Desaparecido
Sempre que leio nos jornais:
«De casa de seus pais desapar’ceu…»
Embora sejam outros os sinais,
Suponho sempre que sou eu.Eu, verdadeiramente jovem,
Que por caminhos meus e naturais,
Do meu veleiro, que ora os outros movem,
Pudesse ser o próprio arrais.Eu, que tentasse errado norte;
Vencido, embora, por contrário vento,
Mas desprezasse, consciente e forte,
O porto do arrependimento.Eu, que pudesse, enfim, ser eu!
– Livre o instinto, em vez de coagido.
«De casa de seus pais desaparceu…»
Eu, o feliz desapar’cido!
Passagens sobre Instinto
242 resultadosA criação da natureza é um trabalho de todos os instantes. Só a perfeição está concluída e, mesmo essa, tem de aceitar a imperfeição inacabada quando lida com aquilo que é incompleto, com palavras ou sombras, com natureza, instinto, gente, com a emanação invisível de um passado mais remoto do que o próprio começo de tudo: a esperança.
O Instinto Trabalhado
Só pode inspirar a acção, servir de credo, o pensamento que se tenha tornado maquinal, instintivo. Perigo de nos analisarmos demasiadamente: as veias vivas do temperamento ficam, dessa maneira, excessivamente dilucidadas e tornadas maquinais, devido à familiaridade. O que é preciso, pelo contrário, é a arte de dar livre curso aos impulsos espirituais, deixando-os agir, mecanicamente, sob o estímulo. Há o manual do catecismo – por de mais conhecido e postiço – e o maquinal do instinto. É preciso favorecer, explorar, reconhecer e apoiar o instinto, sem lhe roubar o vigor por meio da reflexão. Mas é preciso reflectir nele, para o acompanhar na acção e substituí-lo nos momentos de surdez.
A Corrupção é Proporcional à Democracia
Os homens são atormentados pelo pecado original dos seus instintos anti-sociais, que permanecem mais ou menos uniformes através dos tempos. A tendência para a corrupção está implantada na natureza humana desde o princípio. Alguns homens têm força suficiente para resistir a essa tendência, outros não a têm. Tem havido corrupção sob todo o sistema de governo. A corrupção sob o sistema democrático não é pior, nos casos individuais, do que a corrupção sob a autocracia. Há meramente mais, pela simples razão de que onde o governo é popular, mais gente tem oportunidade para agir corruptamente à custa do Estado do que nos países onde o governo é autocrático. Nos estados autocraticamente organizados, o espólio do governo é compartilhado entre poucos. Nos estados democráticos há muito mais pretendentes, que só podem ser satisfeitos com uma quantidade muito maior de espólio que seria necessário para satisfazer os poucos aristocratas. A experiência demonstrou que o governo democrático é geralmente muito mais dispendioso do que o governo por poucos.
O Supremo Instinto do Asseio
O que separa mais profundamente duas pessoas é um sentido e grau diferentes de asseio. Para que serve toda a honestidade e utilidade mútua, para que serve toda a boa vontade de uns para os outros: por fim é sempre o mesmo – “eles não se podem cheirar!” O supremo instinto do asseio coloca quem o tiver na solidão mais estranha e perigosa, como um santo: pois isso precisamente é santidade – a suprema espiritualização desse instinto. Qualquer saber comum de uma indescritível felicidade do banho, qualquer ardor e sede que impelem a alma constantemente da noite para a manhã e do turvo, da «tribulação» para o claro, resplandecente, profundo, subtil: – do mesmo modo que tal tendência distingue – pois é uma tendência aristocrática -, também separa. A compaixão do santo é a compaixão com a sujidade do humano, demasiadamente humano. E há graus e alturas em que a própria compaixão é sentida, por ele, como contaminação, como sujidade…
A Doutrina Perfeita
Muitas vezes as pessoas dirigem-se a mim, dizendo: «você, que é independente». Não sou assim; continuamente devo ceder a pequenas fórmulas sofisticadas que corrompem, que dão um sentido inverso à nossa orientação, que fazem com que a transparência do coração se turve. Continuamente a nossa insegurança, o egoísmo, o espírito legalista, a mesquinhez, a vaidade, toda a espécie de circunstâncias que tomam o partido da vida como desfrute à sensação se sobrepõem à luz interior. Só a fé é independente. Só ela está para além do bem e do mal.
Estar para além do bem e do mal aplica-se a Cristo. «Perdoa ao teu inimigo, oferece a outra face» – disse Ele. Não é um conselho para humilhados, não é um preceito para mártires. Nisso aparece Cristo mal interpretado, a ponto de o cristianismo ter sido considerado uma religião de escravos. Mas esquecemos que Cristo, como Homem, teve a experiência-limite, uma visão do inconsciente absoluto, o que quer dizer que a sua consciência foi saturada, para além do bem e do mal. Esse homem que perdoa ao seu inimigo não o faz por contrariedade do seu instinto, por reparação dos seus pecados; mas porque não pode proceder de outra maneira.
Teoria e Prática
Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria. Quem não sabe nada dum assunto, e consegue alguma coisa nele por sorte ou acaso, chama «teórico» a quem sabe mais, e, por igual acaso, consegue menos. Quem sabe, mas não sabe aplicar – isto é, quem afinal não sabe, porque não saber aplicar é uma maneira de não saber -, tem rancor a quem aplica por instinto, isto é, sem saber que realmente sabe. Mas, em ambos os casos, para o homem são de espírito e equilibrado de inteligência, há uma separação abusiva. Na vida superior a teoria e a prática completam-se. Foram feitas uma para a outra.
Com o poder da sua mente, sua determinação, seu instinto, e a experiência também, você pode voar muito alto.
Escolher a metáfora óbvia é uma forma retorcida de originalidade. Aceitar a primeira escolha é o contrário do meu instinto e, hoje, acredito que os meus instintos têm pouca razão.
A fé é o instinto da acção.
Duas coisas instruem o homem, qualquer que seja a sua natureza: o instinto e a experiência.
Compaixão Perversa
O prazer de maltratar outrém é distinto da crueldade. Esta consiste em encontrar satisfação na compaixão, e atinge o ponto culminante quando a compaixão chega a extremos, como quando maltratamos os que amamos; todavia, se fosse alguém, que não nós, a magoar os que amamos, então ficávamos furiosos, e a compaixão tornar-se-nos-ia dolorosa; mas somos nós a amá-los e somos nós a magoá-los…
A compaixão exerce uma infinita atenção: a contradição de dois instintos fortes e opostos actua em nós como atractivo supremo.
(…) A crueldade e o prazer da compaixão:
A compaixão aumenta quanto mais conhecemos e mais amamos intensamente quem é objecto dela. Portanto, aquele que trata com crueldade o objecto do seu amor retira da crueldade – que amplia a compaixão – a máxima satisfação.
Quando, acima de tudo, nos amamos a nós próprios, o maior prazer que encontramos – por meio da compaixão – pode levar-nos a mostrarmo-nos cruéis para connosco. Heróico da nossa parte é o esforço de completa identificação com aquilo que nos é contrário. A metamorfose do Diabo em Deus representa esse grau de crueldade.
Spleen
Fora, na vasta noute, um vento de procela
Erra, aos saltos, uivando, em rajadas e em fúria;
E num rumor de choro, uma voz de lamúria,
Ouço a chuva a escorrer nos vidros da janela.No desconforto do meu quarto de estudante,
Velo. Sinto-me como insulado da vida.
Eu imagino a morte assim, aborrecida
Solidão numa sombra infinita e constante…Tu, que és forte, rebrame em fúria, natureza!
Eu, caído num fundo abismo de tristeza,
Invejo-te a expansão livre do temporal;E, no tédio feroz que me assalta e me toma,
Sinto ansiarem-me n’alma instintos de chacal…
E compreendo Nero incendiando Roma.
Personagem
Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto já me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.
O Intelecto Como Auxiliar da Felicidade
A filosofia tem de admitir que não é nela, mas sim na vida, que o homem deve encontrar as suas maiores satisfações; não na biblioteca ou na cela monástica, mas na satisfação dos seus instintos mais antigos. A felicidade é inconsciente; só nos bafeja quando somos naturais; se nos detemos a analisá-la, desaparece, porque não é natural determo-nos a analisar uma coisa. Se o intelecto contribui para a felicidade não o faz como fonte primária, mas sim como meio de coordenação, como instrumento harmonizador dos desejos. Neste sentido o intelecto pode ser um precioso auxiliar; e de contrário de nada valeria realizarmos todos os nossos fins, porque os desejos cancelar-se-iam uns aos outros, dando como resultado uma triste futilidade.
Três Poemas da Solidão
I
Nem aqui nem ali: em parte alguma.
Não é este ou aquele o meu lugar.
Desço à praia, mergulho as mãos no mar,
mas do mar, nos meus dedos, fica a espuma.Meu jardim, minha cerca, meu pomar.
Perpassa a Ideia e mói, como verruma.
Falar mas para quê? Só por falar?
Já nada quer dizer coisa nenhuma.Os instintos à solta, como feras,
e eu a pensar em velhas primaveras,
no antigo sortilégio das palavras.Agora é tudo igual, prazer e dor,
e a tua sementeira não dá flor,
ó triste solidão que as almas lavras.II
Tão só!
Cada vez são mais longos os caminhos
que me levam à gente.
(E os pensamentos fechados em gaiolas,
as ideias em jaulas.)Ah, não fujam de mim!
Não mordo, não arranho.
Direi:
— «Pois não! Ora essa! Tem razão».Entanto, na gaiola,
cantarão em silêncio
os sonhos, as ideias,
como pássaros mudos.III
Solidão.
A multidão em volta
e o pensamento à solta
como alado corcel.
O Bom Senso como Suporte da Humanidade
Se não tivesse havido em todos os tempos uma maioria de homens para fazer depender o seu orgulho, o seu dever, a sua virtude da disciplina do seu espírito, da sua «razão», dos amigos do «bom senso», para se sentirem feridos e humilhados pela menor fantasia, o menor excesso da imaginação, a humanidade já teria naufragado há muito tempo.
A loucura, o seu pior perigo, não deixou nunca, com efeito, de planar por cima dela, a loucura prestes a estalar… quer dizer a irrupção da lei do bom prazer em matéria de sentimento de sensações visuais ou auditivas, o direito de gozar com o jorro do espírito e de considerar como um prazer a irrisão humana. Não são a verdade, a certeza que estão nos antípodas do mundo dos insensatos; é a crença obrigatória e geral, é a exclusão do bom prazer no ajuizar. O maior trabalho dos homens foi até agora concordar sobre uma quantidade de coisas, e fazer uma lei desse acordo,… quer essas coisas fossem verdadeiras ou falsas. Foi a disciplina do espírito que preservou a humanidade,… mas os instintos que a combatem são ainda tão poderosos que em suma só se pode falar com pouca confiança no futuro da humanidade.
A Psicologia de Grupo
O indivíduo num grupo está sujeito, através da influência deste, ao que com frequência constitui uma profunda alteração na sua actividade mental. A sua submissão à emoção torna-se extraordinariamente intensificada, enquanto que a sua capacidade intelectual é acentuadamente reduzida, com ambos os processos evidentemente dirigindo-se para uma aproximação com os outros indivíduos do grupo; e esse resultado só pode ser alcançado pela remoção daquelas inibições aos instintos que são peculiares a cada indivíduo, e pela resignação deste àquelas expressões de inclinações que são especialmente suas. Aprendemos que essas consequências, amiúde importunas, são, até certo ponto pelo menos, evitadas por uma «organização» superior do grupo, mas isto não contradiz o fato fundamental da psicologia de grupo: as duas teses relativas à intensificação das emoções e à inibição do intelecto nos grupos primitivos.
Arte e Sensibilidade
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade.
2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível.
3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente,
No Fundo Somos Bons Mas Abusam de Nós
O comum das gentes (de Portugal) que eu não chamo povo porque o nome foi estragado, o seu fundo comum é bom. Mas é exactamente porque é bom, que abusam dele. Os próprios vícios vêm da sua ingenuidade, que é onde a bondade também mergulha. Só que precisa sempre de lhe dizerem onde aplicá-la. Nós somos por instinto, com intermitências de consciência, com uma generosidade e delicadeza incontroláveis até ao ridículo, astutos, comunicáveis até ao dislate, corajosos até à temeridade, orgulhosos até à petulância, humildes até à subserviência e ao complexo de inferioridade. As nossas virtudes têm assim o seu lado negativo, ou seja, o seu vício. É o que normalmente se explora para o pitoresco, o ruralismo edificante, o sorriso superior. Toda a nossa literatura popular é disso que vive.
Mas, no fim de contas, que é que significa cultivarmos a nossa singularidade no limiar de uma «civilização planetária»? Que significa o regionalismo em face da rádio e da TV? O rasoiro que nivela a província é o que igualiza as nações. A anulação do indivíduo de facto é o nosso imediato horizonte. Estruturalismo, linguística, freudismo, comunismo, tecnocracia são faces da mesma realidade. Como no Egipto, na Grécia,