Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente
Escrevi atĂ© o princĂpio da manhĂŁ aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pĂŞlo dos gatos. O sol a chegar Ă escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silĂŞncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercĂcio, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhĂŁ apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.
Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois,
Textos sobre Sol de JosĂ© LuĂs Peixoto
8 resultadosAmo-te
Talvez nĂŁo seja prĂłprio vir aqui, para as páginas deste livro, dizer que te amo. NĂŁo creio que os leitores deste livro procurem informações como esta. No mundo, há mais uma pessoa que ama. Qual a relevância dessa notĂcia? Ă€ sombra do guarda-sol ou de um pinheiro de piqueniques, os leitores nĂŁo deverĂŁo impressionar-se demasiado com isso. Depois de lerem estas palavras, os seus pensamentos instantâneos poderĂŁo diluir-se com um olhar em volta. Para eles, este texto será como iniciais escritas por adolescentes na areia, a onda que chega para cobri-las e apagá-las. E possĂvel que, perante esta longa afirmação, alguns desses leitores se indignem e que escrevam cartas de protesto, que reclamem junto da editora. Dou-lhes, desde já, toda a razĂŁo.
Eu sei. Talvez não seja próprio vir aqui dizer aquilo que, de modo mais ecológico, te posso afirmar ao vivo, por email, por comentário do facebook ou mensagem de telemóvel, mas é tão bom acreditar, transporta tanta paz. Tu sabes. Extasio-me perante este agora e deixo que a sua imensidão me transcenda, não a tento contrariar ou reduzir a qualquer coisa explicável, que tenha cabimento nas palavras, nestas pobres palavras. Em vez disso, desfruto-a, sorrio-lhe. Não estou aqui com a expectativa de ser entendido.
O Significado do Amor
Eu pensava que conhecia o significado do amor. O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda.
O amor Ă© o sentido de todas as palavras impossĂveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor Ă© a paz fresca e a combustĂŁo de um incĂŞndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhĂŁ, o cĂ©u a deslizar como um rio. A tarde, o sol como uma certeza. O amor Ă© feito de claridade e da seiva das rochas. O amor Ă© feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor Ă© feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etĂ©reos, a salvação Ă© uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.
Eu acreditava mesmo que o amor Ă© o sangue do sol dentro do sol.
O Outono da Vida
Começa devagarinho. É como tudo. A gente andamos na nossa vida, andamos influĂdos e está claro que nĂŁo reparamos. De manhĂŁ, temos de pensar no cafĂ©.
Depois, há-de vir o almoço. Está claro que nem reparamos numa aragem. Mal uma aragem mais fresca que se mistura com o sol-pĂ´r. Já setembro quer acabar e ainda temos a torrina do sol na pele, a hora do calor, (quase cansada, para a cadela invisĂvel) Anda cá, Ladina… TambĂ©m estás a ficar velha… Arriba, cadela… (voltando ao tom e Ă direcção inicial) A gente nem dá fĂ©. Primeiro, Ă© umas pontadas nas costas, umas sezões, umas coisas assim. Primeiro, a gente julga que vai passar, como passavam os esfolões nas pernas quando Ă©ramos pequenos e andávamos a correr pelas ruas ou quando encontrávamos alguma árvore a jeito de subir. Começa mesmo devagarinho. Aos poucos, (com ternura, para a cadela) Ah, Ladina… Bochinha, bochinha… EntĂŁo, nĂŁo queres vir? Anda cá, cadela… (voltando Ă direcção inicial) E as mĂŁos começam a tremer um bocadinho. E o trabalho começa a ser mais custoso. E um dia a gente já quase que nĂŁo conhece a nossa cara no espelho no lavatĂłrio. É nesse dia, Ă© nessa hora que começa o outono.
Ao Longo da Escrita deste Livro
No ano passado, em outubro, talvez a 27, sei que foi a uma terça-feira, a minha mĂŁe incentivou-me a dar um passeio. Há muito que desistiu de me dissuadir dos livros, tanto lĂŞs que treslĂŞs, mas mantĂ©m o hábito de, cuidadosa, depois de bater Ă porta com pouca força, entrar no meu quarto e perguntar: nĂŁo te apetece dar um passeio? Na maioria das vezes, nĂŁo tenho disposição para lhe responder mas, nessa tarde, estava a meio de um capĂtulo altruĂsta e decidi fazer-lhe a vontade. O volante do carro, as minhas mĂŁos a sentirem todas as pedras quase como se estivesse a deslizá-las na estrada. Estacionei no campo, a pouca distância de um grupo de homens e mulheres, botas de borracha, que estavam a apanhar azeitona. Espalhavam uma gritaria animada que nĂŁo se alterou quando saĂ do carro e me aproximei, boa tarde. Uma vantagem do meu nome Ă© que dispenso alcunha. Olha o Livro, boa tarde. O sol estava a pĂ´r-se. Troquei graças, enquanto dois homens recolheram os panões carregados debaixo da Ăşltima oliveira e os levaram Ă s costas.
Não esqueço o que vi a seguir. As mulheres dobraram os panões vazios e dispuseram-nos na terra, em forma de corredor.
Na Tua Voz, IrmĂŁo
Estavam sentados e nĂŁo falavam. Cada um olhava para um lado que nĂŁo via. Atrás dos rostos tristes, cismavam. Pensando, MoisĂ©s dizia palavras ao irmĂŁo, esperançado de que ele as ouvisse; no pensamento, dizia será um instante e trará a solidĂŁo. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro. Já reparaste?, nunca precisámos de nos chamar. NĂŁo sei como Ă© o meu nome na tua voz. Na tua voz, irmĂŁo, irmĂŁo. NĂŁo sei como Ă© o teu nome na minha voz. Pela primeira vez, gritaremos o nome um do outro, e o desespero será a antecâmara de uma dor triste a que nos habituaremos, como se habitua um homem sem coração ao espaço negro no peito. Viveste sempre na minha vida, e eu estive sempre contigo quando sorriste. Hoje, a solidĂŁo. Desapareceremos um do outro, deixaremos de ser nĂłs para sermos sĂł tu e sĂł eu. Mas nĂŁo esqueceremos. E lembrarmo-nos será o maior sofrimento, recordarmos o que fomos onde estivermos e nĂŁo podermos ser mais nada nesse dia. Lembrarmo-nos de quando acordávamos e olhávamos um para o outro, pois tĂnhamos acordado ao mesmo tempo e tĂnhamos ao mesmo tempo pensado em ver-nos. Lembrarmo-nos de falar na nossa maneira de falar,
Pai
Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim.
Estamos Atados, Filho
Levar-vos-ei sempre comigo. Olho de frente o último raio de sol antes de o sol desaparecer. Penso: um homem é um dia, um homem é o sol durante um dia. E é preciso continuar. Avançam os meus pés sobre a terra. Filho, dormes ainda, e quis mostrar-te o sol-pôr. Quis mostrar-te a terra, ensinar-te a cor da terra por dentro, porque quem conhece a cor da terra por dentro conhece o mundo e os homens. Filho, o sol desapareceu agora e deixou uma aura vermelha de sangue à volta do cabeço onde entrou, e quis ensinar-te que amanhã estará calor. Quis ensinar-te que, se não vires as estrelas de noite, espera chuva no dia seguinte. E saberes isto é saberes tudo. São estas as poucas coisas que nos dão a saber. O resto, filho, são mistérios sem explicação. O resto são punhais apontados dentro do nevoeiro. O resto são punhais que vemos aproximarem-se do nosso peito, e estamos atados, filho.