Sonetos sobre Cegos

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Sonetos de cegos escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

A Grande Sede

Se tens sede de Paz e d’Esperança,
Se estás cego de Dor e de Pecado,
Valha-te o Amor, ó grande abandonado,
Sacia a sede com amor, descansa.

Ah! volta-te a esta zona fresca e mansa
Do Amor e ficarás desafogado,
Hás de ver tudo claro, iluminado
Da luz que uma alma que tem fé alcança.

O coração que é puro e que é contrito,
Se sabe ter doçura e ter dolência
Revive nas estrelas do Infinito.

Revive, sim, fica imortal, na essência
Dos Anjos paira, não desprende um grito
E fica, como os Anjos, na Existência.

Por Sua Ninfa, Céfalo Deixava

Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia,
posto que dá princípio ao claro dia,
posto que as roxas flores imitava.

Ele, que a bela Prócris tanto amava
que só por ela tudo enjeitaria,
deseja de atentar se lhe acharia
tão firme fé como nele achava.

Mudado o trajo, tece o duro engano:
outro se finge, preço põe diante,
quebra se a fé mudável, e consente.

Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
para que sempre seja descontente!

Coitado! que em um tempo choro e rio

Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du~a cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;
Queira desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!

O Corpo

Ante as portas desgarradas, paradoxal
é a morte: impossível, feito realidade,
acaso predito. Corpo, deus imortal,
para sempre cego e mudo, abandona-te ao livre

ar. Que te transformes e assemelhes à noite.
Tempestade final das sombras, foste, corpo,
respiração com voz, área que habitaste,
vária e discordante, a cada movimento.

E agora que a luz desfalece e não a tocas,
nem por ela és tocado, a palavra deixou
de ser a tua pátria e não mais esfolias

o espaço. Agora, que já nada mudará,
nenhuma eternidade te rescende. A morte
petrifica o frágil espaço que foi teu.

Senhor João Lopes, O Meu Baixo Estado

Senhor João Lopes, o meu baixo estado
ontem vi posto em grau tão excelente,
que vós, que sois enveja a toda a gente,
só por mim vos quiséreis ver trocado.

Vi o gesto suave e delicado
que já vos fez, contente e descontente,
lançar ao vento a voz tão docemente
que fez o ar sereno e sossegado.

Vi lhe em poucas palavras dizer, quanto
ninguém diria em muitas; eu só, cego,
magoado fiquei na doce fala.

Mas mal haja a Fortuna, e o Moço cego!
Um, porque os corações obriga a tanto;
outra, porque os estados desiguala.

Doces Águas E Claras Do Mondego

Doces águas e claras do Mondego,
doce repouso de minha lembrança,
onde a comprida e pérfida esperança
longo tempo após si me trouxe cego;

de vós me aparto; mas, porém, não nego
que inda a memória longa, que me alcança,
me não deixa de vós fazer mudança,
mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem pudera Fortuna este instrumento
d’alma levar por terra nova e estranha,
oferecido ao mar remoto e vento;

mas alma, que de cá vos acompanha,
nas asas do ligeiro pensamento,
para vós, águas, voa, e em vós se banha.

XIX

Corino, vai buscar aquela ovelha,
Que grita lá no campo, e dormiu fora;
Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:
Como vem tão risonha, e tão vermelha!

Já perdi noutro tempo uma parelha
Por teu respeito; queira Deus, que agora
Não se me vá também estoutra embora;
Pois não queres ouvir, quem te aconselha.

Que sono será este tão pesado!
Nada responde, nada diz Corino:
Ora em que mãos está meu pobre gado!

Mas ai de mim! que cego desatino.
Como te hei de acusar de descuidado,
Se toda a culpa tua é meu destino!

Ah, que Olhos Pôs Amor na Minha Cara

Ah, que olhos pôs Amor na minha cara
mas sem correspondência a fiel vista?
Ou se a têm, meu juízo onde é que pára
que em tão falsas censuras inda insista?

Se é belo o que meus olhos falso adoram
que quer dizer o mundo em negação?
E se não é, amor mostra se goram
seus olhos, menos fiéis que os homens: não,

como pode? Como pode, se pranto
e espera o afectam, ser fiel no olhar?
De erros da minha vista não me espanto,

o sol não vê até o céu limpar.
Manhoso amor, com choros pões-me cego,
mas vendo bem, a tuas faltas chego.

Abrigo Celeste

Estrela triste a refletir na lama,
Raio de luz a cintilar na poeira,
Tens a graça sutil e feiticeira,
A doçura das curvas e da chama.

Do teu olhar um fluido se derrama
De tão suave, cândida maneira
Que és a sagrada pomba alvissareira
Que para o Amor toda a minh’alma chama.

Meu ser anseia por teu doce apoio,
Nos outros seres só encontra joio
Mas só no teu todo o divino trigo.

Sou como um cego sem bordão de arrimo
Que do teu ser, tateando, me aproximo
Como de um céu de carinhoso abrigo.

XXVII

Ontem – néscio que fui! – maliciosa
Disse uma estrela, a rir, na imensa altura:
“Amigo! uma de nós, a mais formosa
“De todas nós, a mais formosa e pura,

“Faz anos amanhã… Vamos! procura
“A rima de ouro mais brilhante, a rosa
“De cor mais viva e de maior frescura!”
E eu murmurei comigo: “Mentirosa!”

E segui. Pois tão cego fui por elas,
Que, enfim, curado pelos seus enganos,
já não creio em nenhuma das estrelas…

E – mal de mim! – eis-me, a teus pés, em pranto…
Olha: se nada fiz para os teus anos,
Culpa as tuas irmãs que enganam tanto!

Soneto 549 Tematizado

De duas coisas todo bom poeta
dever tem de falar para ser posto
no círculo dos grandes e no gosto
do povo ser mais um que se projeta:

de estrelas e de rosas. Nada veta
que seja seu soneto só composto
de pétalas que espelhem-lhe o desgosto
do amor que feneceu e nos afeta.

Também ninguém proíbe que as estrelas
figurem esperanças ou paixões
e todos os sonetos tentem lê-las.

Não morre um de Bilac ou de Camões,
mas falta o que um poeta mede pelas
(dum cego) fantasias e visões…

Vós Outros, Que Buscais Repouso Certo

Vós outros, que buscais repouso certo
na vida, com diversos exercícios;
a quem, vendo do mundo os benefícios,
o regimento seu está encoberto;

dedicai, se quereis, ao desconcerto
novas hontas e cegos sacrifícios;
que, por castigo igual de antigos vícios,
quer Deus que andem as cousas por acerto.

Não caiu neste modo de castigo
quem pôs culpa à Fortuna, quem sòmente
crê que acontecimentos há no mundo.

A grande experiência é grão perigo;
mas o que a Deus é justo e evidente
parece injusto aos homens e profundo.

Meu Ser Evaporei na Luta Insana

Meu ser evaporei na luta insana
Do tropel de paixões que me arrastava:
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quasi imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos

Deus, ó Deus!… quando a morte a luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Estio

Saí da Primavera, entrei no Estio
Das fogosas funções da mocidade.
Nesta estação louçã da minha idade,
Entreguei-me às paixões, com desvario.

Qual cavalo rinchão, solto com cio,
Saltei desenfreado em liberdade:
Fui escravo da cega divindade
Que tem do cego mundo o senhorio.

Largos anos servi tão falso Nume;
Consagrei-lhe, servil, os sons da lira
Acesa em labaredas do seu lume.

Em câmbio de o cantar, deu-me a Mentira,
O engano, a ingratidão, o vil ciúme:
Que paga de o servir o homem tira!

Fermosos Olhos

Fermosos olhos, quem ver-vos pretende
A vista dera em preço se vos vira,
Que ainda que perder-vos a sentira,
A perda de não ver-vos não se entende.

A graça dessa luz não na comprende
Quem qual ao sol a vós seus olhos vira,
Que o cego Amor que cego deles tira,
Com vossos próprios raios a defende.

Não pode a vista humana conhecer
Qual seja a vossa cor, que a luz forçosa
Não consente mostrar tanta beleza.

Se eu, que em vendo-a ceguei, pude ainda ver,
Uma cor vi, porém cor tão fermosa
Que me não pareceu da natureza.

Sobre Estas Duras, Cavernosas Fragas

Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n’alma fervendo
Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,
De meus erros e sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objectos de horror co’a ideia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.

Repouso

A cabeça pendida docemente
Em sonhos, sonha o sonhador inquieto,
Repousa e nesse repousar discreto
É sempre o sonho o seu bordão clemente.

Cego desta Prisão impenitente
Da Terra e cego do profundo Afeto,
O sonho é sempre o seu bordão secreto
O seu guia divino e refulgente.

Nem no repouso encontra a paz que espera,
Para lhe adormecer toda a quimera,
Os círculos fatais do seu Inferno.

Entre a calma aparente, a estranha calma,
O seu repouso é sempre a febre d’alma,
O seu repouso é sonho, e sonho eterno.

À Cruz

Se em golfo de sereias proceloso,
Empenho repetido do cuidado,
O sábio grego, ao duro mastro atado,
As sereias escapa cauteloso;

Eu, no mar deste mundo tormentoso,
De sirtes e sereias povoado,
À vossa cruz, Senhor, sempre abraçado,
Os perigos escape venturoso.

Oh! Livrai-me, meu Deus, de tanto astuto
Labirinto, de tanto cego encanto,
Para que colha desta planta o fruto;

Que é justo, doce Amor, em risco tanto,
Se salva a Ulisses um madeiro bruto,
Que a mim me salve este madeiro santo.

Vem, oh Noite Sombria

Vem, oh noite sombria, e revolvendo
O longo açoite, que à carreira acende
As fuscas Éguas, sobre a terra estende
De sombras carregado o manto horrendo:

Vem: e as brancas papoilas espremendo,
Em letárgico sono os mortais prende;
Que a minha bela Aglaia hoje me atende,
A meu amor mil glórias prometendo.

Se às minhas vozes dás benigno ouvido,
Encobrindo com teu escuro manto
Os suaves delírios de amor cego;

Imolar-te prometo agradecido
Um negro galo, que em contínuo canto
Se atreve a perturbar o teu sossego.

À Fragilidade da Vida Humana

Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse estio em vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave em doce agrado.

Se a nau, o sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego imortal, e considera
Que és rosa, primavera, sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.