XXX
Não se passa, meu bem, na noite, e dia
Uma hora só, que a mísera lembrança
Te não tenha presente na mudança,
Que fez, para meu mal, minha alegria.Mil imagens debuxa a fantasia,
Com que mais me atormenta e mais me cansa:
Pois se tão longe estou de uma esperança,
Que alívio pode dar me esta porfia!Tirano foi comigo o fado ingrato;
Que crendo, em te roubar, pouca vitória,
Me deixou para sempre o teu retrato:Eu me alegrara da passada glória,
Se quando me faltou teu doce trato,
Me faltara também dele a memória.
Sonetos sobre Mil
111 resultadosA Uma Dama Dormindo Junto A Uma Fonte
À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.
Eu Me Ausento de Ti, Meu Pátrio Sado
Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado,
Mansa corrente deleitos, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:Nunca mais me verás entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados não, mortíferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;E talvez entre impávidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que humedece o Ganjes.
Lisboa
Ó Cidade da Luz! Perpétua fonte
De tão nítida e virgem claridade,
Que parece ilusão, sendo verdade,
Que o sol aqui feneça e não desponte…Embandeira-se em chamas o horizonte:
Um fulgor áureo e róseo tudo invade:
São mil os panoramas da Cidade,
Surge um novo mirante em cada monte.Ó Luz ocidental, mais que a do Oriente
Leve, esmaltada, pura e transparente,
Claro azulejo, madrugada infinda!E és, ao sol que te exalta e te coroa,
— Loira, morena, multicor Lisboa! —
Tão pagã, tão cristã, tão moira ainda…
Dos Ilustres Antigos Que Deixaram
Dos ilustres antigos que deixaram
tal nome, que igualou fama à memória,
ficou por luz do tempo a larga história
dos feitos em que mais se assinalaram.Se se com cousas destes cotejaram
mil vossas, cada üa tão notória,
vencera a menor delas a mor glória
que eles em tantos anos alcançaram.A glória sua foi; ninguém lha tome.
Seguindo cada um vários caminhos,
estátuas levantando no seu Templo.Vós, honra portuguesa e dos Coutinhos,
ilustre Dom João, com melhor nome
a vós encheis de glória e a nós de exemplo.
Perdi-me Dentro em Mim
Perdi-me dentro em mim, como em deserto,
Minha alma está metida em labirinto,
Contino contradigo o que consinto,
Cem mil discursos faço, em nada acerto.Vejo seguro o dano, o bem incerto;
Comigo porfiando me desminto,
O que mais atormenta, menos sinto,
O que me foge, quando está mais certo.E se as asas levanta o pensamento
Àquela parte, onde está escondida
A causa deste vario movimento,Transforma-se por não ser conhecida,
Porque quer a pesar do sofrimento
Pôr as armas da morte em mão da vida.
Vencido está de amor
Vencido está de amor Meu pensamento
O mais que pode ser Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e Instituída,
Oferecendo tudo A vosso intento.Contente deste bem, Louva o momento
Outra vez renovar Tão bem perdida;
A causa que me guia A tal ferida,
Ou hora em que se viu Seu perdimento.Mil vezes desejando Está segura
Com essa pretensão Nesta empresa,
Tão estranha, tão doce, Honrosa e altaVoltando só por vós Outra ventura,
Jurando não seguir Rara firmeza,
Sem ser no vosso amor Achado em falta.
Soneto X
Vendo da peste o bárbaro flagelo
Mil vidas a ceifar a cada instante,
D’África deixa o solo distante
E veio no Brasil curar Otelo.O semblante imposto negro-amarelo
Cresta do orgulho a chama crepitante,
Traz cheia de vidrinhos o turbante,
E buído punhal por escalpelo.Homeopata é, e o albergue puro
Do puro Martins busca e diz-lhe ardido:
“Doutor, eu quero ter vosso futuro.”— Bravo! grita o Martins enternecido;
Pelas cinzas de Hahnemann te juro
Que não hás de morrer desconhecido.
Visão Realizada
Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,
E me bradava: “Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?”“Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume.”Disse; e eu dando um suspiro: “Ah, não m’espantes
Coa a vista dessa fúria!… Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!”Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!
A Castidade com que Abria as Coxas
A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estrita, como se alargava.Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seresem mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.
XXXVII
Continuamente estou imaginando,
Se esta vida, que logro, tão pesada,
Há de ser sempre aflita, e magoada,
Se como o tempo enfim se há de ir mudando:Em golfos de esperança flutuando
Mil vezes busco a praia desejada;
E a tormenta outra vez não esperada
Ao pélago infeliz me vai levando.Tenho já o meu mal tão descoberto,
Que eu mesmo busco a minha desventura;
Pois não pode ser mais seu desconcerto.Que me pode fazer a sorte dura,
Se para não sentir seu golpe incerto,
Tudo o que foi paixão, é já loucura!