Converteu-se-me em Noite o Claro Dia
Apolo e as nove Musas, descantando
Com a dourada lira, me influĂam
Na suave harmonia que faziam,
Quando tomei a pena, começando:Ditoso seja o dia e hora, quando
TĂŁo delicados olhos me feriam!
Ditosos os sentidos que sentiam
Estar-se em seu desejo traspassando!Assim cantava, quando Amor virou
A roda à esperança, que corria
TĂŁo ligeira, que quase era invisĂvel.Converteu-se-me em noite o claro dia;
E, se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possĂvel.
Sonetos Exclamativos
1366 resultadosMais Há-de Perder quem Mais Alcança
De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
NĂŁo sei para que Ă© ter contentamento,
Se mais há-de perder quem mais alcança!Mas dou-vos esta firme segurança:
Que, posto que me mate o meu tormento,
Pelas águas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
Que com cousa outra alguma se contentem:
Antes os esqueçais, que vos esqueçam.Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereçam
A glĂłria que em sofrer tal pena sentem.
Quem Rasgou os Meus Lençóis de Linho
Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exĂguo os altos girassĂłis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, d tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
– Da minha vinha o vinho acidulado e fresco…Ă“ minha pobre mĂŁe!… NĂŁo te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruĂna a casa nova…
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.NĂŁo venhas mais ao lar. NĂŁo vagabundes mais,
Alma da minha mĂŁe… NĂŁo andes mais Ă neve,
De noite a mendigar Ă s portas dos casais.
A Ăšltima Cigarra
Todas cantaram para mim. A ouvi-las,
Purifiquei meu sonho adolescente,
Quando a vida corria doidamente
Como um regato de águas intranqüilas.Diante da luz do sol que eu tinha em frente,
Escancarei os braços e as pupilas.
Cigarras que eu amei! Para possui-las,
Sofri na vida como pouca gente.E veio o outono… Por que veio o outono ?
Prata nos meus cabelos… Abandono…
Deserta a estrada… Quanta folha morta!Mas, no esplendor do derradeiro poente,
Uma nova cigarra, diferente;
Como um raio de sol, bateu-me Ă porta.
SĂł!
Muito embora as estrelas do Infinito
Lá de cima me acenem carinhosas
E desça das esferas luminosas
A doce graça de um clarão bendito;Embora o mar, como um revel proscrito,
Chame por mim nas vagas ondulosas
E o vento venha em cĂłleras medrosas
O meu destino proclamar num grito,Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me sinto fundamente estranho
E o amor e tudo para mim avaro…Ah! como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!
Esquecimento
Mais tarde em tua vida, um dia, hás de tentar
revolver da memĂłria este tempo de agora…
– Mas o mundo Ă© uma praia, onde as ondas do mar
apagam quase sempre as lembranças de outrora…Hás de em vĂŁo, ao teu Deus, esse Dom suplicar
sem conseguires nunca o que a tua alma implora…
– É que a vida Ă© uma fonte, a correr sem parar
e a seguir, sem voltar, por este mundo afora…NĂŁo se vive outra vez… O que chamas presente,
há de ser, amanhã, um romance apagado
que em vĂŁo procurarás reler, inutilmente…O tempo tudo vence… Tudo ele consome…
E se um dia, talvez, lembrares teu passado
nĂŁo mais hás de sequer reconhecer meu nome!…
NĂŁo Busco N’esta Vida GlĂłria ou Fama
NĂŁo busco n’esta vida glĂłria ou fama:
Das turbas que me importa o vĂŁo ruĂdo?
Hoje, deus… e amanhĂŁ, já esquecido
Como esquece o clarão de extincta chama!Foco incerto, que a luz já mal derrama,
Tal Ă© essa ventura: eccho perdido,
Quanto mais se chamou, mais escondido
Ficou inerte e mudo á voz que o chama.D’essa coroa Ă© cada flor um engano,
É miragem em nuvem ilusoria,
É mote vão de fabuloso arcano.Mas coroa-me tu: na fronte inglória
Cinge-me tu o louro soberano…
Verás, verás então se amo essa glória!
4A Sombra – FabĂola
Como teu riso dĂłi… como na treva
Os lĂŞmures respondem no infinito:
Tens o aspecto do pássaro maldito,
Que em sânie de cadáveres se ceva!Filha da noite! A ventania leva
Um soluço de amor pungente, aflito…
FabĂola!… É teu nome!… Escuta Ă© um grito,
Que lacerante para os cĂ©us s’eleva!…E tu folgas, Bacante dos amores,
E a orgia que a mantilha te arregaça,
Enche a noite de horror, de mais horrores…É sangue, que referve-te na taça!
É sangue, que borrifa-te estas flores!
E este sangue Ă© meu sangue… Ă© meu… Desgraça!
Os Versos que Te Fiz
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.TĂŞm dolĂŞncias de veludos caros,
SĂŁo como sedas brancas a arder…
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!Mas, meu Amor, eu nĂŁo tos digo ainda…
Que a boca da mulher Ă© sempre linda
Se dentro guarda um verso que nĂŁo diz!Amo-te tanto! E nunca te beijei…
E, nesse beijo, Amor, que eu te nĂŁo dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!
XIX
Corino, vai buscar aquela ovelha,
Que grita lá no campo, e dormiu fora;
Anda; acorda, pastor; que sai a Aurora:
Como vem tão risonha, e tão vermelha!Já perdi noutro tempo uma parelha
Por teu respeito; queira Deus, que agora
Não se me vá também estoutra embora;
Pois não queres ouvir, quem te aconselha.Que sono será este tão pesado!
Nada responde, nada diz Corino:
Ora em que mãos está meu pobre gado!Mas ai de mim! que cego desatino.
Como te hei de acusar de descuidado,
Se toda a culpa tua Ă© meu destino!
XXX
NĂŁo se passa, meu bem, na noite, e dia
Uma hora sĂł, que a mĂsera lembrança
Te não tenha presente na mudança,
Que fez, para meu mal, minha alegria.Mil imagens debuxa a fantasia,
Com que mais me atormenta e mais me cansa:
Pois se tão longe estou de uma esperança,
Que alĂvio pode dar me esta porfia!Tirano foi comigo o fado ingrato;
Que crendo, em te roubar, pouca vitĂłria,
Me deixou para sempre o teu retrato:Eu me alegrara da passada glĂłria,
Se quando me faltou teu doce trato,
Me faltara também dele a memória.
Ave! Maria
Ave! Maria das Estrelas, Ave!
Cheia de graça do luar, Maria!
Harmonia de cântico suave,
Das harpas celestiais branda harmonia…Nuvem d’incensos atravĂ©s da nave
Quando o templo de pompas irradia
E em prantos o ĂłrgĂŁo vai plangendo grave
A profunda e gemente litania…Seja bendito o fruto do teu ventre,
Jesus, mais belo dentre os astros e entre
As mulheres judaicas mais amado…Ă“ Luz! Eucaristia da beleza,
Chama sagrada no Evangelho acesa,
Maravilha do Amor e do Pecado!
Luva Abandonada
Uma só vez calçar-vos me foi dado,
Dedos claros! A escura sorte minha,
O meu destino, como um vento irado,
Levou-vos longe e me deixou sozinha!Sobre este cofre, desta cama ao lado,
Murcho, como uma flor, triste e mesquinha,
Bebendo ávida o cheiro delicado
Que aquela mĂŁo de dedos claros tinha.Cálix que a alma de um lĂrio teve um dia
Em si guardada, antes que ao chĂŁo pendesse,
Breve me hei de esfazer em poeira, em nada…Oh! em que chaga viva tocaria
Quem nesta vida compreender pudesse
A saudade da luva abandonada!
Lágrimas Ocultas
Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida…E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!E fico, pensativa, olhando o vago…
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim…E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!
Incontentado
PaixĂŁo sem grita, amor sem agonia,
Que nĂŁo oprime nem magoa o peito,
Que nada mais do que possui queria,
E com tĂŁo pouco vive satisfeito.Amor, que os exageros repudia,
Misturado de estima e de respeito,
E, tirando das mágoas alegria,
Fica farto, ficando sem proveito.Viva sempre a paixĂŁo que me consome,
Sem uma queixa, sem um sĂł lamento!
Arda sempre este amor que desanimas!Eu eu tenha sempre, ao murmurar teu nome,
O coração, malgrado o sofrimento,
Como um rosal desabrochado em rimas.
Comparação
“Eu sou fraca e pequena…”
Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tĂŁo serena,Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Que em teus olhos fulgia.Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela… e
E no entretanto – Ă© um mundo!
Apostrofe À Carne
Quando eu pego nas carnes do meu rosto.
Pressinto o fim da orgânica batalha:
– Olhos que o hĂşmus necrĂłfago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto…E o Homem – negro e heterĂłclito composto,
Onde a alva flama psĂquica trabalha,
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!Carne, feixe de mĂ´nadas bastardas,
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos,DĂłi-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda,
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!
D. Quixote
Assim Ă aldeia volta o da “triste figura”
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcaboiço dobrado – um grande desalento,
No entristecido olhar – uns laivos de loucura…Sonhos, a glĂłria, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da FĂ©, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da IlusĂŁo do espĂrito doente;Porque há cousa pior: Ă© o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões – e nĂŁo se ficar louco!
Lacrimae Rerum
Noite, irmĂŁ da RazĂŁo e irmĂŁ da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!Aonde são teus sóis, como corte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vĂŁo busca a certeza que o conforte?Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas…É tudo, em torno a mim, dĂşvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas…
Idealismo
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade Ă© uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaĂra,
De Messalina e de Sardanapalo?!Pois Ă© mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
– Alavanca desviada do seu fulcro –E haja sĂł amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!