Cantata de Dido
Já no roxo oriente branqueando,
As prenhes velas da troiana frota
Entre as vagas azuis do mar dourado
Sobre as asas dos ventos se escondiam.
A misérrima Dido,
Pelos paços reais vaga ululando,
C’os turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneias.
Só ermas ruas, só desertas praças
A recente Cartago lhe apresenta;
Com medonho fragor, na praia nua
Fremem de noite as solitárias ondas;
E nas douradas grimpas
Das cúpulas soberbas
Piam nocturnas, agoureiras aves.
Do marmóreo sepulcro
Atónita imagina
Que mil vezes ouviu as frias cinzas
De defunto Siqueu, com débeis vozes,
Suspirando, chamar: – Elisa! Elisa!
D’Orco aos tremendos numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu esmorecida
Em torno dos turícremos altares,
Negra escuma ferver nas ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue converter-se.
Frenética, delira,
Pálido o rosto lindo
A madeixa subtil desentrançada;
Já com trémulo pé entra sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu, enternecida,
Magoados suspiros, brandas queixas.
Ali as cruéis Parcas lhe mostraram
As ilíacas roupas que,
Passagens sobre Vozes
768 resultadosVI
Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!Recebei (eu vos peco) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.
Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do Seu amor, nem pulsa o entusiasmo de fazer o bem.
Imortal Falerno
Quando as Esferas da Ilusão transponho
Vejo sempre tu’alma – essa galera
Feita das rosas brancas da Quimera,
Sempre a vagar no estranho mar do Sonho.Nem aspecto nublado nem tristonho!
Sempre uma doce e constelada Esfera,
Sempre uma voz clamando: – espera, espera,
Lá do fundo de um céu sempre risonho.Sempre uma voz dos Ermos, das Distâncias!
Sempre as longínquas, mágicas fragrâncias
De uma voz imortal, divina,pura…E tua boca, Sonhador eterno,
Sempre sequiosa desse azul falerno
Da Esperança do céu que te procura!
Qual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas.
É então um mundo de fórmulas a que eu obedeço e tu obedeces? Sem ele não poderíamos existir. Se víssemos o que está por trás não podíamos existir. O nosso mundo não é real: vivemos num mundo como eu o compreendo e o explico. Não temos outro. É a voz dos mortos insistente que teima e se nos impõe. Mais fundo: não existem senão sons repercutidos. Decerto não passamos de ecos.
XVII
Deixa, que por um pouco aquele monte
Escute a glória, que a meu peito assiste:
Porque nem sempre lastimoso, e triste
Hei de chorar à margem desta fonte.Agora, que nem sombra há no horizonte,
Nem o álamo ao zéfiro resiste,
Aquela hora ditosa, em que me viste
Na posse de meu bem, deixa, que conte.Mas que modo, que acento, que harmonia
Bastante pode ser, gentil pastora,
Para explicar afetos de alegria!Que hei de dizer, se esta alma, que te adora,
Só costumada às vozes da agonia,
A frase do prazer ainda ignora!
A verdade é como uma sinfonia. Nós estamos aqui a conversar, mas se amanhã nos pedirem para relatar o que se passou, cada um terá uma versão diferente. Só se unirmos as várias versões, as várias vozes, conseguiremos construir a História, que é uma soma dessas experiências individuais. A História colectiva é uma grande mentira. Quando ouvimos as pessoas, elas dizem coisas inesperadas, coisas que não sabíamos.
Hino à Dor
Sorri com mais doçura a boca de quem sofre,
Embora amargue o fel que os seus lábios beberam;
É mais ardente o olhar onde, como um aljofre,
A Dor se condensou e as lágrimas correram.Soa, como se um beijo ou uma carícia fosse,
A voz que a soluçar na Desgraça aprendeu;
E não há para nós consolação mais doce
Que o regaço de quem muito amou e sofreu.Voz, que jamais vibrou num soluço de mágoa,
Ao nosso coração nunca pode chegar…
Mas o pranto, ao cair duns olhos rasos de água,
Torna mais penetrante e mais profundo o olhar.Lábio, que só bebeu na fonte da Alegria,
É frio, como o olhar de quem nunca chorou;
A Bondade é uma flor que se alimenta e cria
Dos resíduos que a Dor no coração deixou.Em tudo quanto existe o Sofrimento imprime
Uma augusta expressão… mesmo a Suprema Graça,
Dando aos versos do Poeta esse esmalte sublime
Que torna imorredoira a Inspiração que passa.É por isso que a Dor, sem trégua nem guarida,
O Dom Milagroso de um Grande Amor
Na vida de toda a gente há braçados floridos dessas tolices sem importância. Só a raros eleitos é dado o milagroso dom de um grande amor. Eu teria muita pena que o destino não me trouxesse esse grande amor que foi o meu grande sonho pela vida fora. Devo agradecer ao destino o favor de ter ouvido a minha voz. Pôr finalmente, no meu caminho, a linda alma nova, ardente e carinhosa que é todo o meu amparo, toda a minha riqueza, toda a minha felicidade neste mundo. A morte pode vir quando quiser: trago as mãos cheias de rosas e o coração em festa: posso partir contente.
Como Podemos Esperar
Como podemos esperar.
Aguardar o que nossas mãos possam reter.
Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas
têm já o estado do vento
o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia.Aguardar mais aguardar nada
quanto mais se repete uma palavra
«estou sentado virado para a parede desta casa»
baixo, mais baixo ainda,
«estou sentado virado para a parede desta casa».Fazer que não haja sucedido o sucedido.
O prazer de sentir chegar as coisas
o riso sob a chuva
o frio que faz. Aquicomo podemos esperar uma noite de lua e vento?
Alguém que sabe muito e que já viveu muito contava-me há pouco tempo que a maioria das coisas que nos acontecem não são escolha nossa. É preciso uma vida inteira, mais de sessenta anos pelo menos, para se fazer esta afirmação com propriedade. Pedindo emprestada a experiência da voz na qual escutei esta frase, acrescento que, se essa falta de escolha existe, então tem de estar presente nos momentos aparentemente pequenos, uma vez que são eles que, sucessivos e constantes, formam aquilo a que, no cume da montanha, chamamos «a vida».
A Realidade em Coro
A realidade sempre me atraiu como um íman, torturando-me e hipnotizando-me, e eu queria capturá-la no papel. Comecei então a apropriar-me imediatamente deste género de vozes humanas e confissões, de evidências de testemunhas e documentos. Isto é como eu vejo e ouço o mundo – como um coro de vozes individuais e uma colagem de detalhes quotidianos. Desta forma, todo o meu potencial mental e emocional é realizado em pleno. Desta forma eu posso ser, simultaneamente, uma escritora, uma jornalista, uma socióloga, uma psicóloga e uma pregadora.
Soneto 263 A Mama Cass
Se magra é minha Sandra carioca,
gordona foi Cassandra, outro tesão
das minhas fantasias, que hoje são
lembranças se a vitrola, ao fundo, toca.Mulher o meu desejo só provoca
se for ou varapau ou balofão:
oitenta ou oito; o meio termo não.
Por isso a Mama Cass, morta, me choca.Um simples sanduíche nos privava,
fatídico, entalado na garganta,
daquela voz famosa, que não gravamais coisas como aquilo que me encanta:
“Palavras de amor”. Cass, você foi brava!
Nenhum peso mais alto se alevanta!
Para conquistar um amor, deixe a sua boca falar com a voz do coração. As palavras têm perfume e cor quando reflectem a ternura de um sentimento.
Sempre que Lisboa canta
Lisboa cidade amiga
que és meu berço de embalar
ensina-me uma cantiga
das que tu sabes cantarUma cantiga singela
Daquelas de enfeitiçar
P’ra eu cantar à janela
Quando o meu amor passarSempre que Lisboa canta
Não sei se canta
Não sei se reza
A sua voz com carinho
Canta baixinho
Sua tristezaSempre que Lisboa canta
à gente encanta
Sua beleza
Pois quando Lisboa canta
Canta o fado
com certezaEu quero dar-te um castigo
Por tanto te ter amado
Quero que cantes comigo
Os versos do mesmo fadoQuero que Lisboa guarde
Tantos fados que cantei
Para cantar-me mais tarde
Os fados que lhe ensinei
O Lado de Fora
Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.O meu rosto não reflecte a tua imagem
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração.
Dedicatória
Este meu livro é todo teu, repara
que ele traduz em sua humilde glória
verso por verso, a estranha trajetória
desta nossa afeição ciumenta e rara!Beijos! Saudades! Sonhos! Nem notara
tanta cousa afinal na nossa história…
E este verso – é a feliz dedicatória…
onde a minha alma inteira se declara…Abre este livro… E encontrarás então
teu coração, de amor, rindo e cantando,
cantando e rindo com o meu coração…E se o leres mais alto, quando a sós,
é como se estivesses me escutando
falar de amor com a tua própria voz!
Madona Da Tristeza
Quando te escuto e te olho reverente
E sinto a tua graça triste e bela
De ave medrosa, tímida, singela,
Fico a cismar enternecidamente.Tua voz, teu olhar, teu ar dolente
Toda a delicadeza ideal revela
E de sonhos e lágrimas estrela
O meu ser comovido e penitente.Com que mágoa te adoro e te contemplo,
Ó da Piedade soberano exemplo,
Flor divina e secreta da Beleza.Os meus soluços enchem os espaços
Quando te aperto nos estreitos braços,
solitária madona da Tristeza!
Consciência Plena
Levas-me, consciência plena, desejante deus,
por todo o mundo.
Neste mar terceiro,
quase oiço tua voz; tua voz do vento
ocupante total do movimento;
das cores, das luzes
eternas e marinhas.Tua voz de fogo branco
na totalidade da água, do barco, do céu,
traçando as rotas com prazer,
gravando-me com fúlgido minha órbita segura
de corpo negro
com o diamante lúcido em seu dentro.Tradução de José Bento