Textos sobre Gelados

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Textos de gelados escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Na Tua Voz, Irmão

Estavam sentados e não falavam. Cada um olhava para um lado que não via. Atrás dos rostos tristes, cismavam. Pensando, Moisés dizia palavras ao irmão, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia será um instante e trará a solidão. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Já reparaste?, nunca precisámos de nos chamar. Não sei como é o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmão, irmão. Não sei como é o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero será a antecâmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidão. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nós para sermos só tu e só eu. Mas não esqueceremos. E lembrarmo-nos será o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e não podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordávamos e olhávamos um para o outro, pois tínhamos acordado ao mesmo tempo e tínhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,

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O Meu Maior Medo

O amor em todo o coração e em toda a parte se procura. Já anima a possibilidade de ser encontrado e a incerteza de não passar o resto da vida sem poder amar e sem poder ser amado. O que custa é acreditar naquilo que se tem, quando todos os dias, ao longo de longos anos, se consegue encontrar esse amor que se procura, na pessoa que se ama e no lugar e no tempo – aqui, agora, daqui a bocadinho – em que mais gostamos de encontrá-lo.
Hoje a Maria João e eu fazemos doze anos de casados e a única esperança que eu tinha – que se tornasse mais fácil acreditar na sorte que me coube na pessoa que ela é e na cegueira de olhar uma segunda vez para mim – acabou por ser mentira.
Há um castigo para tudo: até para a maior felicidade. É o medo não só que tudo acabe mas que se descubra, de alguma maneira, que nunca tenha começado. Por exemplo, se ela se apaixonasse por outra pessoa.
«Não vai durar, não pode durar, é bom de mais para durar»: é isto que repito no êxtase da minha alegria roubada ao sol,

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Hábito e Inércia

Ao princípio, somos carne animada pela alma; a meio caminho, meias máquinas; perto do fim, autómatos rígidos e gelados como cadáveres. Quando a morte chega, encontramo-nos em tudo semelhantes aos mortos. Esta petrificação progressiva é obra do hábito.
O hábito torna-nos cegos às maravilhas do mundo – indiferentes e inconscientes perante os milagres quotidianos -, embota a força dos sentidos e dos sentimentos – torna-nos escravos dos costumes, mesmo tristes e culpados: suprime a vista, espanto, fogo e liberdade. Escravos, frígidos, insensatos, cegos: tudo propriedade dos cadáveres. A subjugação aos hábitos é uma subjugação da morte; um suicídio gradual do espírito.
O hábito suprime as cores, incrusta, esconde: partes da nossa vida afundam-se gradualmente na inconsciência e deixam de ser vida para se tornarem peças de um mecanismo imprevisto. O círculo do espontâneo reduz-se; a liberdade e novidade decaem na monotonia do vulgar.
É como se o sangue se tornasse, a pouco e pouco, sólido como os ossos e a alma um sistema de correias e rodas. A matéria não passa de espírito petrificado pelos hábitos. Nasce-se espírito e matéria e termina-se apenas como matéria. A casca converteu em madeira a própria linfa.
A casca é necessária para proteger o albume,

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Um Pedaço do Céu

– É verdade, Liliana. De momento, nesta tarde tão húmida e nublada, com este fio que se nos mete pelos ossos adentro, Deus é um café bem quente e aromático, feito com grãos acabados de moer; no verão, procura Deus num belo gelado, num desses gelados tão saborosos, de torrão, de chocolate; ou de papaia e manga, porque agora os espanhóis também já fazem gelados de manga, e de goiaba e papaia, e um dia destes até gelados de dúrio há de haver, embora os espanhóis não gostem do cheiro do dúrio, tão forte, parece que lhes mete nojo. Eu também não gosto do cheiro, mas o fruto é uma delícia. Pensa que aí mesmo, na geladaria da praça, está um pedaço do céu com que sonhámos, ou do céu que podemos alcançar e que ainda não nos tiraram. Senta-te com os teus filhos numa esplanada, num fim de tarde de agosto, come um gelado de manga bem cremoso, e verás que é aí que está o Deus do verão, assim como está no tintico o Deus do inverno. Quando os espanhóis chegaram para nos conquistar, nós sabíamos que não existe um só deus, mas muitos deuses, há um deus para cada coisa,

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Hino à Tolerância

Já será grande a tua obra se tiveres conseguido levar a tolerância ao espírito dos que vivem em volta; tolerância que não seja feita de indiferença, da cinzenta igualdade que o mundo apresenta aos olhos que não vêem e às mãos que não agem; tolerância que, afirmando o que pensa, ainda nas horas mais perigosas, se coíba de eliminar o adversário e tenha sempre presente a diferença das almas e dos hábitos; dar-lhe-ão, se quiserem, o tom da ironia, para si próprios, para os outros; mas não hão-de cair no cepticismo e no cómodo sorriso superior; quando chegar o proceder, saberão o gosto da energia e das firmes atitudes. Mais a hão-de ter como vencedores do que como vencidos; a tolerância em face do que esmaga não anda longe do temor; então, antes os quero violentos que cobardes.
Mas tu mesmo, Marcos, com que direito és tolerante? Acaso te julgas possuidor da verdade? Em que trono te sentaram para que assim olhes de cima o resto dos humanos e todo o mundo em redor? Por que tão cedo te separas de compreender e de amar? Tens a pena do rico para o pobre, dás-lhe a esmola de lhe não fazer mal;

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Deixar Sempre as Coisas a Meio

A grandeza, o verdadeiro luxo, está nessa displicência algo aristocrática, não na pior aceção da palavra, de deixar sempre as coisas a meio: esse copo de conhaque que se abandona na varanda do bar, as moedas que nunca mais se acabam de recolher da bandejinha em que o criado nos trazia o troco, os pratos por limpar, as tardes inteiras de torpor e moleza, desperdiçadas sem culpa porque sobra vida, porque haverá tempo. Essa é a atitude que se opõe à do miserável a quem a necessidade mais visceral e mesquinha faz ver poesia nesse sorver até à última gota o que a vida lhe oferece. E não deita nada fora, então, e guarda para amanhã, e mesquinhamente esconde as sobras para as aproveitar depois como um cão saciado que enterra os ossos junto de uma árvore para não desperdiçar nem um grama de alimento; e molha no chocolate todos os churros que fazem parte da dose, mesmo a rebentar de cheio, caibam ou não dentro do seu estômago. E mil vezes preferível deixar sempre qualquer coisa no prato, desdenhar com elegância de parte do festim; jantar, por exemplo, com uma senhora admirável e permitir graciosamente que escape viva. E,

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