifou-te
O púbis em flor:
Dou-te
O acalanto
Mas não há palavras
Para tal horror!Vem ainda em cós, mulher,
Limpa as tuas lágrimas no meu lenço:
Nem pela dor sequer
Eu te pertenço.O cavalo fugiu,
Deixou-te em fogo a fralda:
Que malfeliz Roldão
Para tal Alda!
Ao frio, ao frio,
Tinta de ti é a água e sangue o chão.Ponta Delgada a arder
Do próprio pejo, quis
Em verde converter
O incêndio do teu púbis.Mulher, não me dês guerra,
Oh trágica enganada:
Tu és a minha terra
Na carne devastada
Como a Ilha queimada.
O que vos Nunca Cuidei a Dizer
O que vos nunca cuidei a dizer,
com gram coita, senhor, vo-lo direi,
porque me vejo já por vós morrer;
ca sabedes que nunca vos falei
de como me matava voss’amor;
ca sabe Deus bem que doutra senhor,
que eu nom havia, mi vos chamei.E tod[o] aquesto mi fez fazer
o mui gram medo que eu de vós hei
e des i por vos dar a entender
que por outra morria — de que hei,
bem sabedes, mui pequeno pavor;
e des oimais, fremosa mia senhor,
se me matardes, bem vo-lo busquei.E creede que haverei prazer
de me matardes, pois eu certo sei
que esso pouco que hei de viver
que n?um prazer nunca veerei;
e porque sõo desto sabedor,
se mi quiserdes dar morte, senhor,
por gram mercee vo-lo [eu] terrei.
Triste Padeço
Aves que o ar discorrei,
No vôo as asas batendo,
E por vossas penas conta
Às minhas meu sentimento.Compadecidas ouvi
De minha dor os excessos,
Mas em dizer que é saudade,
Digo o que posso dizer-vos.
Triste padeço, e ausente
Os golpes dos meus receios
Nas batalhas da distância,
Nos desafios do tempo.Nas violências, do que choro,
Dos alívios desespero,
Que não adormece a queixa,
Quando a desperta o desvelo.Esmoreceu a esperança
Nas dilações do desejo
Prognosticando a ruína
Frenético o pensamento.Se meu mal são sintomas,
Mortais ausências, e zelos,
Era o remédio esquecer-me,
Se em mim houvera esquecimento.Mas se faz no meu cuidado
Operações o veneno,
Viva de senti-lo quem,
Não morre de padecê-lo.Já que morro, ingrata sorte,
Às mãos da tua porfia,
Deixa-me inquirir um dia
A causa da minha morte:Se amor com impulso forte
Me rendeu, como me aparta
Do bem, que na alma retrata
Minha doce saudade,
Só os Lábios Respiram
Só os lábios respiram. Simples gesto vivo,
exílio do som onde se oculta o pavor da
palavra, pátria salgada cerrada no vazio
da casa de velhos deuses ávidos de preces.
Na garra da águia se fecha e rompe a boca,
templo e entranha, prodígio e anel
do eco, sinal esparso do caído concerto
da vida. Por estes soberbos montes, estas
rasas colinas, estas águas circulantes,
vai o grito da cegueira, o delírio lasso
na manhã, a saciada loucura do escuro
nome nocturno. Como um fragor dos céus,
caminha o canto agudo das árduas cigarras
perseguindo a funesta morte. Por esta
paisagem parda, que lábios me guardam
do próximo desastre, a mudança em ave,
cio ou sal, erva ou peixe, cicatriz ou
mito, veia ou água? Que lábios respiram
na coisa mortal que serei após o termo
da eterna efemeridade deste meu corpo,
coma de luz, deste desejo, rijo resíduo,
deste pensamento, disfarce ou máscara,
deste rapto do tempo, deste
coração que começa?
Aspiração
Sinto que há na minha alma um vácuo imenso e fundo,
E desta meia morte o frio olhar do mundo
Não vê o que há de triste e de real em mim;
Muita vez, ó poeta, a dor é casta assim;
Refolha-se, não diz no rosto o que ela é,
E nem que o revelasse, o vulgo não põe fé
Nas tristes comoções da verde mocidade,
E responde sorrindo à cruel realidade.Não assim tu, ó alma, ó coração amigo;
Nu, como a consciência, abro-me aqui contigo;
Tu que corres, como eu, na vereda fatal
Em busca do mesmo alvo e do mesmo ideal.
Deixemos que ela ria, a turba ignara e vã;
Nossas almas a sós, como irmã junto a irmã,
Em santa comunhão, sem cárcere, sem véus.
Conversarão no espaço e mais perto de Deus.Deus quando abre ao poeta as portas desta vida
Não lhe depara o gozo e a glória apetecida;
Tarja de luto a folha em que lhe deixa escritas
A suprema saudade e as dores infinitas.
Alma errante e perdida em um fatal desterro,
O Dilúvio
Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.Pradarias, vergéis, hortos, vinhedos, matos,
tudo desapar’ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fúria e angústia, erguem-se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.É aí que, ululando, os homens como as feras
refugiar-se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chão pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem-se urros de dor, e os que vão adiante
lançam pedras brutais aos que ficam pra trás.
Conclusão
Fui amante da morte
e da beleza. Vi a loucura,
acreditei na vida.
Da infância falei
como lugar de abismo.
O prazer
foi também a grande fonte
de perturbação e alegria.
Lembrei as mulheres
que recusaram submeter-se,
escrevi palavras fúnebres.Não poupei a adolescência,
o coração magoado
e não soube que fazer
de mim fora das palavras.
Escrevi para desistir
e depender
e ter identidade.
Quando Eu For Pequeno
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou
[pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
Escreve!
Não sei o que supor
Do teu silêncio. Escreve!
Quem é amado deve
Ser grato ao menos, flor!Se eu fosse tão feliz
Que te falasse um dia,
De viva voz diria
Mais do que a carta diz.Mas olha, tal qual é,
Não rias desse escrito,
Que pouco ou muito é dito
Tudo de boa-fé.Há nesse teu olhar
A doce luz da Lua,
Mas luz que se insinua
A ponto de abrasar…Pareça nele, sim,
Que há só doçura, embora,
Há fogo que devora…
Que me devora a mim!Que mata, mas que dá
Uma suave morte;
Mata da mesma sorte
Que uma árvore que há;Que ao pé se lhe ficou
Acaso alguém dormindo
Adormeceu sorrindo…
Porém não acordou!Esse teu seio então…
Que encantadora curva!
Como de o ver se turva
A vista e a razão!Como até mesmo o ar
Suspende a gente logo,
Pregando olhos de fogo
Em tão formoso par!
Amor a Amor Nos Convida
Com dura e branda cadeia,
Com facho activo e suave,
De seus mistérios co’a chave,
Amor entre nós volteia:
Já deprime, já gloreia,
Já dá morte, já dá vida;
E nesta incessante lida,
Que em si traz, que em si contém,
Com o mal, e com o bem,
Amor a amor nos convida.
Não Durmo Ainda
Não durmo ainda
Só na cama
o tempo
ainda é meucomo a palavra
Discretamente
me agito
no colchãoNão penso em Deus
na morteImprimo
Aqueço-me
Escutoconservo a posição
A Elsa dorme
Só na cama
o tempo ainda é delacomo um fruto
Quem Falou em Crime?
Crime quem falou em crime
somos todos irmãos todos a mesma
carne incendiadaQuando houver um crime
o primeiro
todos seremos criminososAgora porém somos vivos e amamos
do nascimento à morteCrime se o há já nos corria nas veias
quando éramos obscuros como o ventre
que nos concebeuNão há veias que transbordem
neste corpo flexível
que nos eterniza
Elegia da Lembrança Impossível
O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
Creio que Irei Morrer
Creio que irei morrer.
Mas o sentido de morrer não me move,
Lembro-me que morrer não deve ter sentido.
Isto de viver e morrer são classificações como as das plantas.
Que folhas ou que flores têm uma classificação?
Que vida tem a vida ou que morte a morte?
Tudo são termos onde se define.
Hora Vermelha
Por que vieste, pensamento?
Já me bastava o Mar violento,
Já me bastava o Sol que ardia…
P’los meus sentidos escorria
não sei lá bem que seiva forte
que a carne toda me deixava
qual uma flor ou uma lava
num riso aberto contra a Morte.Já me bastava tudo isto.
Mas tu vieste, pensamento,
e vieste duro, turbulento.
Vieste com formas e com sangue:
erectos seios de mulher,
as carnes róseas como frutos.Boca rasgada num pedido
a que se quer e se não quer
dizer que não.
Os braços longos estendidos.
A mão em concha sobre o sexo
que nem a Vénus de Camões.Aí!, pensamento,
deixa-me a calma da Poesia!
Aqui na praia só com ela,
virgem castíssima, sincera!…
Sua mão branca saberia
chamar cordeiro ao Mar violento,
Pôr meigo, meigo, o Sol que ardia.
Mas tu vieste, pensamento.
Tua nudez, que me obsidia,
logo, subtil, encheu de alento
velhos desejos recalcados,
beijos mordidos
antes de os ver a luz do Dia.
De Saudades vou Morrendo
De Saudades vou morrendo
E na morte vou pensando:
Meu amôr, por que partiste,
Sem me dizer até quando?
Na minha boca tão linda,
Ó alegrias cantae!
Mas, quem se lembra d’um louco?
– Enchei-vos d’agua, meus olhos,
Enchei-vos d’agua, chorae!
Rimance
Onde é que dói na minha vida,
para que eu me sinta tão mal?
quem foi que me deixou ferida
de ferimento tão mortal?Eu parei diante da paisagem:
e levava uma flor na mão.
Eu parei diante da paisagem
procurando um nome de imagem
para dar à minha canção.Nunca existiu sonho tão puro
como o da minha timidez.
Nunca existiu sonho tão puro,
nem também destino tão duro
como o que para mim se fez.Estou caída num vale aberto,
entre serras que não têm fim.
Estou caída num vale aberto:
nunca ninguém passará perto,
nem terá notícias de mim.Eu sinto que não tarda a morte,
e só há por mim esta flor;
eu sinto que não tarda a morte
e não sei como é que suporte
tanta solidão sem pavor.E sofro mais ouvindo um rio
que ao longe canta pelo chão,
que deve ser límpido e frio,
mas sem dó nem recordação,
como a voz cujo murmúrio
morrerá com o meu coração…
Insónia
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Lúcia
(Alfred de Musset)
Nós estávamos sós; era de noite;
Ela curvara a fronte, e a mão formosa,
Na embriaguez da cisma,
Tênue deixava errar sobre o teclado;
Era um murmúrio; parecia a nota
De aura longínqua a resvalar nas balsas
E temendo acordar a ave no bosque;
Em torno respiravam as boninas
Das noites belas as volúpias mornas;
Do parque os castanheiros e os carvalhos
Brando embalavam orvalhados ramos;
Ouvíamos a noite, entre-fechada,
A rasgada janela
Deixava entrar da primavera os bálsamos;
A várzea estava erma e o vento mudo;
Na embriaguez da cisma a sós estávamos
E tínhamos quinze anos!Lúcia era loura e pálida;
Nunca o mais puro azul de um céu profundo
Em olhos mais suaves refletiu-se.
Eu me perdia na beleza dela,
E aquele amor com que eu a amava – e tanto ! –
Era assim de um irmão o afeto casto,
Tanto pudor nessa criatura havia!Nem um som despertava em nossos lábios;
Ela deixou as suas mãos nas minhas;
Tíbia sombra dormia-lhe na fronte,