A humanidade parece uma lebre encandeada pelo farol dum automóvel apocalíptico. De um lado, sombra; do outro lado, sombra; e no meio da estrada, inexorável, o mortal foco de luz. Nada que guie, esclareça, ilumine. Apenas um clarão paralisa-dor, que só dura até que as rodas esmaguem a razão deslumbrada.
Passagens sobre Sombra
817 resultadosÓ Minha Felicidade
Revejo os pombos de São Marcos:
A praça está silenciosa; ali se repousa a manhã.
Indolentemente envio os meus cantos para o seio da suave
frescura,
Como enxames de pombos para o azul
Depois torno a chamá-los
Para prender mais uma rima às suas penas.
— Ó minha felicidade! Ó minha felicidade!Calmo céu, céu azul-claro, céu de seda,
Planas, protector, sobre o edifício multicor
De que gosto, que digo eu?… Que receio, que invejo…
Como seria feliz bebendo-lhe a alma!
Alguma vez lha devolveria?
Não, não falemos disso, ó maravilha dos olhos!
— Ó minha felicidade! Ó minha felicidade!Severa torre, que impulso leonino
Te levantou ali, triunfante e sem custo!
Dominas a praça com o som profundo dos teus sinos…
Serias, em francês, o seu «accent aigu»!
Se, como tu, eu ficasse aqui,
Saberia a seda que me prende…
— Ó minha felicidade! Ó minha felicidade!Afasta-te, música. Deixa primeiro as sombras engrossar
E crescer até à noite escura e tépida.
É ainda muito cedo para ti, os teus arabescos de ouro
Ainda não cintilam no seu esplendor de rosa;
Não esconda os seus talentos. Para o uso eles foram feitos. O que é um relógio de sol na sombra?
Pai, Quero que Saibas
É o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti, ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és.
Que Glória tão Completa
Que glória tão completa não estar nunca
onde ela sobe da multidão. Que glória
é ordem alastrando da estrutura
pela massa de vir a ser a obra
até que ser em si tanto a institua
que ser em si seja uma luz à volta.
E, que glória, perder-nos pela funda
atenção à tarefa, quando a nossa
corporeidade apenumbra
estarmos destruindo alguma sombra.
Então o afinco da paciência a blusa
quase ilumina. E as horas,
na oficina do tempo, ampliam sua
ondeação de se ir perdendo a história.
Os Grandes Indiferentes
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas…
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Pequena Elegia de Setembro
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
Delirio
Não posso crêr na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vê-lo, a cada passo…
É ele? Não. Sou eu que desatino;
É a minha dôr soffrida, o meu cansaço.Delirio que me prendes num abraço,
Emendarás a obra do Destino?
Vê-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mãe? Verei seu rosto pequenino?Misterio! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! jamais! Quem sabe? Tenho mêdo!
Que vejo em mim? A treva? a luz futura?Ah, que a dôr infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra creatura!
A Cidade do Sonho
Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho…
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajecto é florido e risonho.Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o maná chove na nossa boca…Vistos dessa eminência, o mundo e as suas
[sombras,
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.Nela mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jamais nos é dado sentir…
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio,
Não me cante canções do dia, pois o sol é inimigo dos amantes. Cante as sombras e a escuridão, cante as lembranças da meia-noite.
Imagens Que Passais Pela Retina
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!…Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
– Porque ides sem mim, não me levais?Sem vós o que são os meus olhos abertos?
– O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos…Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
– Estranha sombra em movimentos vãos.
A Tua Vida é Agora
Toda a negatividade é provocada por uma acumulação de tempo psicológico e de recusa do presente. Mal-estar, ansiedade, tensão, stress, preocupações – todas as formas de medo – são causados por futuro em demasia e insuficiente presença. Sentimentos de culpa, arrependimento, ressentimento, injustiças, tristeza, amargura e todas as formas de falta de indulgência são provocados por passado em demasia e insuficiente presença.
A maioria das pessoas tem dificuldade em acreditar que seja possível um estado de consciência totalmente livre de negatividade. E no entanto é esse o estado de libertação para o qual todos os ensinamentos espirituais apontam. É a promessa de salvação, não num futuro ilusório, mas já aqui e agora.Poderás ter dificuldade em admitir que o tempo seja a causa do teu sofrimento ou dos teus problemas. Acreditas que são provocados por situações específicas na tua vida e, visto de um ponto de vista convencional, isso é verdade. Mas até teres lidado com a disfunção básica da mente “que-faz-os-problemas” – o seu apego ao passado e ao futuro e a negação do Agora – os problemas são na verdade permutáveis. Se todos os teus problemas ou as consideradas causas do sofrimento ou da infelicidade te fossem milagrosamente retirados hoje,
Se te Queres Matar
Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós.
À Solidão
Solidão coroada de rosas, quem pudera
aprisionar teu corpo de sol e de harmonia;
estar dentro de ti toda esta primavera
de sangue, e folhas secas e de melancolia!Que palpitasse, em sonho, teu coração sonoro
sobre o meu coração sequioso de ideais;
minha palavra fosse uma palavra de ouro
de teus inesgotáveis e puros mananciais!Ai! Quem, iluminando a sombra alucinada
que de espinhos coroa minha pálida tristeza,
pudesse ser teu amor, oh deusa coroada
de rosas, solidão, — tu que és mãe da beleza!Tradução de José Bento
Ela Canta, Pobre Ceifeira
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciênciaPesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Nenhum artista suporta o real. Qualquer artista, olhando para trás, tem a sincera opinião de que o verdadeiro valor de uma coisa é uma «sombra» que pode ser fixada nas cores, na forma, no som, no pensamento.
Que Amor Sigo?
Que amor sigo? Que busco? Que desejo?
Que enleo é este vão da fantasia?
Que tive? Que perdi? Quem me queria?
Quem me faz guerra? Contra quem pelejo?Foi por encantamento o meu desejo,
e por sombra passou minha alegria;
mostrou-me Amor, dormindo, o que não via,
e eu ceguei do que vi, pois já não vejo.Fez à sua medida o pensamento
aquela estranha e nova fermosura
e aquele parecer quase divino.Ou imaginação, sombra ou figura,
é certo e verdadeiro meu tormento:
Eu morro do que vi, do que imagino.
A vida é um caminho de sombras e luzes. O importante é que se saiba vitalizar as sombras e aproveitar a luz.
Paira No Ambíguo Destinar-Se
Paira no ambíguo destinar-se
Entre longínquos precipícios,
A ânsia de dar-se preste a dar-se
Na sombra vaga entre suplícios,Roda dolente do parar-se
Para, velados sacrifícios,
Não ter terraços sobre errar-se
Nem ilusões com interstícios,Tudo velado, e o ócio a ter-se
De leque em leque, a aragem fina
Com consciência de perder-se…Tamanha a flama e pequenina
Pensar na mágoa japonesa
Que ilude as sirtes da Certeza.