A Cidade do Sonho
Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho…
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajecto é florido e risonho.Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o maná chove na nossa boca…Vistos dessa eminência, o mundo e as suas
[sombras,
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.Nela mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jamais nos é dado sentir…
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio,
Poemas sobre Noite
539 resultadosEstrela da Tarde
Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca tardando-lhe o beijo morria.
Quando à boca da noite surgiste na tarde qual rosa tardia
Quando nós nos olhámos, tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos, unidos, ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia.
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria
Ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza!Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram.
À Musa
À luz das noites serenas
A capela de açucenas
Te envolve em lúcido véu!
Ao meigo clarão da lua
És a imagem que flutua
No puro ambiente do céu!E os ternos suspiros soltos,
E os teus cabelos revoltos
Ao sabor da viração,
Perpassam brandos na mente
Como as brisas do poente
Na cratera do vulcão!Ó santa imagem querida,
Como és bela adormecida!
Que mistério em teu palor!
Que doçura no teu canto,
E que perfume tão santo
Nas tuas cismas d’amor!Deixa cair uma rosa
Da tua fronte mimosa,
Da vida no turvo mar!
Descerra-me o paraíso
Que no teu fugaz sorriso
Nos faz viver e sonhar!
Dia de Descanso
Hoje reservo o dia inteiro para chorar
É o domingo decadente em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca da mediocridade
circular dos gestos que andam disfarçados de gestos
dos amores que deram em estribilhos
das correrias pederásticas para o futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuárioE choro choro porque a coragem
não me falta para tudo isto e assisto
na nega de me ceder ao braço dadoPrecisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas abertas
para mo vender!Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de martírio
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o sonho de serE choro de coragem isto é
as lágrimas hão-de cair sêcas nas minhas mãos
Falo cristalinamente sozinho
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair
algum acaso isto é
o eco,
Tenho Medo de Perder a Maravilha
Tenho medo de perder a maravilha
de teus olhos de estátua e aquele acento
que de noite me imprime em plena face
de teu alento a solitária rosa.Tenho pena de ser nesta ribeira
tronco sem ramos; e o que mais eu sinto
é não ter a flor, polpa, ou argila
para o gusano do meu sofrimento.Se és o tesouro meu que oculto tenho
se és minha cruz e minha dor molhada,
se de teu senhorio sou o cão,não me deixes perder o que ganhei
e as águas decora de teu rio
com as folhas do meu outono esquivo.Tradução de Oscar Mendes
Nós não Somos deste Mundo
Para a solidão nascemos. Outras vozes
nos chamam e invocam, outros corpos
se perfilam radiosos contra a noite.
Nós não somos daqui. Num intervalo
de campanhas esquecidas nos dizemos,
abrindo o coração aos de passagem.
Mas quando a manhã chega nós partimos,
mais livre o coração, longa a viagem.
Oh Mil Vezes Feliz
Oh mil vezes feliz o que encerrado
Entre baixas paredes
O tormentoso Inverno alegre passa;
Que de um pequeno campo,
Que ele mesmo cultiva, se alimenta
Apascentando as vacas,
Que da mão paternal somente herdou
C’os dourados novilhos.
Enquanto sobre a terra se reclina
Dormindo descansado
Ao som das frescas águas de um regato,
Horrorosos cuidados
O não vem perturbar no brando sono;
A sórdida cobiça
Lhe não faz conceber vastos projectos;
Não pensa, não intenta
Atravessar o Cabo tormentoso,
Sofrer chuvas e ventos,
Ouvir roncar as denegridas ondas,
E ver na feia noite
Entre nuvens a Lua ir escondendo
O macilento rosto,
Por ir comerciar cos pardos índios
E Chinas engenhosos.
A sede insaciável de riquezas
Não faz que exponha a vida
Nos desertos sertões às verdes cobras,
E aos remendados tigres.
Ah ilustre Soeiro, doce Amigo,
O ouro de que serve,
Se os anos vão correndo tão velozes!
Se a morte não consente,
Que a enrugada e pálida velhice
Com passos vagarosos
Nos venha coroar de níveas cãs?
Exílio
O mundo não era o rosto de minha amada,
nem o olhar de minha mãe.
E aquele fim de noite, preso na árvore do amanhã,
tão pouco trazia o meu primeiro dia.Fiquei eu, e a presença
de uma pergunta — uma só! — velada
como as memórias de um mar
no vazio das conchas.E essa pergunta — meu Deus! — eu já esqueci.
Entardecer na Praia da Luz
Espreguiçados, os ramos
das palmeiras filtram
a luz que sobra
do dia. É já noite
nas folhas. O branco
das paredes recolhe
o sangue e o vinho
de buganvílias
e hibiscos. Bebe-os
de um trago: saberás
que, mais do que cegueira, a noite
é uma embriaguez perfeita.
Noite de Amores
Mimosa noite de amores,
Mimoso leito de flores,
Mimosos, lânguidos ais!
Vergôntea débil ainda,
Tremia! Lua tão linda,
Lembra-me ainda… Jamais!Aquela dália mimosa,
Aquele botão de rosa
Dos lábios dela… Senhor!
Murchavam; mas, como a Lua,
Passava a nuvem: «Sou tua»!
Reverdeciam de amor!E aquela estátua de neve
Como é que o fogo conteve
Que não a vi descoalhar?
Ondas de fogo, uma a uma,
Naquele peito de espuma
Eram as ondas do mar!Como os seus olhos me olhavam,
Como nos meus se apagavam,
E se acendiam depois!
Como é que ali confundidas
Se não trocaram as vidas
E os corações de nós dois!Mimosa noite de amores,
Mimoso leito deflores,
Mimosos, lânguidos ais!
Vergôntea débil ainda,
Tremia! Lua tão linda,
Lembra-me ainda… Jamais!
Passagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
Anjo És
Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
Não vejo a c’roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d’amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não têm. – Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?Não respondes – e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!…
Isto que me cai no peito
Que foi?… – Lágrima? – Escaldou-me…
Queima,
Certa Velhinha
1
Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que triste velhinha que vae a passar!
Não leva candeia; hoje, o céu não tem luzes…
Cautella, velhinha, não vás tropeçar!Os ventos entoam cantigas funestas,
Relampagos tingem de vermelho o Azul!
Aonde irá ella, n’uma noite d’estas,
Com vento da Barra puxado do sul?Aonde irá ella, pastores! boieiras!
Aonde irá ella, n’uma noite assim?
Se for un phantasma, fazei-lhe fogueiras,
Se for uma bruxa, queimae-lhe alecrim!Contava-me aquella que a tumba já cerra,
Que Nossa Senhora, quando a chama alguem,
Escolhe estas noites p’ra descer á Terra,
Porque em noites d’estas não anda ninguem…Além, na tapada das Quatorze Cruzes,
Que linda velhinha que vem a passar!
E que olhos aquelles que parecem luzes!
Quaes velas accezas que a vêm a guiar…Que pobre capinha que leva de rastros,
Tão velha, tão rôta! Que triste viuvez!
Mas se lhe dá vento, meu Deus! tantos astros!
É o céu estrellado vestido do envez…Seu alvo cabello, molhado das chuvas,
Parece uma vinha de luar em flor…
Inocência
De um lado, a veste; o corpo, do outro lado,
Límpido, nu, intacto, sem defesa…
Mitológico rosto debruçado
Na noite que, por ele, fica acesa!Se traz os lábios húmidos e lassos
É que a paixão sem mácula ainda o cega
E tatuou na curva de alvos braços
As sete letras da palavra: entrega.Acre perfume o dessa flor agreste.
Álcool azul o desse verde vinho.
De um lado o corpo; do outro lado, a veste
Como luar deitado no caminho…Em frente há um pinheiro cismador.
O rio corre, vagaroso ao fundo.
Na estrada ninguém passa… Ai! tanto amor
Sem culpa!
Ai! dos Poetas deste mundo!
Elegia dos Amantes Lúcidos
Na girândola das árvores (e não há quem as detenha)
Deixa de fora a tarde o vermelho que a tinge.
Se ao menos tu ficasses na pausa que desenha
O contorno lunar da noite que te finge!Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
Que fosse a sensibilidade deste pensamento
Com que a minha sombra vai pensando o meu destinoE não houvesse o sono dum telhado
Entre ter de haver eu e haver o tecto;
E a eternidade não estivesse ao lado
A colocar-nos nas costas as asas dum insectoMeu amor, meu amor, teu gesto nasce
Para partir de ti e ser ao longe
A cor duma cidade que nos pasce
Como a ausência de deus pastando um mongeAh, se uma súbita mão na hora a pique
Tangendo harpas geladas por segredos
Desprendesse uma aragem de repiques
Destes sinos parados pelo medo!Mas só porque vieste fez-se tarde,
Ou é a vida que nasce já tardia
Como uma estrela que se acende e arde
Porque não cabe na rapidez do dia?
Natal
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Completas
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Cântico Negro
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãeNão, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre,
Cigarra
Esta não é filha do sol
com pernas e pés de marinheiros
subindo às árvores das herdades.
Esta é preciso ouvi-la dias inteiros
aquém das grades.Esta
não chama para os campos doirados
onde o canto é livre e aquece, morno.
Mas para silêncios hirtos e cerrados
com fardas e armas em torno.Desde o sinal das auroras
até à noite que plange
amortalhando as horas,
seu canto não canta, range…Ó cigarra das torvas claridades!
Seus cantos só pode cantá-los
a boca de pedra e dentes ralos
do ferro nas grades.
Há Palavras que Nos Beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.