Marília De Dirceu
Soneto 9
Mudou-se enfim Lidora, essa Lidora
Por quem mil vezes fé me foi jurada.
Que vos detém, ó céus, que castigada
Ainda não deixais tão vil traidora?Não haja piedade; sinta agora
A dita sem remédio em mal trocada:
Pois, se assim não sucede, fica ousada
Para ser outra vez enganadora.Vingai, ó justos céus…, mas ah! que digo?
Que maltrateis Lidora? – O sentimento
Privou-me do discurso; eu me desdigo.Não, não vibreis o raio violento;
Pois se que a compaixão do seu castigo
Há de aumentar depois o meu tormento.
Sonetos sobre Vez
216 resultadosSan Gabriel I
Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram,
Que tão altas nos topes tremularam,
– Gaivotas que a voar desfaleceram.Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram)
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar,
Vem-nos guiar sobre a planície azul.Vem-nos levar à conquista final
Da luz, do Bem, doce clarão irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!
Ela Ia, Tranqüila Pastorinha
Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Segui-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha…“Em longes terras hás de ser rainha”
Um dia lhe disseram, mas em vão…
Seu vulto perde-se na escuridão…
Só sua sombra ante meus pés caminha…Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora _Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir…
E por Vezes
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezesencontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezesao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramosE por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
Retrato de um Bêbado
Perdi-me vendo a pipa, o torno aberto;
Minha alma está metida em vinho tinto;
Tão bêbado estou que já não sinto
Ser bêbado coberto ou encoberto.Tenho a cama longe, o sono perto,
No chão estou e erguer-me não consinto,
A barriga de inchada aperta o cinto,
Falando estou dormindo qual desperto.Venha mais vinho e dêem-mo vezes cento,
Que alegra o coração, sustenta a vida,
E pouco vai que engrosse o entendimento.Vingar-me quero, que é grande a bebida;
Tudo o que não é beber é lixo e vento,
Que para tão grande gosto é curta a vida.
Poeira
Poeira leve, a vibrar as moléculas: poeira
Que um pobre sonhador, à luz da Arte, risonho,
Busca fazer faiscar: pó, que se ergue à carreira
Do Mazepa do Amor pela estepe do Sonho.Para ver-te subir, voar da crosta rasteira
Da terra, a trabalhar, todas as forças ponho:
E a seguir teu destino, enlevada, a alma inteira
O teu ciclo fará, seja suave ou tristonho.Não irás, com certeza, alto ou distante. O insano
Pó não és que, a turvar o céu claro da Itália,
Traz o vento, a bramir, do Deserto africano:Que és o humílimo pó duma estrada sem povo,
Que, pisado uma vez, pelo ambiente se espalha,
Sente um raio de Sol, cai na terra de novo.
Fogos-Fátuos
Há certas almas vãs, galvanizadas
De emoção, de pureza, de bondade,
Que como toda a azul imensidade
Chegam a ser de súbito estreladas.E ficam como que transfiguradas
Por momentos, na vaga suavidade
De quem se eleva com serenidade
Às risonhas, celestes madrugadas.Mas nada às vezes nelas corresponde
Ao sonho e ninguém sabe mais por onde
Anda essa falsa e fugitiva chama…É que no fundo, na secreta essência,
Essas almas de triste decadência
São lama sempre e sempre serão lama.
Realidade
Fomos longe demais, para voltar
Aos antigos canteiros onde há rosas.
Em nós, o ouvido, quase e, quase, o olhar
Buscam nas cores vozes misteriosas…Mas o mistério é flor da juventude.
Não rima com poemas desumanos.
A idade — a nossa idade! — nunca ilude.
Só uma vez é que se tem vinte anos.Quebrámos todos, todos os espelhos
E o sol que, neles, está hoje posto
Já não reflecte os lábios tão vermelhos
Que nos iluminam, sempre, o rosto.Realidade? Há uma: apenas esta!
— Somos espectros na cidade em festa.
Somos o Casamento da Noite com o Sangue
Meu amor, ao fechar esta porta nocturna
peço-te, amor, uma viagem por um escuro recinto:
fecha os teus sonhos, entra com teu céu nos meus olhos,
estende-te no meu sangue como num largo rio.Adeus, adeus, cruel claridade que foi caindo
no saco de cada dia do passado,
adeus a cada raio de relógio ou laranja,
salve, ó sombra, intermitente companheira!Nesta nau ou água ou morte ou nova vida,
uma vez mais unidos, adormecidos, ressuscitados,
somos o casamento da noite com o sangue.Não sei quem vive ou morre, quem repousa ou desperta,
mas é o teu coração que distribui
no meu peito os dons da aurora.
O Seu Boné
À atriz Adelina Castro
É um boné ideal, de feltros e de plumas,
Que ela usa agora, assim como um turbante
Turco, aveludado, doce como algumas
Nuvens matinais que rolam no levante.Lembro quando ao vê-lo a rubra marselhesa,
Lembro sensações e cousas de prodígio
E penso que ele tem a máscula grandeza
Desse sedutor, vital barrete frígio!…Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno
E a flácida plumagem que serve-lhe d’adorno,
— satânico, voraz, esplêndido de fé!Exclama num idílio cândido e singelo,
Por entre as convulsões artísticas do Belo; —
Oh! tem coração e alma, esse boné!…
Idílio
Sinto que, ás vezes, choras, minha Irmã,
No teu sombrio quarto recolhida…
É que ele vem rompendo a sombra vã
Da Morte, e lhe aparece á luz da vida!E afflicta, como choras, minha Irmã…
Teu chôro é tua voz emudecida,
Ante a imagem do Filho, essa Manhã
Em profunda saudade amanhecida.Silencio! Não palpites, coração;
Nem canto de ave ou mistica oração
Um tal idilio venham perturbar!Deixae o Filho amado e a Mãe saudosa:
O Filho a rir, de face carinhosa,
E a Mãe, tão triste e pálida, a chorar…
Confissão
Já não me importo com o teu amor.
Podes levá-lo a quem melhor te queira.
Que eu sinto apenas a magoada dor,
de te ter dado a mocidade inteira!…Como eu fui tua! Hoje é sem sabor
a vida… Tudo passa à minha beira
sem que eu fixe ou distinga a sua cor…
– Nada ilumina esta letal cegueira!E não estranhes que em todos os meus versos
eu cante sempre os meus amores perversos…
– Amores que eu nunca tive e não terei:— Sou eu a endoidecer nesse exotismo
esta dor em que tanta vez me abismo
a relembrar a vida que te dei!…
Crucificada
Amiga… noiva… irmã… o que quiseres!
Por ti, todos os céus terão estrelas,
Por teu amor, mendiga, hei-de merecê-las,
Ao beijar a esmola que me deres.Podes amar até outras mulheres!
– Hei de compor, sonhar palavras belas,
Lindos versos de dor só para elas,
Para em lânguidas noites lhes dizeres!Crucificada em mim, sobre os meus braços,
Hei de poisar a boca nos teus passos
Pra não serem pisados por ninguém.E depois… Ah! depois de dores tamanhas,
Nascerás outra vez de outras entranhas,
Nascerás outra vez de uma outra Mãe!
Mário
Entre meditabundo e sonolento
Sobre a fofa delícia da almofada
Ele vai perseguindo na jornada
Através do Ottocento e o NovecentoNão o tires dali que dá pancada
Todo o resto prá ele é sofrimento
Vai colhendo da flor do pensamento
Toda a filosofia desejadaSó abandona voluntário o élan
Para o banho de poço da manhã
“Mens sana…” disse François LeblonE às vezes, Carnaval, diz na folia
E passeia porrado pela orgia
Sob o signo pagão do rei Mammon.
Plangência Da Tarde
Quando do campo as prófugas ovelhas
Voltam a tarde, lépidas, balando
Com elas o pastor volta cantando
E fulge o ocaso em convulsões vermelhas.Nos beirados das casas, sobre as telhas
Das andorinhas esvoaça o bando…
E o mar, tranqüilo, fica cintilando
Do sol que morre as últimas centelhas.O azul dos montes vago na distância…
No bosque, no ar, a cândida fragrância
Dos aromas vitais que a tarde exala.Às vezes, longe, solta, na esplanada,
A ovelha errante, tonta e desgarrada,
Perdida e triste pelos ermos bala …
Alçando O Livro Colossal Ardente
Alçando o livro colossal ardente
Traças no crânio um sulco luminoso,
E vais seguindo o remontar garboso
Do sol fagueiro lá no espaço ingente!Ergues a fronte juvenil potente
Já como herói ou lutador famoso
E c’uma forma de pensar honroso
Fazes-te esperança da brasílea gente!Seis vezes astro de maior grandeza
Enfim lá surges nos exames belos
Enfim triunfas na brilhante empresa!Seis vezes quebras da ignorância os elos,
Seis vezes vives com mais sã firmeza,
Gemem seis vezes a louvar-te os prelos!…
Intimidade
Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela – e se te não comparo à rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda…Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras – mentindo – que me tens amor…
Soneto XXX
Quando às vezes a mi, por mi pergunto,
Quem fui responde que me não conhece
Com não ser, de quem sou me desconhece,
E tem-me por defunto, o já defunto.Ele chora-me a mi, por ele ajunto
Com ele minhas lágrimas, e crece
Ua com outra dor, pois se oferece
Chorar quem já fui, e quem sou, junto.Choro porque o não vejo qual o via,
Ele porque me vê, qual me vê chora,
De mim, e dele, só lágrimas há.Espero por um dia, cada dia,
Que ou acabe de ser quem sou agora,
Ou acabe o lembrar-me quem fui já.
Esquecimento
Mais tarde em tua vida, um dia, hás de tentar
revolver da memória este tempo de agora…
– Mas o mundo é uma praia, onde as ondas do mar
apagam quase sempre as lembranças de outrora…Hás de em vão, ao teu Deus, esse Dom suplicar
sem conseguires nunca o que a tua alma implora…
– É que a vida é uma fonte, a correr sem parar
e a seguir, sem voltar, por este mundo afora…Não se vive outra vez… O que chamas presente,
há de ser, amanhã, um romance apagado
que em vão procurarás reler, inutilmente…O tempo tudo vence… Tudo ele consome…
E se um dia, talvez, lembrares teu passado
não mais hás de sequer reconhecer meu nome!…
Luva Abandonada
Uma só vez calçar-vos me foi dado,
Dedos claros! A escura sorte minha,
O meu destino, como um vento irado,
Levou-vos longe e me deixou sozinha!Sobre este cofre, desta cama ao lado,
Murcho, como uma flor, triste e mesquinha,
Bebendo ávida o cheiro delicado
Que aquela mão de dedos claros tinha.Cálix que a alma de um lírio teve um dia
Em si guardada, antes que ao chão pendesse,
Breve me hei de esfazer em poeira, em nada…Oh! em que chaga viva tocaria
Quem nesta vida compreender pudesse
A saudade da luva abandonada!