Mais Nada se Move em Cima do Papel
mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpoos dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterradoencosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinadadesço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagemo mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusãoassim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração
Passagens sobre Dedos
286 resultadosTestemunhas Aparentes
Não me preocupa tanto qual eu seja para outrem como me preocupa qual eu seja em mim mesmo. Quero ser rico por mim, não por empréstimo. Os estranhos vêem apenas os acontecimentos e as aparências externas; cada qual pode ter um ar alegre exteriormente e por dentro estar cheio de febre e receio. Eles não vêem o meu coração; vêem apenas o meu comportamento. Tem-se razão em depreciar a hipocrisia que existe na guerra; pois o que é mais fácil para um homem oportunista do que esquivar-se dos perigos e fazer-se de bravo, tendo o ânimo repleto de frouxidão? Há tantos meios de evitar as ocasiões de arriscar-se pessoalmente que teremos enganado o mundo mil vezes antes de encetarmos um passo perigoso; e mesmo então, vendo-nos entravados, nesse momento bem sabemos encobrir o nosso jogo com um ar alegre e uma palavra serena, embora a alma nos trema interiormente.
E se alguém pudesse usar o anel de Platão, que tornava invisível quem o levasse no dedo e o virasse para a palma da mão, muitas pessoas amiúde se esconderiam quando mais é preciso apresentar-se e se arrependeriam de estar colocadas num lugar tão honroso, no qual a necessidade as torna seguras: Quem pode alegrar-se com falsas honrarias e temer a calúnia,
Somos Traídos pela Nossa Própria Percepção e Experiência
Vemos muito bem que as coisas não se alojam em nós com a sua forma e essência, e não penetram em nós pela sua própria força e autoridade; porque, se assim fosse, recebê-las-íamos do mesmo modo: o vinho seria o mesmo na boca do doente e na boca do homem são. Quem tem os dedos gretados, ou que os tem entorpecidos, encontraria na lança ou na espada que maneja uma rigidez semelhante à que o outro encontra. Os objetos externos rendem-se então à nossa mercê; alojam-se em nós como nos apraz. Ora, se da nossa parte recebêssemos alguma coisa sem alteração, se as faculdades humanas fossem bastante capazes e firmes para apreender a verdade pelos nossos próprios meios, esses meios sendo comuns a todos os homens, essa verdade se transmitiria de mão em mão de um para outro. E pelo menos se encontraria uma coisa no mundo, entre tantas que há, que seria acreditada pelos homens por um consenso universal. Mas o facto de não se ver proposição alguma que não seja debatida e controversa entre nós, ou que não o possa ser, mostra bem que o nosso julgamento natural não apreende muito claramente aquilo que apreende; pois o meu julgamento não pode fazer com que isso seja aceite pelo julgamento do meu companheiro,
Eu Ela e a Escrita
Eu ela e a escrita existimos desde o princípio. A escrita forma-se em mim, passa por ela e volta à minha pele num jogo sensual e íntimo. É um ser maleável aos gestos que executamos, vive e morre com os nossos impulsos. Quando se ausenta deixa sinais. Faz-nos confidências da sua vida errante, elabora sentimentos que não esperávamos que tivesse quando junta ao nosso, o seu instinto criativo. Assim, utilizo agora palavras que nunca pensei vir a escrever. Aceito-as porque as sei da espécie da personagem que habita connosco, conivente com os erros que cometemos.
Quando adolescente, passava o tempo a ler o dicionário, apercebendo-me da corrosão de algumas palavras, do seu poder destrutivo. Noutras havia sombra e um peso monstruoso. E as que ao tempo foram luminosas, irradiavam um brilho que se colou aos meus dedos. Eu gastava os dias a limpar-me dessa luz até não haver em mim resíduos de leitura. Descobria o esquecimento, onde o poema veio a ser abismo, outra vida onde o sorriso da morte teve muita importância. Amei a imperfeição do ser humano. Revisitei a infância e aquilo que em nós é real. Não soube prescindir da beleza.
Não contraria a razão preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão no meu dedo.
Nenhuma Morte Apagará os Beijos
Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas
[clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma líquida
[e atormentadadesvenderá em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.
A Rua Dos Cataventos – X
Eu faço versos como os saltimbancos
Desconjuntam os ossos doloridos.
A entrada é livre para os conhecidos…
Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!Vão começar as convulsões e arrancos
Sobre os velhos tapetes estendidos…
Olhai o coração que entre gemidos
Giro na ponta dos meus dedos brancos!“Meu Deus! Mas tu não tu não mudas o programa!”
Protesta a clara voz das Bem-Amadas.
“Que tédio!” o coro dos Amigos clama.“Mas que vos dar de novo e de imprevisto?”
Digo… e retorço as pobres mãos cansadas:
“Eu sei chorar… eu sei sofrer… Só isto!”
Ninguém aprende a tocar guitarra sem aleijar as pontas dos dedos. Se eu me tivesse convencido de que não aguentava mais, tinhas ficado por nascer. Às vezes, o cansaço é uma forma de medo.
Soneto à Rendeira
O linho é uma oração remota, nesse
fluir fabril de fio para a flor.
Move-se o coração da moça, e esquece
o tempo prisioneiro, em derredorda sombra esguia que à almofada tece.
Move-se, em seu afã modelador
de paz, o mito imemorial da prece
que do limbo da morte inventa o amor.Movem-se dentro dela o sol e o vento.
Move-se o mar, e os pórticos se movem
das águas em perpétuo movimento…Move-se a gênese em seu corpo jovem.
E, enquanto o olhar medita, os dedos tecem
gestos de amor que os lábios não conhecem.
A Função do Amor é Fabricar Desconhecimento
a função do amor é fabricar desconhecimento
(o conhecido não tem desejo;mas todo o amor é desejar)
embora se viva às avessas,o idêntico sufoque o uno
a verdade se confunda com o facto,os peixes se gabem de pescare os homens sejam apanhados pelos vermes(o amor pode não se
importar
se o tempo troteia,a luz declina,os limites vergam
nem se maravilhar se um pensamento pesa como uma estrela
—o medo tem morte menor;e viverá menos quando a morte acabar)que afortunados são os amantes(cujos seres se submetem
ao que esteja para ser descoberto)
cujo ignorante cada respirar se atreve a esconder
mais do que a mais fabulosa sabedoria teme ver(que riem e choram)que sonham,criam e matam
enquanto o todo se move;e cada parte permanece quieta:
pode não ser sempre assim;e eu digo
que se os teus lábios,que amei,tocarem
os de outro,e os teus ternos fortes dedos aprisionarem
o seu coração,como o meu não há muito tempo;
se no rosto de outro o teu doce cabelo repousar
naquele silêncio que conheço,ou naquelas
grandiosas contorcidas palavras que,dizendo demasiado,
Gente é tão louca e no entanto tem sempre razão. Quando consegue um dedo, já não serve mais, quer a mão. E o problema é tão fácil de perceber, é que gente nasceu pra querer.
Alheamento
Meu corpo estiraçado, lânguido, ao logo do leito.
O cigarro vago azulando os meus dedos.
O rádio… a música…
A tua presença que esvoaça
em torno do cigarro, do ar, da música…Ausência!, minha doce fuga!
Estranha coisa esta, a poesia,
que vai entornando mágoa nas horas
como um orvalho de lágrimas, escorrendo dos vidros
duma janela,numa tarde vaga, vaga…
Desespero
Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deuA grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o esperma que te dou, o desespero.
X
Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que é teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh’alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo…Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.
Ascensão
Beijava-te como se sobe uma escadaria:
pedra a pedra, do luminoso para o obscuro,
do mais visível para o mais recôndito
– até que os lábios fossem
não o ardor da sede, nem sequer a magia
da subida,
mas o tremor que é pétala do êxtase,
o lento desprender do sol do corpo
com o feliz quebranto dos meus dedos.
Nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos
Coração Solitário
A noite esta fechada na janela aberta.
Uma rua perdeu-se na sombra lá embaixo.
Não existe esta rua – é um beco surrealista
que fugiu de algum quadro louco que não vi.Ouço meu coração ardente e solitário
com sua música estranha de piano bêbado.
No espelho, meu olhar: duas chamas de estrelas.
Não sei se é o vento, sei que há música na noite.Há música no quarto, nas cortinas, música
nos meus cabelos despenteados, nos meus dedos,
no meu rosto, entra e sai pela janela.Música indefinida a encher a solidão:
– estou no ventre da noite a mexer com os meus sonhos
ouço o meu coração ardente e solitário.
Corpo
corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casaabre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservadomas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunaslevanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo
O Lázaro Da Pátria
Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes,Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíasis dos dedos…
Há um cansaço no Cosmos… Anoitece,Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!
Mente ou Pedra
Esta cidade é conhecida em todos os arredores por possuir as maiores estrebarias para bois, vacas e cavalos, construções que não ficam a dever nada nem sequer aos edifícios públicos; por outro lado contam-se aqui pelos dedos os locais onde se pode rezar ou discursar com total liberdade.
Em vez de se autocelebrarem por meio da arquitectura, não deveriam as nações fazê-lo pelo poder do seu pensamento abstracto? O Bagavad-Gita é muito mais admirável do que todas as ruínas do oriente. Torres e templos são luxo de príncipes. A mente simples e livre não moureja sob as ordens de nenhum príncipe. O espírito não é privilégio de nenhum imperador, nem são exclusivos deste, a não ser em insignificante medida, a prata, o ouro e o mármore. Com que finalidade, digam-me lá, se talha tanta pedra?
Quando estive na Arcádia, não vi pedras a serem lavradas. As nações são possuídas pela louca ambição de perpetuarem a sua memória com a soma das esculturas que deixam. Que tal se esforços semelhantes fossem despendidos no sentido de aperfeiçoar e polir a sua conduta? Uma obra de bom senso seria mais memorável que um momumento da altura da Lua. Prefiro contemplar as pedras no seu local de origem.