O Sexo
Neste corpo, a densa neblina, quase um hábito,
lentamente descida, sedimento e sede,
subtilmente o acalma. Ancora que se desloca,
movediça e infirme. Só no olhar, alémda luz e da cal, se distinguem os desejos
e a mestria das palavras. E não há remos
nem astros. Convido a neblina a esta
mesa de chumbo, onde nada levanta o fogosolar ou os signos se alteiam. É a hora
em que o corpo treme e a sombra lavra as frouxas
manhãs. O que serão as tardes, sob a névoa,quando o vigor agoniza e o vão das águas abre
o caos e os ecos? Estaremos em paz,
usando a palavra, última herdeira das areias.
Sonetos sobre Fogo
109 resultadosJulga-Me A Gente Toda Por Perdido
Julga-me a gente toda por perdido,
vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;que eu só em humilde estado me contento,
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n’alma.
Soneto Amoroso Defendendo o Amor
SONETO AMOROSO DEFENDENDO O AMOR
É gelo abrasador, fogo gelado,
é ferida que dói e não se sente,
é um sonhado bem, um mal presente,
é um breve descanso fatigado;é um sossego que nos dá cuidado,
um cobarde com nome de valente,
solitário andar por entre gente,
um amar nada mais que ser amado;é uma liberdade encarcerada,
que dura até ao último momento;
doença que piora se é tratada.Este o menino Amor, o seu tormento.
Vede a amizade que terá com nada
o que em tudo vai contra o seu intento!Tradução de José Bento
Ordena Amor que Morra, e Pene Juntamente
Como fizeste, ó Porcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
É que Amor fazer só quis experiência
Se podia eu sofrer, tirar-me a vida?E com teu próprio sangue te convida
A que faças à morte resistência?
É que costume faço da paciência,
Porque o temor morrer me não impida.Pois porque estás comendo com fogo ardente,
Se a ferro te costumas? É que ordena
Amor que morra, e pene juntamente.E tens a dor do ferro por pequena?
Si, que a dor costumada não se sente,
E não quero eu a morte sem a pena.
Presídio
Nem todo o corpo é carne… Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco…?E o ventre, inconsistente como o lodo?…
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor… Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo…É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidiovulto da Primavera em pleno Outono…
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
Somente em Ser Mudável Tem Firmeza
Todo animal da calma repousava,
Só Liso o ardor dela não sentia;
Que o repouso do fogo, em que ele ardia,
Consistia na Ninfa que buscava.Os montes parecia que abalava
O triste som das mágoas que dizia:
Mas nada o duro peito comovia,
Que na vontade de outro posto estava.Cansado já de andar pela espessura,
No tronco de uma faia, por lembrança
Escreve estas palavras de tristeza:Nunca ponha ninguém sua esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser mudável tem firmeza.
Ardor Em Firme Coração Nascido
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:Tu, que um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.Se és fogo, como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
Deus, Infinito Ser
Deus, Infinito ser, nunca criado,
Sem princípio, nem fim, na Majestade
Que no trono da Eterna Divindade
Tens o Mundo num dedo dependurado:Tu estavas em Ti, não foste nado,
O teu Ser era a tua Imensidade,
Tu tiveste por berço a Eternidade,
Tu, sem tempo, em Ti mesmo eras gerado!Tu és um fogo que arde sem matéria,
Tu és perpétua luz, que não desmaia
Fulgindo, sem cessar, na sala etérea!Tu és um mar de amor, que não tem praia,
Trovão assustador da esfera aérea,
Rei dum Reino Imortal, que não tem raia!…
Julga-me a gente toda por perdido
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro na alma.
Epígrafe
De palavras não sei. Apenas tento
desvendar o seu lento movimento
quando passam ao longo do que invento
como pre-feitos blocos de cimento.De palavras não sei. Apenas quero
retomar-lhes o peso a consistência
e com elas erguer a fogo e ferro
um palácio de força e resistência.De palavras não sei. Por isso canto
em cada uma apenas outro tanto
do que sinto por dentro quando as digo.Palavra que me lavra. Alfaia escrava.
De mim próprio matéria bruta e brava
– expressão da multidão que está comigo.
(H)Aras E Sara(H)
Nas areias do Saara sei-me potro
corcel bebendo o fogo do deserto.
Nas almofadas dunas tão macias
deito-me ao sono sonho cavalgando.Arrebatado sigo sem miragens
teu trote gracioso nesse oásis
de ver nas anchas ancas tanta água
e sei que a minha sede tem abrigo.Sedento garanhão de antiga Arábia
no solo de Israel lua de alfanje
brilha na tenda a estrela de David.Iluminada alcova ardendo em sândalo
a sarça da paixão demove intrigas
e rega no seu vinho nossos corpos.
A Obsessão Do Sangue
Acordou, vendo sangue… – Horrível! O osso
Frontal em fogo… Ia talvez morrer,
Disse. olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! certamente não podia ser!Levantou-se. E eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão …E amou, com um berro bárbaro de gozo,
o monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!
Louvado Seja Amor em Meu Tormento
No tempo que de amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.Que ardesse n’um só fogo não queria
O Céu porque tivesse experimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co’o peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!
Amoroso Desdém num Belo Agrado
Amoroso desdém num belo agrado,
No mais duro ferir um doce jeito,
Tirania suave em brando aspeito,
Olhos de fogo em coração nevado,No vestir um asseio descuidado,
Ingratidão amável no respeito,
O brio, a graça, o riso em um sujeito,
Variamente com o grave misturado.Animado primor da formosura,
Luzido discursar de engenho agudo,
Custosa luz, incêndio pretendido,Alma no talhe, garbo na postura,
Capricho no cuidado, ar no descuido,
Armas são com que amor me tem rendido.
Metamorfose
A Carlos Ferreira
O sol em fogo pelo ocaso explode
Nesse estertor, que os crânios assoberba.
Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba
Dos ideais a original nevrose.Da natureza os anafis mouriscos
Ante o cariz da atmosfera muda,
Soam queixosos, numa nota aguda,
Da luz que esvai-se aos derradeiros discos.O pensamento que flameja e luta
Nos ares rasga aprofundado sulco…
A sombra desce nos lisins da gruta;E a lua nova — a peregrina Onfale,
Como em um plaustro luminoso, hiulco,
Surge através dos pinheirais do vale.
Passei Ontem A Noite Junto Dela.
Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós – e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela…Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! Só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando…
Cheio de amores! E dormir solteiro!
Enquanto outros Combatem
Empunhasse eu a espada dos valentes!
Impelisse-me a acção, embriagado,
Por esses campos onde a Morte e o Fado
Dão a lei aos reis trémulos e ás gentes!Respirariam meus pulmões contentes
O ar de fogo do circo ensanguentado…
Ou caíra radioso, amortalhado
Na fulva luz dos gládios reluzentes!Já não veria dissipar-se a aurora
De meus inúteis anos, sem uma hora
Viver mais que de sonhos e ansiedade!Já não veria em minhas mãos piedosas
Desfolhar-se, uma a uma, as tristes rosas
D’esta pálida e estéril mocidade!
Ó Trevas, que Enlutais a Natureza
Ó trevas, que enlutais a Natureza,
Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza;Manes, surgidos da morada acesa
Onde de horror sem fim Plutão se goza,
Não aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que voz minha tristeza.Perdi o galardão da fé mais pura,
Esperanças frustrei do amor mais terno,
A posse de celeste formosura.Volvei, pois, sombras vãs, ao fogo eterno;
E, lamentando a minha desventura,
Movereis à piedade o mesmo Inferno.
Diálogo
A cruz dizia à terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:
— Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em luta cega e brava?Sempre em trabalho, condenada escrava.
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, és só lodo informe e rudo;
Revoltosa, és só fogo e horrida lava…Mas a mim não há alta e livre serra
Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!Sou o espírito, a luz!.. tu és tristeza,
Oh lodo escuro e vil! — Porém a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!
Carta às Estrellas
Ninguem soletra mais vossos mysterios
Grandes letras da Noute! sem cessar…
Ó tecidos de luz! rios ethereos,
Olhos azues que amolleceis o Mar!…O que fazeis dispersas pelo ar?!…
E ha que tempos ha já, fogos siderios,
Que ides assim como uns brandões funereos
Que levaes o Deus Padre a sepultar?!Ha que tempos, dizei! – Ha muitos annos?…
E, com tudo, astros santos, deshumanos,
A vossa luz é sempre clara e egual!Ha muito, que sois bons, castos, brilhantes!…
– Mas, tambem… ó crueis! sempre distantes…
Como dos nossos braços o Ideal!