Asa De Corvo
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa…Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza…É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte – a costureira funerária –
Cose para o homem a última camisa!
Sonetos sobre Morte
261 resultadosMãos
V
Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.
Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!
Os Enganos do Viver
REPETE A FRAGILIDADE DA VIDA E APONTA OS SEUS ENGANOS E OS SEUS INIMIGOS
Que outra verdade hav’rá senão pobreza
nesta vida tão frágil, leviana?
Os dois embustes são da vida humana,
no berço começando, honra e riqueza.O tempo, que não volta nem tropeça,
em horas fugitivas só a engana;
em errado ansiar, sempre tirana,
Fortuna faz cansar sua fraqueza.Vive morte calada e divertida
a própria vida; a saúde é guerra
por seu próprio alimento combatida.Oh, quanto, distraído, o homem erra:
que em terra teme ver tombar a vida
e não vê que, ao viver, caiu por terra!Tradução de José Bento
O Céu, A Terra, O Vento Sossegado
O céu, a terra, o vento sossegado…
As ondas, que se estendem pela areia…
Os peixes, que no mar o sono enfreia…
O nocturno silêncio repousado…O pescador Aónio, que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
torna-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Soneto VI
Qual naufragante mísero que cai
Da rota barca no soberbo pego,
E, lidando c’os braços sem sossego,
A cada onda receia que desmaie,Tal, sem ter já lugar onde se espraie
Neste mar de meu mal, cansado e cego
Ando, aqui desfaleço, ali me anego,
E a cada encontro seu [a] alma me sai.Em meio de mil barcas clamo, e brado:
“Me lancem por piedade um cabo forte!”,
Mas a ninguém magoa meu cuidado.Ah, não queirais que vida tal se corte
Que se vida me dais, ganhais dobrado,
Livrando muitas vidas de ua morte.
A Meu Pai Depois De Morto
Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Micro-organismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
Com a invariabilidade da clepsidra!…Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!…Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
Tempestade!
O meu beliche é tal qual o bercinho,
Onde dormi horas que não vêm mais.
Dos seus embalos já estou cheiinho:
Minha velha ama são os vendavaes!Uivam os ventos! Fumo, bebo vinho.
O vapor treme! Abraço a Biblia, aos ais…
Covarde! Que dirá teu Avôzinho,
Que foi moreante? Que dirão teus Paes?Coragem! Considera o que has soffrido,
O que soffres e o que ainda soffrerás,
E ve, depois, se accaso é permittidoTal medo á Morte, tanto apego ao mundo:
Ah! fôra bem melhor, vás onde vás,
Antonio, que o paquete fosse ao fundo!
Que Vençais no Oriente tantos Reis
Que vençais no Oriente tantos Reis,
Que de novo nos deis da Índia o Estado,
Que escureçais a fama que hão ganhado
Aqueles que a ganharam de infiéis;Que vencidas tenhais da morte as leis,
E que vencêsseis tudo, enfim, armado,
Mais é vencer na Pátria, desarmado,
Os monstros e as Quimeras que venceis.Sobre vencerdes, pois, tanto inimigo,
E por armas fazer que sem segundo
No mundo o vosso nome ouvido seja;O que vos dá mais fama inda no mundo,
É vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
Tantas ingratidões, tão grande inveja.
Volúpia
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!A sombra entre a mentira e a verdade…
A nuvem que arrastou o vento norte…
– Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!Trago dálias vermelhas no regaço…
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças…
Se é Doce
Se é doce no recente, ameno Estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias e os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando e seus ardores
Dentre os aromas de pomar sombrio;Se é doce mares, céus ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados,Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados.
Morte, morte de amor, melhor que a vida.
Morte, Juízo, Inferno e Paraíso
Em que estado, meu bem, por ti me vejo,
Em que estado infeliz, penoso e duro!
Delido o coração de um fogo impuro,
Meus pesados grilhões adoro e beijo.Quando te logro mais, mais te desejo;
Quando te encontro mais, mais te procuro;
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.Assim passo, assim vivo, assim meus fados
Me desarreigam d’alma a paz e o riso,
Sendo só meu sustento os meus cuidados;E, de todo apagada a luz do siso,
Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados
Morte, Juízo, Inferno e Paraíso.
Trágica Recordação
Meu Deus! meu Deus! quando me lembro agora
De o ver brincar, e avisto novamente
Seu pequenino Vulto transcendente,
Mas tão perfeito e vivo como outrora!Julgo que ele ainda vive; e que, lá fóra,
Fala em voz alta e brinca alegremente,
E volve os olhos verdes para a gente,
Dois berços de embalar a luz da aurora!Julgo que ele ainda vive, mas já perto
Da Morte: sombra escura, abysmo aberto…
Pesadêlo de treva e nevoeiro!Ó visão da Creança ao pé da Morte!
E a da Mãe, tendo ao lado a negra sorte
A calcular-lhe o golpe traiçoeiro!
Soneto VII – À Mesma Senhora
Alcíone, perdido o esposo amado,
Ao céu o esposo sem cessar pedia;
Porém as ternas preces surdo ouvia
O céu, de seus amores descuidado.Em vão o pranto seu d’alma arrancado
Tenta a pedra minar da campa fria;
A morte de seu pranto escarnecia,
De seu cruel penar se ria o fado.Mas ah! — não fora assim, se a voz tivera
Tão bela, tão gentil, tão doce e clara,
Daquela que hoje neste palco impera.Se assim cantasse, o túmulo abalara
Do bem querido; e, branda a morte fera,
Vivo o extinto esposo lhe entregara.
Por Cima Destas Águas, Forte E Firme
Por cima destas águas, forte e firme,
irei por onde as sortes ordenaram,
pois, por cima de quantas me choraram
aqueles claros olhos, pude vir me.Já chegado era o fim de despedir me,
já mil impedimentos se acabaram,
quando rios de amor se atravessaram
a me impedir o passo de partir me.Passei os eu com ânimo obstinado,
com que a morte forçada e gloriosa
faz o vencido já desesperado.Em que figura, ou gesto desusado,
pode já fazer medo a morte irosa,
a quem tem a seus pés rendido e atado?
O que é Viver?
Viver é só sentir como a Morte caminha
E como a Vida a quer e como a vida a chama…
Viver, minha princesa pobrezinha,
É esta morte triste de quem ama…Viver é ter ainda uma quimera erguida
Ou um sonho febril a soluçar de rastos;
É beijar toda a dor humana, toda a Vida,
Como eu beijo a chorar os teus cabelos castos…Viver é esperar a Morte docemente,
Beijando a luz, beijando os cardos, e beijando
Alguém, corpo ou fantasma, que nos venha amando…É sentir a nossa alma presa tristemente
Ao mistério da Vida que nos leva
Perdidos pelo sol, perdidos pela treva…
Ó Páginas Da Vida Que Eu Amava
Ó páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!…
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!E que doido que eu fui! como eu pensava
Em mão, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!Embora – é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda…
Pressinto a morte na fatal doença!…A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença…
Perdoa, minha mão – eu te amo ainda!
Se Ausente da Alma Estou, que me Dá Vida?
Se apartada do corpo a doce vida,
Domina em seu lugar a dura morte,
De que nasce tardar-me tanto a morte
Se ausente da alma estou, que me dá vida?Não quero sem Silvano já ter vida,
Pois tudo sem Silvano é viva morte,
Já que se foi Silvano, venha a morte,
Perca-se por Silvano a minha vida.Ah! suspirado ausente, se esta morte
Não te obriga querer vir dar-me vida,
Como não ma vem dar a mesma morte?Mas se na alma consiste a própria vida,
Bem sei que se me tarda tanto a morte,
Que é porque sinta a morte de tal vida.
Gonçalves Crespo
Esta musa da pátria, esta saudosa
Niobe dolorida,
Esquece acaso a vida,
Mas não esquece a morte gloriosa.E pálida, e chorosa,
Ao Tejo voa, onde no chão caída
Jaz aquela evadida
Lira da nossa América viçosa.Com ela torna, e, dividindo os ares,
Trépido, mole, doce movimento
Sente nas frouxas cordas singulares.Não é a asa do vento,
Mas a sombra do filho, no momento
De entrar perpetuamente os pátrios lares.
Conchita
Adeus aos filtros da mulher bonita;
A esse rosto espanhol, pulcro e moreno;
Ao pé que no bolero… ao pé pequeno;
Pé que, alígero e célere, saltita…Lira do amor, que o amor não mais excita,
A um silêncio de morte eu te condeno;
Despede-te; e um adeus, no último treno,
Soluça às graças da gentil Conchita:A esses, que em ondas se levantam, seios
Do mais cheiroso jambo; a esses quebrados
Olhos meridionais de ardência cheios;A esses lábios, enfim, de nácar vivo,
Virgens dos lábios de outrem, mas corados
Pelos beijos de um sol quente e lascivo.
Alucinação À Beira-Mar
Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!… O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros me assombrava!Mas a alga usufructuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!