Vida
Vida:
sensualĂssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos sĂŁo horas
cadenciadas
rĂtmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do «nunca mais».
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplĂcio de Tântalo.
Envelheço…
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
Ă€ punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
OlĂmpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo…
O vento da noite badala nos ramos
sarcasmos canalhas.
NĂŁo avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vĂŞm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
— maldita selva,
Passagens sobre Chegada
50 resultadosOs Ministros da Pena
Eu nĂŁo sei como nĂŁo treme a mĂŁo a todos os ministros de pena, e muito mais Ă queles que sobre um joelho aos pĂ©s do rei recebem os seus oráculos, e os interpretam, e estendem. Eles sĂŁo os que com um advĂ©rbio podem limitar ou ampliar as fortunas; eles os que com uma cifra podem adiantar direitos, e atrasar preferĂŞncias; eles os que com uma palavra podem dar ou tirar peso Ă balança da justiça; eles os que com uma cláusula equĂvoca ou menos clara, podem deixar duvidoso, e em questĂŁo, o que havia de ser certo e efectivo; eles os que com meter ou nĂŁo meter um papel, podem chegar a introduzir a quem quiserem, e desviar e excluir a quem nĂŁo quiserem; eles, finalmente, os que dĂŁo a Ăşltima forma Ă s resoluções soberanas, de que depende o ser ou nĂŁo ser de tudo. Todas as penas, como as ervas, tĂŞm a sua virtude; mas as que estĂŁo mais chegadas Ă fonte do poder sĂŁo as que prevalecem sempre a todas as outras. SĂŁo por ofĂcio, ou artifĂcio, como as penas da águia, das quais dizem os naturais, que postas entre as penas das outras aves, a todas comem e desfazem.
E chegada no mundo-escrevia em 1948 – a hora de reformarmos a sociedade, a humanidade, não politicamente, que nada adianta; mas socialmente, que é tudo.
O ExercĂcio de Viver
Se o exercĂcio de viver consiste maioritariamente em se ir atraiçoando um por um os sonhos que animaram os nossos anos de infância e juventude, entĂŁo cada pessoa Ă© o resultado exato de um bom punhado de traições. Ă€s vezes centenas. Traem-se os sonhos mais puros e traem-se tambĂ©m os pesadelos. Por erro humano, fugimos de tempestades sem nos apercebermos de que eram tĂŁo nossas e estavam tĂŁo mergulhadas na nossa prĂłpria medula que sem elas nĂŁo poderĂamos existir. Dizemos, salva-me; dizemos, a ti já nĂŁo quererei cravar facas nas pernas, nĂŁo te farei mal, nĂŁo desejarei ver a tua expressĂŁo de dor em nenhum espelho, amar-te-ei de outro modo, adorar-te-ei a partir de um ser que nĂŁo existe, chamarei suplĂcio ao meu passado, chamar-lhe-ei calvário atĂ© chegar a ti. Dir-te-ei que Ă©s suave como sonho o cĂ©u e que nĂŁo me importo de fechar os olhos a tudo para sempre se souber que depois irás beijar-me as pálpebras. NĂŁo serei eu. Lançarei pazadas e mais pazadas de terra sobre o monstro. Aproximar-me-ei o mais possĂvel do nada, de um caixĂŁo sem morto, de uma catedral vazia. Comprar-te-ei flores.
NĂŁo pode ser muito difĂcil porque nada Ă© o que somos em definitivo,
O prestĂgio da poesia Ă© menos ela nĂŁo acabar nunca do que propriamente começar. É um inĂcio perene, nunca uma chegada seja ao que for.
Balada de Sempre
Espero a tua vinda
a tua vinda,
em dia de lua cheia.Debruço-me sobre a noite
a ver a lua a crescer, a crescer…Espero o momento da chegada
com os cansaços e os ardores de todas as chegadas…Rasgarás nuvens de ruas densas,
Alagarás vielas de bêbados transformadores.
Saltarás ribeiros, mares, relevos…
– A tua alma nĂŁo morre
aos medos e Ă s sombras!-Mas…,
Enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aà além,
sempre duvidoso,
desenha interrogações na areia molhada…
O Sustentáculo do Amor
A paz Ă© algo que nenhum homem pode dar a outro. Um dos fins mais importantes para quem arrisca ser quem Ă© será o de construir a sua prĂłpria paz. Esta resulta de um trabalho duro de equilĂbrio das vontades, de uma harmonização árdua das diferentes dimensões interiores, como o pensar e o sentir; Ă© um estado ágil e dinâmico que, ao limite, permite ultrapassar e vencer qualquer adversidade.
A paz não é o estado de quem vive uma ausência de conflitos, é o resultado da conciliação corajosa das diferentes forças que, dentro e fora de cada homem, tentam prevalecer sobre as demais, menosprezando-se mutuamente.Muitos são os que julgam ter encontrado a paz quando se livram do sonho do amor. Estão enganados, o caminho até à felicidade é ainda longo para quem cansado assim se contenta, repousando de uma luta que nem chegou a começar.
A paz é um ponto de passagem de quem ruma à plenitude da vida. A paz é o ponto de partida para o amor, que por sua vez lança o homem para a felicidade. A paz é o ponto de chegada dos que sofrem as dores mais profundas.
A verdade Ă© tranquila.
MĂşsica
Noite perdida,
nĂŁo te lamento:
embarco a vidano pensamento,
busco a alvorada
do sonho isento,puro e sem nada,
– rosa encarnada,
intacta, ao vento.Noite perdida,
noite encontrada,
morta, vivida,e ressuscitada…
(Asa da lua
quase parada,mostra-me a sua
sombra escondida,
que continuaa minha vida
num chĂŁo profundo!
– raiz prendidaa um outro mundo.)
Rosa encarnada
do sonho isento,muda alvorada
que o pensamento
deixa confiadaao tempo lento…
Minha partida,
minha chegada,Ă© tudo vento…
Ai da alvorada!
Noite perdida,
noite encontrada…
A GĂ©nese de um Povo
A refeição chegou muito tempo depois, fumegante, num alguidar de barro de cujo interior provinham diferentes odores a infância e a flores. A sua chegada, a sala inteira pareceu aquecer-se. Como em criança, José Artur pegou numa fatia do pão doce cortado à sua frente e colocou-a no fundo do prato, derramando sobre ela sucessivas conchas do caldo em que a carne mergulhava. Depois ergueu gravemente um dos pedaços dessa carne e passou-o para o prato também.
Levou o garfo Ă boca e fechou os olhos, a manteiga e o cravo-da-Ăndia e o toucinho de fumo diluindo-se e recombinando-se numa afluĂŞncia de sabores que se metamorfoseava. Ganhavam, perdiam e recuperavam cambiantes, Ă medida que entravam em acção novos ingredientes ainda, o vinho e a pimenta da Jamaica e a cebola e a banha de porco e de novo a carne, magnĂfica, derretendo-se-lhe na boca e fundindo-se com ela, como se ele tivesse, finalmente, atingido terra firme.
Comeu até ao fim, numa voragem antiga, e depois pegou nos últimos pedacinhos do pão doce e pôs-se a ensopar o resto do molho, comendo-os também.
«Massa sovada», lembrou-se. «Massa sovada!» Sabia-lhe a terramotos e a redenção.
Chegou-se para trás.
Quantos SĂ©culos Precisa um EspĂrito para Ser Compreendido?
Os maiores acontecimentos e os maiores pensamentos – mas os maiores pensamentos sĂŁo os maiores acontecimentos – sĂŁo os que mais tarde se compreendem: as gerações que lhes sĂŁo contemporâneas nĂŁo vivem esses acontecimentos, – passam por eles. Acontece aqui algo de análogo ao que se observa no domĂnio dos astros. A luz das estrelas mais distantes chega mais tarde aos homens; e antes da sua chegada, os homens negam que ali – existam estrelas. “Quantos sĂ©culos precisa um espĂrito para ser compreendido?” – aĂ está tambĂ©m uma medida, um meio de criar uma hierarquia e uma etiqueta necessárias: para o espĂrito e para a estrela.