Dedicatória
A quem não basta a vida, a quem procura
as luzes escondidas de outra noite
deixo dedicatória e pronta fuga
da treva que nos ronda até à morte.Mas já não sei mentir. Ruim figura.
Durou o nosso enredo uma só noite.
Teu corpo eu aprendi nessas escuras
sombras a que não chega nem a morte.A quem não basta a vida, a quem engana
essa réstea de luz dentro da noite
deixo dedicatória e abro os olhos:
que tudo nos é dado de repente.E num feixe de sombras imprecisas
arde o que resta a quem não basta a vida.
Passagens sobre Sombra
817 resultadosA Vida que Vivemos
A vida que vivemos encerrou-se
na concha de coral duma lembrança.
Por muros altaneiros confmou-se,
volteia dentro deles em suave dança.Liberta de sonhar, por tal fronteira,
condenada a um eterno redopio,
pusilânime e triste timoneira
balançando ao sabor do teu navio,ó estranha expressão de movimento,
tão escrava de ti que não tens fim,
ó reduto fechado dum tormentocujas mãos me maltratam só a mim,
deixa as aves lançarem no teu meio
essa sombra das asas por que anseio!
Adoração
Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par;
Contemplei-o de longe mudo e quedo,
Como quem volta de áspero degredo
E vê ao ar subindo
O fumo do seu lar!Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual;
Suave como lâmpada sagrada,
Benvindo como a luz da madrugada
Que rompe ao navegante
Depois do temporal!Vi esse corpo de ave,
Que parece que vai
Levado como o Sol ou como a Lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!Tremo apenas pressinto
A tua aparição,
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
É uma adoração!Que as asas providentes
De anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe…
Foste Tu que me Desvendaste o Amor
Querida: estamos sozinhos à mesa nesta noite infinita em que a chuva cai lá fora com um ruido monótono de chôro. Estamos sós nesta noite de saudade e nunca foi maior a nossa companhia, porque cada vez me sinto mais perto dos mortos. Rodeiam-nos, chegam-se para mim e sentam-se ao nosso lume. São legião… Mais perto, que eu faço uma labareda que nos aqueça a todos. A velha mesa da consoada foi-se despovoando com o tempo, mas hoje estão aqui sentadas todas as figuras que conheço desde que me conheço… Tu, toda branca, e que mesmo através do túmulo me transmites sonho; tu, mais longe, mais apagada e sumida; e tu, que vens de volta, e encostas os teus cabelos brancos aos meus cabelos brancos, para me dizeres baixinho: — Menino!—Pois ainda me chamas menino?! — Outro acolá sorri e outro tenta falar… Dois vivos e tantos mortos sentados à roda desta mesa que veio de meu pai, foi de meu avô e pertenceu já a outras gerações desconhecidas, mas que estão aqui também comigo, escutando e sorrindo, enquanto as pinhas se transformam em flores maravilhosas e as vides que plantei se reduzem a cinza!… Nunca estive tão acompanhado como hoje nesta ceia religiosa de fantasmas,
A Minha Estrela
A meu irmão Aprígio A.
E eu disse – Vai-te, estrela do Passado!
Esconde-te no Azul da Imensidade,
Lá onde nunca chegue esta saudade,
– A sombra deste afeto estiolado.Disse, e a estrela foi p’ra o Céu subindo,
Minh’alma que de longe a acompanhava,
Viu o adeus que do Céu ela enviava,
E quando ela no Azul foi-se sumindoSurgia a Aurora – a mágica princesa!
E eu vi o Sol do Céu iluminando
A Catedral da Grande Natureza.Mas a noute chegou, triste, com ela
Negras sombras também foram chegando,
E nunca mais eu vi a minha estrela!
Sèvres Partido
A amazona negra era bella como o sol e triste como o luar, e ninguem acredita mas era pastora de galgas. Figura negra muito esguia, cypreste procurando vaga na margem do caminho.
Nas manhãs de Outomno, frias como os degraus do tanque, era Ella quem largava às galgas a lebre cinzenta, e a que a filásse já sabia com quem dormia a sésta. E as galgas já nem dormiam bem noutra almofada.
Sobre a relva, na sombra arrendilhada das folhas amarellecidas dos plátanos onde os repuxos do tanque cuspiam lagryrnas de vidro, a Amazona negra sonhava o seu Principe encantado e a galga do dia dormia quieta, estendido o focinho no ventre d’Ella.
Uma manhã mais turva as galgas todas voltaram tristes, de focinhos pendidos – e nenhuma para dormir a sésta!
Uma flauta triste vinha de viagem pelo caminho; chorava de seguida imensas canções de choros e tinha acompanhamentos funéreos de guisalhádas surdas.
Callou-se a flauta, um cypreste distante gemia baixinho as dôres da tatuagem que lhe iam abrindo no peito. O pastor lembrava ali o nome do seu Bem. Pendia-lhe da cinta uma lebre cinzenta e a funda torcida.
Mater Dolorosa
Sozinha, olho para o teu corpo e sei como é dentro de mim que ele
existe;
desde que nasceste compreendi que podiam apenas os meus braços
acolher-te. Fico de novo presa
a este sofrimento. Sentia como chegava a sombra e com ela o que
seria apenas
o teu espírito, perdido como as primeiras imagens que se
desprendem agora
nesta manhã tranquila. Há-de a sua recordação ser talvez a mesma
que vinha com os sonhos ainda suspensos pelas mãos que se
tomam
mais leves, iniciais. Poderia descer para mim este sangue; ele
pertencia-me
como se a luz viesse apenas recolhê-lo. O resto era o que se não
separava
da noite, dessas vestes que ficam caídas sobre o teu corpo
como se fossem a piedade; era tão pouco o que recebias. Ajudo-te
com o meu silêncio. Julgo que talvez nele chegue um pouco
de calor
a que sozinho te poderias acolher. Assim repousas junto de mim
e principio a olhar-te. Que idade era a tua quando se uniram
as mãos? Espero há muito as palavras que traziam consigo
uma recordação que não podia existir na tua voz apagada;
Fragmento Terceiro
I
Campos de ira, tão vasto sentimento
vos afasta. íris morta! Os actos radicais
constroem, em projeto, um frágil
universo – a tinta, o espaço óptico.
Descansam os sentidos sobre pródigas
defesas: os filtros turvos, as precauções
na sua cura. Os nervos tersos
da análise da vida e da matéria.II
Desviam-se dos livros. Hoje escreve
contra a morte dos olhos, a existência
passível de leitura. Ineptos, os sons
perdem-se na encosta. o vento fere
ainda? Inscrito
na área da cabeça, é esse rastro
ainda vivo. Domino a sua queda, os seus poderes
punitivos, a sua força hereditária.III
Persistir no imóvel. Preencher
os anos que nos moldam
no vigor da fibra, no duro movimento
interior — a que destino, a que imaturo
ritmo, sem preço? Pois é o caro
prémio deste dorso
de o cumprir, pensar, até ao fim.
Ou de saber adestrá-lo até que,
exausto, só impulso
vigore — a morte lida
num próximo sentido, ainda vivo.IV
Como contacto único,
Deus está morto: mas, considerando o estado em que se encontra a espécie humana, talvez ainda por um milénio existirão grutas em que se mostrará a sua sombra.
A verdadeira substância da ambição é a sombra de um sonho.
Aconteceu-Me Do Alto Do Infinito
Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e través estranhos ritosDe sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito…Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma cousa de alma do que é meu.Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido…
Sozinha no Bosque
Sozinha no bosque
com meus pensamentos.
calei as saudades,
fiz trégua aos tormentos.Olhei para a Lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.Naquela torrente
que vai despedida,
encontro, assustada,
a imagem da vida.Do peito, em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a pensar.
Onde a Sombra de Ti
Onde a sombra de ti, o meu perfil
É linha de certeza. Aí são convergentes
As vagas circulares, no seu limite
O ponto rigoroso se propaga.
Aí se reproduz a voz inicial,
A palavra solar, o laço da raiz.
Nasce de nós o tempo, e, criadores,
Pela força do perfil coincidente,
Amanhecemos deuses de mãos dadas.
Tirem-me os Deuses o Amor, Glória e Riqueza
Tirem-me os deuses
Em seu arbítrio
Superior e urdido às escondidas
O Amor, glória e riqueza.Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A consciência lúcida e solene
Das coisas e dos seres.Pouco me importa
Amor ou glória,
A riqueza é um metal, a glória é um eco
E o amor uma sombra.Mas a concisa
Atenção dada
Às formas e às maneiras dos objetos
Tem abrigo seguro.Seus fundamentos
São todo o mundo,
Seu amor é o plácido Universo,
Sua riqueza a vida.A sua glória
É a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objetos.O resto passa,
E teme a morte.
Só nada teme ou sofre a visão clara
E inútil do Universo.Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver.
Não me digas adeus, ó sombra amiga, abranda mais o ritmo dos teus passos; sente o perfume da paixão antiga dos nossos bons e cândidos abraços! Não vás ainda embora, ó sombra amiga!
Sob a lua a sombra que se alonga é uma só.
O Mundo
O mundo, tal como o entendo,
Não vai além daquilo que o cego
De cor e sombra pode encontrar
Na escuridão que é a sua sina;
Este mundo, imenso e luzente,
O qual nós viemos herdar
Com um orgulho inconsciente,
Vale tanto quanto as nossas rimas
E haveres, sua lama dourada —
Nada, é o mais que dele vou falar
E aqui, no leito do nada,
Para o outro lado vou-me voltar.
Crepúsculo
Alada, corta o espaço uma estrela cadente.
As folhas fremem. Sopra o vento. A sombra avança.
Paira no ar um languor de mística esperança
e de docúra triste, inexprimivelmente.À surdina da luz irrompe, de repente,
o coro vesperal das cigarras. E mansa,
E marmórea, no céu, curvo e claro, balança,
entre nuvens de opala, a concha do crescente.Na alma, como na terra, a noite nasce. É quando,
da recôndita paz das horas esquecidas,
vão, ao luar da saudade, os sonhos acordando…E, na torre do peito, em plácidas batidas,
melancolicamente o coração chorando,
plange o réquiem de amor das ilusões perdidas.
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
O quanto perco em luz conquisto em sombra.