Z
As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaroe depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de ventoe depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaçosa tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.
Passagens sobre Sombra
817 resultadosMãe, Eu Estou tão Cansado
Mãe, eu estou tão cansado e sinto nos ossos
o chamamento da água, o chamamento sibilino
que se confunde com o ranger das portas das casas
onde jamais voltarei: venha veloz o sono capaz
de me resgatar e que dentro dele se perfilem
as sombras e os gestos, exército dos meus medos
mais secretos, temores enrodilhados na roupa húmida
das camas. Mãe, a luz não se demora no meu quarto,
morre nas corolas das flores que trouxeste
para o riso não murchar, e eu fico doente só de olhar
os muros onde a hera é espiral de espanto, raiz
de uma enfermidade latente. Não voltarei
às actas do desespero, que são sombrias e magras
como os corpos dos amantes que definham sobre a
[areia
na fúria da maré, com uma gramática de murmúrios
escondida na solidão branca das dunas, mãe.
Atravessa Esta Paisagem o Meu Sonho
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…Não sei quem me sonho…
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim,
O Monge
-“O coração da infância”, eu lhe dizia,
“É manso.” E ele me disse:-“Essas estradas,
Quando, novo Eliseu, as percorria,
As crianças lançavam-me pedradas…”Falei-lhe então na glória e na alegria;
E ele-alvas barbas longas derramadas
No burel negro-o olhar somente erguia
Às cérulas regiões ilimitadas…Quando eu, porém, falei no amor, um riso
Súbito as faces do impassível monge
Iluminou… Era o vislumbre incerto,Era a luz de um crepúsculo indeciso
Entre os clarões de um sol que já vai longe
E as sombras de uma noite que vem perto!…
O Poeta
Este grave ofício de poeta
que exerço enquanto o tempo vai
dando mais terra à minha sombra,
não o aprendi com meu pai.Este meu alibi de cantar
para ausentar-me do que sou,
de minha mãe não o herdou
o filho rebelde e sem lar.Este ritmo que celebrei
no contraponto com a viola,
jamais o aprendi na escola
e a mim mesmo o ensinei.Sou o inventor do que sou
e, embora neto de avós,
tenho de próprio a minha voz,
bússola do Norte aonde vou.Entre ícaro e Prometeu
viajo e tenho o céu e o chão.
Comando as pedras de Anfião.
Faço a segunda voz de Orfeu.E nem me pergunteis se gosto
de ocupação menos errática:
meu verso é a minha vida prática,
salário e suor do meu rosto.Deixai-me só com minhas lavras,
e com Hamlet, meu porta-voz,
e esta verdade entre nós:
palavras palavras palavras.
O Poeta Pede a Seu Amor que lhe Escreva
Meu entranhado amor, morte que é vida,
tua palavra escrita em vão espero
e penso, com a flor que se emurchece
que se vivo sem mim quero perder-te.O ar é imortal. A pedra inerte
nem a sombra conhece nem a evita.
Coração interior não necessita
do mel gelado que a lua derrama.Porém eu te suportei. Rasguei-me as veias,
sobre a tua cintura, tigre e pomba,
em duelo de mordidas e açucenas.Enche minha loucura de palavras
ou deixa-me viver na minha calma
e para sempre escura noite d’alma.Tradução de Oscar Mendes
O Riso
Por substituição das emoções a poesia
recorda uma arte escura: vagares, caligrafia
da estação que ondula, oscilação de um cálamo
a meio do branco. A natureza encurva-se,
o coração assenta de modo a ver o mundo.
Eis um dia inteiro, o trabalhar dos olhos,
a falta de sentido de iluminar a luz.
A sombra é sem esforço, a respiração respira,
encontra-se uma face, transforma-se num som,
pequenos acidentes dilatam-se no céu.
Palavras que se apagam. Pensamentos fáceis.
Se isto é poesia eu rio-me no fim:
é como estar sentado, não ter arte nenhuma.
A Palavra
…Tudo o que você quiser, sim senhor, mas são as palavras que cantam, que sobem e descem… Prosterno-me diante delas… Amo–as, abraço-as, persigo-as, mordo-as, derreto-as… Amo tanto as palavras… As inesperadas… As que glutonamente se amontoam, se espreitam, até que de súbito caem… Vocábulos amados… Brilham como pedras de cores, saltam como irisados peixes, são espuma, fio, metal, orvalho… Persigo algumas palavras… São tão belas que quero pô-las a todas no meu poema… Agarro-as em voo, quando andam a adejar, e caço-as, limpo-as, descasco-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas… E então revolvo-as, agito-as, bebo-as, trago-as, trituro-as, alindo-as, liberto-as… Deixo-as como estalactites no meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes das ondas… Tudo está na palavra… Uma ideia inteira altera-se porque uma palavra mudou de lugar, ou porque outra se sentou como um reizinho dentro de uma frase que não a esperava, nas que lhe obedeceu… Elas têm sombra, transparência, peso, penas, pêlos, têm de tudo quanto se lhes foi agregando de tanto rolar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto serem raízes… São antiquíssimas e recentíssimas… Vivem no féretro escondido e na flor que desponta…
Himeneu
Na cama, onde a aurora deixa
Seu mais suave palor
Dorme ninando uma gueixa
A dona do meu amor.De pijama aberto, flui
Um seio redondo e escuro
Que como, lasso, possui
O segredo de ser puro.E de uma colcha, uma coxa
Morena, na sombra frouxa
Irrompe, em repouso mornoEnquanto eu, desperto, a vê-la
Mesmo sendo o homem dela
Me morro de dor-de-corno.
Purinha
O Espirito, a Nuvem, a Sombra, a Chymera,
Que (aonde ainda não sei) neste mundo me espera
Aquella que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Sr. Padre me dará p’ra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabello em cachos, cachos d’uvas,
E negro como a capa das viuvas…
(Á maneira o trará das virgens de Belem
Que a Nossa Senhora ficava tão bem!)
E será uma espada a sua mão,
E branca como a neve do Marão,
E seus dedos serão como punhaes,
Fuzos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serão como dois ninhos,
E seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua bocca uma romã,
Seus olhos duas Estrellinhas da Manhã!
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de suppor estar a ver, ao vel-a,
Cabrinhas montezas da Serra da Estrella…
E ha-de ser natural como as hervas dos montes
E as rolas das serras e as agoas das fontes…
Retrato Ardente
Entre os teus lábios
é que a loucura acode
desce à garganta,
invade a água.No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
Soberanos mas Escravos
Os homens que estão em altos lugares são escravos de três modos: escravos do soberano ou do Estado; escravos da reputação; e escravos dos negócios. Não gozam de liberdade, nem nas suas pessoas, nem nas suas acções, nem no seu tempo. Estranho desejo é o de ganhar o poder e perder a liberdade, ou de buscar o poder sobre os outros para perder o poder sobre si-próprio. A ascensão às altas funções é laboriosa; através de canseiras chega o homem a maiores canseiras; a ascensão é por vezes humilhante, e por meio de indignidades é que o homem chega às dignidades. Manter-se à altura é difícil, e a descida é uma queda vertical; ou pelo menos um eclipse, coisa melancólica.
Além disso, os homens não se podem retirar quando querem; nem querem quando seria razoável; não se compadecem com a aposentação por idade ou por doença, quando necessitam estar à sombra; tais como os velhos das vilas e das aldeias que querem estar sentados à porta de casa, expondo assim a velhice ao escárnio dos outros. Certamente, as altas personalidades necessitam de pedir aos outros homens opiniões que as façam felizes; porque a julgarem-se pelos próprios sentimentos jamais conseguirão a felicidade;
Influências Negativas do Passado
Que um acontecimento projecte a sua sombra no futuro é um processo regular que devemos aceitar como tal; mais grave é o acontecimento que lança uma sombra sobre o passado, mergulhando numa obscuridade súbita fragmentos da vida que se encontravam na luz e haviam por muito tempo conservado o seu brilho.
Na Capela
Na capela, perdida entre a folhagem,
O Cristo, lá no fundo, agonisava…
Oh! como intimamente se casava
Com minha dor a dor d’aquela imagem!Filhos ambos do amor, igual miragem
Nos roçou pela fronte, que escaldava…
Igual traição, que o afecto mascarava,
Nos deu suplício ás mãos da vilanagem…E agora, ali, em quanto da floresta
A sombra se infiltrava lenta e mesta,
Vencidos ambos, mártires do Fado,Fitavamo-nos mudos — dor igual! —
Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual
Mais palido, mais triste e mais cansado…
Se cada dia cai Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência.
A Velhice Pede Desculpas
Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.
Ah, Sim! Mas eu acredito na eternidade do espírito e na divindade das coisas. Creio que cada realidade perecível tem a sua projecção divina imperecível, como o corpo maciço tem uma sombra espalmada.
Paisagem
Dorme sob o silêncio o parque. Com descanso,
Aos haustos, aspirando o finíssimo extrato
Que evapora a verdura e que deleita o olfato,
Pelas alas sem fim da árvores avanço.Ao fundo do pomar, entre folhas, abstrato
Em cismas, tristemente, um alvíssimo ganso
Escorrega de manso, escorrega de manso
Pelo claro cristal do límpido regato.Nenhuma ave sequer, sobre a macia alfombra,
Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece
A campina, a rechã sob a noturna sombra.E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas
Selvas a dentro entrando, a noite desce, desce…
E espalham-se no céu camandulas de estrelas…
Carta a F.
És tu quem me conduz, és tu quem me alumia,
Para mim não desponta a aurora, não é dia,
Se não vejo os dois sóis azuis do teu olhar.
Deixei-te há pouco mais dum mês, – mês secular
E nessa noite imensa, ah, digo-te a verdade,
Iluminou-me sempre o luar da saudade.
E nesses montes nus por onde eu tenho andado,
Trágicos vagalhões dum mar petrificado,
Sempre adiante de mim dentre a aridez selvagem,
Vi como um lírio branco erguer-se a tua imagem.
Nunca te abandonei! Nunca me abandonaste!
És o sol e eu a sombra. És a flor e eu a haste.
Na hora em que parti meu coração deixei-o
Na urna virginal desse divino seio,
E o teu sinto-o eu aqui a bater de mansinho
Dentro em meu peito, como uma rola em seu ninho!
Enquanto os rios correrem para o mar, os montes fizerem sombra aos vales e as estrelas fulgirem no firmamento, deve durar a recordação do benefício recebido na mente do homem reconhecido.