Sonetos sobre Bocas de Florbela Espanca

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Sonetos de bocas de Florbela Espanca. Leia este e outros sonetos de Florbela Espanca em Poetris.

Supremo Enleio

Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi trĂŞs vezes santa!

Erva do chĂŁo que a mĂŁo de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo Ă  tua porta…
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhĂŁ: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda…

Évora

Ao amigo vindo da luminosa Itália, a minha cidade, como eu soturno e triste…

Évora! Ruas ermas sob os céus
Cor de violetas roxas…Ruas frades
Pedindo em triste penitĂŞncia a Deus
Que nos perdoe as mĂ­seras vaidades!

Tenho corrido em vĂŁo tantas cidades!
E sĂł aqui recordo os beijos teus,
E sĂł aqui eu sinto que sĂŁo meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!

Évora!…O teu olhar…o teu perfil…
Tua boca sinuosa, um mĂŞs de Abril,
Que o coração no peito me alvoroça!

…Em cada viela o vulto dum fantasma…
E a minh’alma soturna escuta e pasma…
E sente-se passar menina e moça…

Pequenina

Ă€ Maria Helena FalcĂŁo Risques

És pequenina e ris…A boca breve
É um pequeno idĂ­lio cor-de-rosa…
Haste de lírio frágil e mimosa!
Cofre de beijos feito sonho e neve!

Doce quimera que a nossa alma deve
Ao CĂ©u que assim te fez tĂŁo graciosa!
Que desta vida amarga e tormentosa
Te fez nascer como um perfume leve!

O ver o teu olhar faz bem Ă  gente…
E cheira e sabe, a nossa boca, a flores…
Quando o teu nome diz, suavemente…

Pequenina que a MĂŁe de Deus sonhou,
Que ela afaste de ti aquelas dores
Que fizeram de mim isto que sou!…

Doce Certeza

Por essa vida fora hás-de adorar
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,
Em infinito anseio hás de beijar
Estrelas d´ouro fulgindo em muita boca!

Hás de guardar em cofre perfumado
Cabelos d´ouro e risos de mulher,
Muito beijo d´amor apaixonado;
E nĂŁo te lembrarás de mim sequer…

Hás de tecer uns sonhos delicados…
HĂŁo de por muitos olhos magoados,
Os teus olhos de luz andar imersos!…

Mas nunca encontrarás p´la vida fora,
Amor assim como este amor que chora
Neste beijo d´amor que sĂŁo meus versos!…

Prince Charmant

A Raul Proença

No lânguido esmaecer das amorosas
Tardes que morrem voluptuosamente
Procurei-O no meio de toda a gente.
Procurei-O em horas silenciosas!

Ă“ noites da minh’alma tenebrosas!
Boca sangrando beijos, flor que sente…
Olhos postos num sonho, humildemente…
MĂŁos cheias de violetas e de rosas…

E nunca O encontrei!…Prince Charmant…
Como audaz cavaleiro em velhas lendas
Virá, talvez, nas névoas da manhã!

Em toda a nossa vida anda a quimera
Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas…
— Nunca se encontra Aquele que se espera!…

Languidez

Tardes da minha terra, doce encanto,
Tardes duma pureza de açucenas,
Tardes de sonho, as tardes de novenas,
Tardes de Portugal, as tardes de Anto,

Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto!
Horas benditas, leves como penas,
Horas de fumo e cinza, horas serenas,
Minhas horas de dor em que eu sou santo!

Fecho as pálpebras roxas, quase pretas,
Que poisam sobre duas violetas,
Asas leves cansadas de voar …

E a minha boca tem uns beijos mudos …
E as minhas mãos, uns pálidos veludos,
Traçam gestos de sonho pelo ar …

Toledo

Diluído numa taça de oiro a arder
Toledo Ă© um rubi. E hoje Ă© sĂł nosso!
O sol a rir… Vivalma… NĂŁo esboço
Um gesto que me nĂŁo sinta esvaecer…

As tuas mĂŁos tacteiam-me a tremer…
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço
É como um jasmineiro em alvoroço
Ébrio de sol, de aroma, de prazer!

Cerro um pouco o olhar onde subsiste
Um romântico apelo vago e mudo,
– Um grande amor Ă© sempre grave e triste.

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo…
Uma torre ergue ao cĂ©u um grito agudo…
Tua boca desfolha-me num beijo…

Pior Velhice

Sou velha e triste. Nunca o alvorecer
Dum riso sĂŁo andou na minha boca!
Gritando que me acudam, em voz rouca,
Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!

A Vida, que ao nascer, enfeita e touca
De alvas rosas a fronte da mulher,
Na minha fronte mĂ­stica de louca
MartĂ­rios sĂł poisou a emurchecer!

E dizem que sou nova… A mocidade
Estará só, então, na nossa idade,
Ou está em nós e em nosso peito mora?!

Tenho a pior velhice, a que Ă© mais triste,
Aquela onde nem sequer existe
Lembrança de ter sido nova… outrora…

Sem Palavras

Brancas, suaves mĂŁos de irmĂŁ
Que sĂŁo mais doces que as das rainhas,
HĂŁo de pousar em tuas mĂŁos, as minhas
Numa carĂ­cia transcendente e vĂŁ.

E a tua boca a divinal manhĂŁ
Que diz as frases com que me acarinhas,
Há de pousar nas dolorosas linhas
Da minha boca purpurina e sĂŁ.

Meus olhos hĂŁo de olhar teus olhos tristes;
SĂł eles te dirĂŁo que tu existes
Dentro de mim num riso d’alvorada!

E nunca se amará ninguém melhor;
Tu calando de mim o teu amor,
Sem que eu nunca do meu te diga nada!…

Princesa Desalento

Minh’alma Ă© a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É revoltada, trágica, sombria,
Como galopes infernais de vento!

É frágil como o sonho dum momento,
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso duma boca fria!
Minh’alma Ă© a Princesa Desalento…

Altas horas da noite ela vagueia…
E ao luar suavĂ­ssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve a minh’alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz Ă  tua porta…

Trazes-me em Tuas MĂŁos de Vitorioso

Trazes-me em tuas mĂŁos de vitorioso
Todos os bens que a vida me negou,
E todo um roseiral, a abrir, glorioso
Que a solitária estrada perfumou.

Neste meio-dia lĂ­mpido, radioso,
Sinto o teu coração que Deus talhou
Num pedaço de bronze luminoso,
Como um berço onde a vida me pousou.

O silĂŞncio, ao redor, Ă© uma asa quieta…
E a tua boca que sorri e anseia,
Lembra um cálix de tulipa entreaberta…

Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo…
E o meu corpo ondulante de sereia
Dorme em teus braços másculos de vândalo…

Filtro

Meu Amor, nĂŁo Ă© nada: – Sons marinhos
Numa concha vazia, choro errante…
Ah, olhos que nĂŁo choram! Pobrezinhos…
Não há luz neste mundo que os levante!

Eu andarei por ti os maus caminhos
E as minhas mĂŁos, abertas a diamante,
HĂŁo de crucificar-se nos espinhos
Quando o meu peito for o teu mirante!

Para que corpos vis te nĂŁo desejem,
Hei de dar-te o meu corpo, e a boca minha
Pra que bocas impuras te nĂŁo beijem!

Como quem roça um lago que sonhou,
Minhas cansadas asas de andorinha
HĂŁo-de prender-te todo num sĂł vĂ´o…

Em VĂŁo

Passo triste na vida e triste sou,
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou,
Que nĂŁo diz onde vai nem donde vem.

Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém
a flor da minha boca desdenhou!
Solitário convento onde ninguém
A silenciosa cela procurou!

E eu quero bem a tudo, a toda gente…
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!

E tem passado, em vĂŁo, a mocidade
Sem que no meu caminho uma saudade
Abra em flores a sombra dos meus passos!

RenĂşncia

A minha mocidade há muito pus
No tranquilo convento da tristeza;
Lá passa dias, noites, sempre presa,
Olhos fechados, magras mĂŁos em cruz…

Lá fora, a Noite, Satanás, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza…
E como um beijo ardente a Natureza…
A minha cela Ă© como um rio de luz…

Fecha os teus olhos bem! NĂŁo vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!

Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a boca de cinzas e de terra
Ă“ minha mocidade toda em flor!

Sobre A Neve

Sobre mim, teu desdém pesado jaz
Como um manto de neve…Quem dissera
Porque tombou em plena Primavera
Toda essa neve que o Inverno traz!

Coroavas-me inda pouco de lilás
E de rosas silvestres…quando eu era
Aquela que o destino prometera
Aos teus rĂştilos sonhos de rapaz!

Dos beijos que me deste nĂŁo te importas,
Asas paradas de andorinhas mortas…
Folhas de Outono e correria louca…

Mas inda um dia, em mim, Ă©brio de cor,
Há-de nascer um roseiral em flor
Ao sol de Primavera doutra boca!

Crucificada

Amiga… noiva… irmĂŁ… o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecĂŞ-las,
Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!
– Hei de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor sĂł para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei de poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.

E depois… Ah! depois de dores tamanhas,
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!

De Joelhos

“Bendita seja a Mãe que te gerou.”
Bendito o leite que te fez crescer
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer …
Bendita seja a Lua, que inundou
De luz, a Terra, sĂł para te ver …

Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixĂŁo fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!!

Os Versos que Te Fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

TĂŞm dolĂŞncias de veludos caros,
SĂŁo como sedas brancas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu nĂŁo tos digo ainda…
Que a boca da mulher Ă© sempre linda
Se dentro guarda um verso que nĂŁo diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E, nesse beijo, Amor, que eu te nĂŁo dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Lágrimas Ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida…

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago…
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim…

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Escrava

Ă“ meu Deus, Ăł meu dono, Ăł meu senhor,
Eu te saĂşdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mĂŁos tontas de amor!

Que te seja propĂ­cio o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a Terra e o Mar,
Plos séculos dos séculos sem par,
Ă“ meu Deus, Ăł meu dono, Ăł meu senhor!

Eu, doce e humilde escrava, te saĂşdo,
E, de mĂŁos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de oiro e de veludo.

Ah! esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a eternidade!…