XXX
Não se passa, meu bem, na noite, e dia
Uma hora só, que a mísera lembrança
Te não tenha presente na mudança,
Que fez, para meu mal, minha alegria.Mil imagens debuxa a fantasia,
Com que mais me atormenta e mais me cansa:
Pois se tão longe estou de uma esperança,
Que alívio pode dar me esta porfia!Tirano foi comigo o fado ingrato;
Que crendo, em te roubar, pouca vitória,
Me deixou para sempre o teu retrato:Eu me alegrara da passada glória,
Se quando me faltou teu doce trato,
Me faltara também dele a memória.
Sonetos sobre Dia
386 resultadosLuva Abandonada
Uma só vez calçar-vos me foi dado,
Dedos claros! A escura sorte minha,
O meu destino, como um vento irado,
Levou-vos longe e me deixou sozinha!Sobre este cofre, desta cama ao lado,
Murcho, como uma flor, triste e mesquinha,
Bebendo ávida o cheiro delicado
Que aquela mão de dedos claros tinha.Cálix que a alma de um lírio teve um dia
Em si guardada, antes que ao chão pendesse,
Breve me hei de esfazer em poeira, em nada…Oh! em que chaga viva tocaria
Quem nesta vida compreender pudesse
A saudade da luva abandonada!
Comparação
“Eu sou fraca e pequena…”
Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Que em teus olhos fulgia.Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela… e
E no entretanto – é um mundo!
A Louca
A Dias Paredes
Quando ela passa: – a veste desgrenhada,
O cabelo revolto em desalinho,
No seu olhar feroz eu adivinho
O mistério da dor que a traz penada.Moça, tão moça e já desventurada;
Da desdita ferida pelo espinho,
Vai morta em vida assim pelo caminho,
No sudário de mágoa sepultada.Eu sei a sua história. – Em seu passado
Houve um drama d’amor misterioso
– O segredo d’um peito torturado –E hoje, para guardar a mágoa oculta,
Canta, soluça – coração saudoso,
Chora, gargalha, a desgraçada estulta.
Ausência
Meu amor, como eu sofro este tormento
da tua ausência!… Ando magoada
como a folha arrancada pelo vento
ao carinhoso anseio da ramada…Procuro desviar o pensamento…
mas oiço ao longe a tua voz molhada
em lágrimas, vibrando o sofrimento
da nossa vida assim, tão separada!Os meus beijos escutam os teus beijos
exigentes — perdidos de saudade…
crispando amargamente os meus desejos!E dia a dia essa canção de dor,
ritornelo sombrio de ansiedade,
exalta ainda mais o meu amor!
Caminho
I
Tenho sonhos cruéis; n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!…Porque a dor, esta falta d_harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d’agora,Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quê, nem eu o sei.
d Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinhoÉ longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue choramos a dor de cada um…
IV
Sou pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
A Alma Dos Vinte Anos
A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos…Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.
A Uma Dama Dormindo Junto A Uma Fonte
À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.
Ruínas
I
E é triste ver assim ir desfolhando,
Vê-las levadas na amplidão do ar,
As ilusões que andámos levantando
Sobre o peito das mães, o eterno altar.Nem sabe a gente já como, nem quando,
Há-de a nossa alma um dia descansar!
Que as almas vão perdidas, vão boiando
Nesta corrente eléctrica do mar!…Ó ciência, minha amante, ó sonho belo!
És fria como a folha dum cutelo…
Nunca o teu lábio conheceu piedade!Mas caia embora o velho paraíso,
Caia a fé, caia Deus! sendo preciso,
Em nome do Direito e da Verdade.II
Morreu-me a luz da crença — alva cecém,
Pálida virgem de luzentas tranças
Dorme agora na campa das crianças,
Onde eu quisera repousar também.A graça, as ilusões, o amor, a unção,
Doiradas catedrais do meu passado,
Tudo caiu desfeito, escalavrado
Nos tremendos combates da razão.Perdida a fé, esse imortal abrigo,
Fiquei sozinho como herói antigo
Batalhando sem elmo e sem escudo.A implacável, a rígida ciência
Deixou-me unicamente a Providência,
Eu não Quero Esquecer os Dias que Viveram
Eu não quero esquecer os dias que viveram.
Por eles escrevi estes versos mofinos;
escrevi-os à tarde ouvindo rir meninos,
meninos loiro-sóis que bem cedo morreram.Eu não quero esquecer os dias que enumeram
desejos e prazeres, rezas e desatinos;
e, em loucuras ou entoando hinos,
lá na Curva da Estrada, azuis, desapareceram.Eu não quero esquecer dos dias mais felizes
a bênção branca-e-astral, lá das Alturas vinda,
nem tampouco o travor das horas infelizes.Eu não quero esquecer… Quero viver ainda
o tempo que secou, mas que deixou raízes,
e em verde volverá, e florirá ainda…
Já lá Vão Sete Lustros
Já lá vão sete lustros, que este monte
Berço me foi: Já da vital jornada
Mais de meia carreira está passada;
E cedo iremos ver outro horizonte:A mão já treme, já se enruga a fronte,
Já branqueja a cabeça, e com a pesada
Consideração da vida mal gastada,
Vai-se apagando a luz, secando a fonte.Pouco nos resta, que passar já agora;
E para as derradeiras agonias
De tantos anos, aproveite hum’hora.Esperanças, temores, vãs porfias,
Paixões, desejos, ide-vos embora;
Favor, que me fareis por poucos dias.
Entre O Ser E As Coisas
Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.N´água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungido,
uma fogueira a arder no dia findo
Ofélia
Num recesso da selva ínvia e sombria,
Estrelada de flores, vicejante,
Onde um rio entre seixos, espumante,
Cursando o vale, túrgido, fluía;A coma esparsa, lívido o semblante,
Desvairados os olhos, como fria
Aparição dos túmulos, um dia
Surgiu de Hamlet a lacrimosa amante;Símplices flores o seu porte lindo
Ornavam… como um pranto, iam caindo
As folhas de um salgueiro na corrente…E na corrente ela também tombando,
Foi-se-lhe o corpo alvíssimo boiando
Por sobre as águas indolentemente.
Renúncia
Chora de manso e no íntimo… Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura…A vida é vã como a sombra que passa…
Sofre sereno e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.Encerra em ti tua tristeza inteira.
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira…
A Teodoro de Banville
De tal modo agarraste a Deusa pela crina,
Com ar dominador, num gesto sacudido
Que se alguém presencia o caso acontecido
Poderia julgar-te um rufião de esquina.Com o límpido olhar, — precoce e ardente vista,
Audaz, vais expandido o orgulho de arquitecto
Em nobres produções, de traço tão correcto,
Que deixam futurar um prodigioso artista.O nosso sangue, Poeta, esvai-se dia a dia!…
Acaso, do Centauro, a túnica sombria,
— Que, fúnebres caudais as velas transformava —Três vezes se tingiu com as barbas subtis
D’aqueles infernais, monstruosos, répteis,
Que Hércules, em crença, a rir, estrangulava?Tradução de Delfim Guimarães
Aqueles Claros Olhos Que Chorando
Aqueles claros olhos que chorando
ficavam quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou s’estarão aquele alegre dia
que torne a vê-los, n’alma figurando?Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?Oh! bem-aventurados fingimentos,
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!
Soneto De Roma
Felizes os que chegam de mãos dadas
como se fosse o instante da partida
e entre as fontes que jorram a água clássica
dão em silêncio adeus à claridade.No dourado crepúsculo da tarde
o que nos dividiu agora é soma
e a vida que te dei e que me deste
voa entre os pombos no fulgor de Roma.Todo fim é começo. A água da vida
eterna e musical sustenta o instante
que triunfa da morte nas ruínas.Como o verão sucede à neve fria
um sol final aquece o nosso amor,
devolução da aurora e luz do dia.
Luiz Gama
A Raul Pompéia
Tantos triunfos te contando os dias,
Iam-te os dias descontando e os anos,
Quando bramavas, quando combatias
Contra os bárbaros, contra os desumanos;Quando a alma brava e procelosa abrias
Invergável ao pulso dos tiranos,
E ígnea, como os desertos africanos
Dilacerados pelas ventanias…Contra o inimigo atroz rompeste em guerra,
Grilhões a rebentar por toda a parte,
Por toda a parte a escancarar masmorras.Morreste!… Embalde, Escravidão! Por terra
Rolou… Morreu por não poder matar-te!
Também não tarda muito que tu morras!
Soneto Com Pássaro E Avião
Uma coisa é um pássaro que voa.
Outra um avião. Assim, quem o prefere
Não sabe às vezes como o espaço fere
Aquele, um vi morrer, voando à toaUm dia em Christ Church Meadows, numa antiga
Tarde, reminiscente de Wordsworth…
E tudo o que ficou daquela morte
Foi um baque de plumas, e a cantigaInterrompida a meio: espasmo? espanto?
Não sei. tomei-o leve em minha mão
Tão pequeno, tão cálido, tão lassoEm minha mão… Não tinha o peito de amianto.
Não voaria mais, como o avião
Nos longos túneis de cristal do espaço…