Caminho II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quĂŞ, nem eu o sei.
– Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinhoÉ longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue choramos a dor de cada um…
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
Passagens sobre Queimas
62 resultadosA chama da sabedoria queima as impurezas. Na verdade, não há neste mundo purificante que se iguale à sabedoria.
Caminho
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quĂŞ, nem eu o sei.
– Bom dia, companheiro – te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue chorámos a dor de cada um…
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
A Dádiva da Evidência de Si
Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuitidade deste milagre de sermos.
Frustração
Persegui-a com as mãos, como uma criança a um brinquedo.
Era um sonho; era mais: – a alegria que chega,
o prazer que nos toma e nos deixa inebriados,
atirando Ă corrente, num gesto, os sentidos…Ah! Povoou minhas noites de sono sem pálpebras;
dançava entre estrelas na distância, – via-a!
Meu destino! pensei, – eis o amor! – É esse sangue
que me queima por dentro e me agita: eis o amor!E alcancei-a! Eis o mar ao redor atordoante!
Nos meus braços em concha era como uma pérola
escondida, o mistĂ©rio do oceano a guardar…E de repente, Ă© estranho! esse vazio, esta ânsia!
Como a posse do amor está longe do amor
e o rumor que há na concha… está longe do mar!
A cera sobeja queima a igreja.
Um homem nĂŁo pode viver sem lume, e nĂŁo Ă© possĂvel fazer-se lume sem queimar alguma coisa.
O Meu ImpossĂvel
Minh’alma ardente Ă© uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!Tudo Ă© vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito.É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vĂŁo! Deus, que tristeza!…Aos meus irmĂŁos na dor já disse tudo
E nĂŁo me compreenderam!…VĂŁo e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto…Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, nĂŁo a chorava como agora,
IrmĂŁos, nĂŁo a sentia como a sinto!…
Se Pudesses Estar Comigo Vinte e Quatro horas do Dia
Se pudesses estar comigo durante as vinte e quatro horas do dia, observar cada gesto meu, dormir comigo, comer comigo, trabalhar comigo, tudo isto nĂŁo poderia ter lugar. Quando me vejo afastado de ti, penso em ti constantemente e isso dá cor a tudo o que eu diga ou faça. Se soubesses o quĂŁo fiel te sou! NĂŁo apenas fisicamente, mas mentalmente, moralmente, espiritualmente. Aqui nĂŁo há qualquer tentação para mim, absolutamente nenhuma. Estou imune a Nova Iorque, aos meus velhos amigos, ao passado, a tudo. Pela primeira vez na minha vida, estou completamente centrado em outro ser… Em ti. Sinto-me capaz de dar tudo, sem ter medo de ficar exaurido ou de me ver perdido. Quando ontem escrevi no meu artigo que «se eu nunca tivesse ido para a Europa…», nĂŁo era a Europa que tinha em mente, mas sim tu.
Mas nĂŁo posso dizer isso ao mundo num artigo. Tu Ă©s a Europa. Pegaste em mim, um homem despedaçado, e tornaste-me completo. E nĂŁo hei-de desintegrar-me — nĂŁo existe o menor perigo disso. Mas agora vejo-me mais sensĂvel, mais receptivo a qualquer sinal de perigo. Se te persigo loucamente, se te imploro para ouvires, se fico Ă tua porta e espero por ti,
A ira queima o entendimento.
A Minha Saudade Tem o Mar Aprisionado
A minha saudade tem o mar aprisionado
na sua teia de datas e lugares.
É uma matéria vibrátil e nostálgica
que nĂŁo consigo tocar sem receio,
porque queima os dedos,
porque fere os lábios,
porque dilacera os olhos.
E nĂŁo me venham dizer que Ă© inocente,
passiva e benigna porque nĂŁo posso acreditar.
A minha saudade tem mulheres
agarradas ao pescoço dos que partem,
crianças a brincarem nos passeios,
amantes ocultando-se nas sebes,
soldados execrando guerras.
Pode ser uma casa ou uma rede
das que não prendem pássaros nem peixes,
das que tĂŞm malhas largas
para deixar passar o vento e a pressa
das ondas no corpo da areia.
Seria hipĂłcrita se dissesse
que esta saudade nĂŁo me vem Ă boca
com o sabor a fogo das coisas incumpridas.
Imagino-a distante e extinta, e contudo
cresce em mim como um distĂşrbio da paixĂŁo.
O homem ama a companhia, mesmo que seja apenas a de uma vela que queima.
Divino Instante
Ser uma pobre morta inerte e fria,
Hierática, deitada sob a terra,
Sem saber se no mundo há paz ou guerra,
Sem ver nascer, sem ver morrer o dia;Luz apagada ao alto e que alumia,
Boca fechada Ă fala que nĂŁo erra,
Urna de bronze que a Verdade encerra,
Ah! ser Eu essa morta inerte e fria!Ah! fixar o efémero! Esse instante
Em que o teu beijo sĂ´frego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro;Ah! fixar o momento em que, dolente,
Tuas pálpebras descem, lentamente,
Sobre a vertigem dos teus olhos de oiro!
Dialética
Quando nĂŁo se queima lenha
na casa de palha e taipa,
sinal de fome que escapa
à saga que se faz senha.Rio, termômetro da várzea,
geografia de sol e chuva;
linha d’água, arco em curva,
elementos dessa faina.Um pássaro risca na tarde
a cambraia do seu canto;
o fado da sarça, que arde,queimando encardidos lĂrios
e a tua palidez palustre
em febre acendendo cĂrios.
Amor não deve somente queimar, mas também aquecer.
Fado PortuguĂŞs
O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.Ai, que lindeza tamanha,
meu chĂŁo , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vĂŞ se vĂŞs terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.MĂŁe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo Ă sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
Ă proa de outro velero
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.
Serenata do Adolescente
Que doentia claridade
a que me invade e me obsidia,
durante a noite e Ă luz da tarde,
Ă luz da tarde, Ă luz do dia!
Que doentia aquela grade
de insone e ténue claridade,
sob a avançada gelosia!Passo na rua e nada vejo
senĂŁo a luz, a luz e a grade.
Ă“ lamparina do desejo,
porque ardes tu, até tão tarde?
E Ă s vezes surge, entre a cortina,
aquela sombra vespertina
que me retĂ©m nesta ansiedade.Se tens trint’anos? ou cinquenta?
Quis lá saber a tua idade!
Sei que em meus olhos se impacienta
fome da luz daquela grade!
Sei que sou novo, e que me odeio
porque me tarda — ante o teu seio —
queimar tĂŁo pobre mocidade!
Dizer que a gente vai amar uma pessoa a vida toda é como dizer que uma vela continuará a queimar enquanto vivermos.
Erro
Erro Ă© teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Nem foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressĂŁo;
Um querer indiferente,
Em tua presença vivo,
Nulo se estavas ausente.
E se ora me vĂŞs esquivo,
Se, como outrora, nĂŁo vĂŞs
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que, — como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.Para eu amar-te devias
Outra ser e nĂŁo como eras.
Tuas frĂvolas quimeras,
Teu vĂŁo amor de ti mesma,
Essa pĂŞndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A glĂłria de me arrastar
Ao teu carro…VĂŁs quimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e nĂŁo como eras…
Despedida
Uma harpa envelhece.
Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores
sonham junto às estátuas de treva.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança.
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se
foi amor.
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das
ruĂnas,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus.
Uma estrela caĂa.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do
sul, a sua extrema dor anoitecida.
NĂŁo vens jamais.
O teu rosto Ă© a relva mutilada dos passos em que me
entristeço, a absoluta condenação.
Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
no centro desta cidade.
Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
as tuas folhas de outubro.
Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
a nudez de quem sangra Ă vista das catedrais.
O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esta mĂşsica Ă© quase o vento.