Sonetos sobre Fogo

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Sonetos de fogo escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Epígrafe

De palavras não sei. Apenas tento
desvendar o seu lento movimento
quando passam ao longo do que invento
como pre-feitos blocos de cimento.

De palavras não sei. Apenas quero
retomar-lhes o peso a consistência
e com elas erguer a fogo e ferro
um palácio de força e resistência.

De palavras não sei. Por isso canto
em cada uma apenas outro tanto
do que sinto por dentro quando as digo.

Palavra que me lavra. Alfaia escrava.
De mim próprio matéria bruta e brava
– expressão da multidão que está comigo.

(H)Aras E Sara(H)

Nas areias do Saara sei-me potro
corcel bebendo o fogo do deserto.
Nas almofadas dunas tão macias
deito-me ao sono sonho cavalgando.

Arrebatado sigo sem miragens
teu trote gracioso nesse oásis
de ver nas anchas ancas tanta água
e sei que a minha sede tem abrigo.

Sedento garanhão de antiga Arábia
no solo de Israel lua de alfanje
brilha na tenda a estrela de David.

Iluminada alcova ardendo em sândalo
a sarça da paixão demove intrigas
e rega no seu vinho nossos corpos.

A Obsessão Do Sangue

Acordou, vendo sangue… – Horrível! O osso
Frontal em fogo… Ia talvez morrer,
Disse. olhou-se no espelho. Era tão moço,
Ah! certamente não podia ser!

Levantou-se. E eis que viu, antes do almoço,
Na mão dos açougueiros, a escorrer
Fita rubra de sangue muito grosso,
A carne que ele havia de comer!

No inferno da visão alucinada,
Viu montanhas de sangue enchendo a estrada,
Viu vísceras vermelhas pelo chão …

E amou, com um berro bárbaro de gozo,
o monocromatismo monstruoso
Daquela universal vermelhidão!

Louvado Seja Amor em Meu Tormento

No tempo que de amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse n’um só fogo não queria
O Céu porque tivesse experimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co’o peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!

Amoroso Desdém num Belo Agrado

Amoroso desdém num belo agrado,
No mais duro ferir um doce jeito,
Tirania suave em brando aspeito,
Olhos de fogo em coração nevado,

No vestir um asseio descuidado,
Ingratidão amável no respeito,
O brio, a graça, o riso em um sujeito,
Variamente com o grave misturado.

Animado primor da formosura,
Luzido discursar de engenho agudo,
Custosa luz, incêndio pretendido,

Alma no talhe, garbo na postura,
Capricho no cuidado, ar no descuido,
Armas são com que amor me tem rendido.

Metamorfose

A Carlos Ferreira

O sol em fogo pelo ocaso explode
Nesse estertor, que os crânios assoberba.
Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba
Dos ideais a original nevrose.

Da natureza os anafis mouriscos
Ante o cariz da atmosfera muda,
Soam queixosos, numa nota aguda,
Da luz que esvai-se aos derradeiros discos.

O pensamento que flameja e luta
Nos ares rasga aprofundado sulco…
A sombra desce nos lisins da gruta;

E a lua nova — a peregrina Onfale,
Como em um plaustro luminoso, hiulco,
Surge através dos pinheirais do vale.

Passei Ontem A Noite Junto Dela.

Passei ontem a noite junto dela.
Do camarote a divisão se erguia
Apenas entre nós – e eu vivia
No doce alento dessa virgem bela…

Tanto amor, tanto fogo se revela
Naqueles olhos negros! Só a via!
Música mais do céu, mais harmonia
Aspirando nessa alma de donzela!

Como era doce aquele seio arfando!
Nos lábios que sorriso feiticeiro!
Daquelas horas lembro-me chorando!

Mas o que é triste e dói ao mundo inteiro
É sentir todo o seio palpitando…
Cheio de amores! E dormir solteiro!

Enquanto outros Combatem

Empunhasse eu a espada dos valentes!
Impelisse-me a acção, embriagado,
Por esses campos onde a Morte e o Fado
Dão a lei aos reis trémulos e ás gentes!

Respirariam meus pulmões contentes
O ar de fogo do circo ensanguentado…
Ou caíra radioso, amortalhado
Na fulva luz dos gládios reluzentes!

Já não veria dissipar-se a aurora
De meus inúteis anos, sem uma hora
Viver mais que de sonhos e ansiedade!

Já não veria em minhas mãos piedosas
Desfolhar-se, uma a uma, as tristes rosas
D’esta pálida e estéril mocidade!

Ó Trevas, que Enlutais a Natureza

Ó trevas, que enlutais a Natureza,
Longos ciprestes desta selva anosa,
Mochos de voz sinistra e lamentosa,
Que dissolveis dos fados a incerteza;

Manes, surgidos da morada acesa
Onde de horror sem fim Plutão se goza,
Não aterreis esta alma dolorosa,
Que é mais triste que voz minha tristeza.

Perdi o galardão da fé mais pura,
Esperanças frustrei do amor mais terno,
A posse de celeste formosura.

Volvei, pois, sombras vãs, ao fogo eterno;
E, lamentando a minha desventura,
Movereis à piedade o mesmo Inferno.

Diálogo

A cruz dizia à terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte áspero e mudo:
— Que és tu, abismo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em luta cega e brava?

Sempre em trabalho, condenada escrava.
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, és só lodo informe e rudo;
Revoltosa, és só fogo e horrida lava…

Mas a mim não há alta e livre serra
Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!

Sou o espírito, a luz!.. tu és tristeza,
Oh lodo escuro e vil! — Porém a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!

Carta às Estrellas

Ninguem soletra mais vossos mysterios
Grandes letras da Noute! sem cessar…
Ó tecidos de luz! rios ethereos,
Olhos azues que amolleceis o Mar!…

O que fazeis dispersas pelo ar?!…
E ha que tempos ha já, fogos siderios,
Que ides assim como uns brandões funereos
Que levaes o Deus Padre a sepultar?!

Ha que tempos, dizei! – Ha muitos annos?…
E, com tudo, astros santos, deshumanos,
A vossa luz é sempre clara e egual!

Ha muito, que sois bons, castos, brilhantes!…
– Mas, tambem… ó crueis! sempre distantes…
Como dos nossos braços o Ideal!

Morte, Juízo, Inferno e Paraíso

Em que estado, meu bem, por ti me vejo,
Em que estado infeliz, penoso e duro!
Delido o coração de um fogo impuro,
Meus pesados grilhões adoro e beijo.

Quando te logro mais, mais te desejo;
Quando te encontro mais, mais te procuro;
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.

Assim passo, assim vivo, assim meus fados
Me desarreigam d’alma a paz e o riso,
Sendo só meu sustento os meus cuidados;

E, de todo apagada a luz do siso,
Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados
Morte, Juízo, Inferno e Paraíso.

Dos Mais Fermosos Olhos

Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:

Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um esprito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indigno
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco uma alma só, pouco uma vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.

Arrependo-me de a Meter num Romance

O poema tem mais pressa que o romance,
Asa de fogo para te levar:
Assim, pois, se houver lama que te lance
Ao corpo quente algum, hei-de chorar.

Deus fez o poeta por que não descanse
No golfo do destino e amores no mar:
Vem um, de onda, cobri-la — e ela que dance!
Vem outro — e faz menção de me enfeitar.

Os outros a conspurcam, mas é minha!
Chicoteá-la vou com a própria espinha,
Estreitam-me de amor seus braços mornos,

Transformo seus gemidos em meus uivos
E torno anéis dos seus cabelos ruivos
Na raspa canelada dos meus cornos.

Na Rua

Veijo-a sempre passar séria, constante,
– Às vezes, inclinada na janella, –
Tranquilla, fria, e pallido o semblante,
Como uma santa triste de capella.

Seu riso sem callor como o brilhante
No nosso labio o proprio riso gella,
E ella nasceu para chorar diante
D’um Christo n’uma estreita e escura cella.

Seu olhar virginal como as crianças
Jamais disse do amor as cousas mansas;
Jamais vergou da Força ao choque rude.

Abrasa-a um fogo divinal secreto! –
eu sinto, mal a avisto, ao seu aspecto,
O brio intenso e negro da Virtude.

XXVIII

Faz a imaginação de um bem amado,
Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do meu cuidado.

Nesta doce loucura arrebatado
Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.

Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,
E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;

Como nas tristes lágrimas, que verto,
Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe dela estou, e estou tão perto.

Não Canse o Cego Amor de me Guiar

Pois meus olhos não cansam de chorar
Tristezas não cansadas de cansar-me;
Pois não se abranda o fogo em que abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar;

Não canse o cego Amor de me guiar
Donde nunca de lá possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Enquanto a fraca voz me não deixar.

E se em montes, se em prados, e se em vales
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, águas;

Ouçam a longa história de meus males,
E curem sua dor com minha dor;
Que grandes mágoas podem curar mágoas.

Olhar

As grades que me prendem são teus olhos,
aquática prisão, cela telúrica,
liana que me enrosca e me desfolha
no tronco tosco dessa árvore lúbrica.

No sol de Gláucia apenas me recolho
e, sendo assim, o sido se faz público
num pelourinho aberto com seus folhos
zurzindo seu chicote em gestos lúdicos.

Perau de feras, circo de centelha
regendo as águas tépidas de escamas
no fogo da (a)ventura da parelha.

Tudo em suor e sal o amor proclama:
No mar do teu olhar a onda se espelha
na chama que me queima e que te inflama.

Quando Se Vir Com Água O Fogo Arder

Quando se vir com água o fogo arder,
e misturar co dia a noite escura,
e a terra se vir naquela altura
em que se vem os Céus prevalecer;

o Amor por razão mandado ser,
e a todos ser igual nossa ventura,
com tal mudança, vossa formosura
então a poderei deixar de ver.

Porém não sendo vista esta mudança
no mundo (como claro está não ver-se),
não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,
o ganho de minha alma, e o perder-se,
para não deixar nunca de querer-vos.

Soneto I

De Amor escrevo, de Amor falo e canto;
E se minha voz fosse igual ao que amo,
Esperara eu sentir na que em vão chamo
Piedade, e na gente dor e espanto.

Mas não há pena, ou língua, ou voz, ou canto
Que mostre o amor por que eu tudo desamo,
Nem o vivo fogo em que me sempre inflamo,
Nem de meus olhos o contino pranto.

Assi me vou morrendo, sem ser crida
A causa por que em vão mouro contente,
Nem sei se isto que passo é vida ou morte.

Mas inda da que eu amo fosse ouvida
E crida minha voz, e da vã gente
Nunca entendida fosse minha sorte!