Canto Ou Elegia
Porque não me pertences eu te sinto minha.
Sei que estou no teu sono e nos teus movimentos.
Ah! se já tivesse apertado ao meu peito
talvez me pertencesses, – e não fosses minha.Quantas, quantas julguei possuir, tive-as na posse
e perdi-as no instante em que a taça se esvaziou.
Ah! morremos de seda! E é água pura que canta
perto de nós, no abismo, esse amor que não temos.Morro de sede, e sofro… Ó música tão perto
e tão longe na minha solidão ardente!
– Quanto não a ouvirei porque a terei nos lábios?Quando a possuirei sem notar-lhe a pureza?
E a beberei sem ver, que a estou, lento, matando,
e estou, lento, morrendo, sem saber que morro?
Passagens sobre Água
843 resultadosMaomé e a Montanha
Guardo o mais absoluto segredo
das pedras que rolam no fundo dos leitos
embora nada saiba,
nada ouse saber.
Vou pelo olhar até ao rio,
o rio vem a mim
e ambos caminhamos deslumbrados
para fora de nós.O cantar da água
corre nos meus olhos exactamente como corre
a manhã
até que o sol a prumo
faz de mim o desenho do rio
que vejo,
o mapa das veias
onde o corpo nasce de novo.À vinda procuro a minha sombra.
O coração que me há-de trazer de volta
demora-se no rio
como se nele corresse
uma sede de olhar.Os pés colam-se à margem.
Do outro lado as casas vão mudando
de expressão
mais lentamente do que a água corre.
O sol abraça-me pelas costas
e deixa-se escorregar como crianças
que riem,
que não distinguem a voz seca do tempo.É noite à lareira da casa.
Os objectos acendem-se:
também eles mudam de rosto
como tudo o que é iluminado por amor.
(Ao ser perguntado por que nunca bebia água): Peixes fodem nela.
Luto por uma Novidade de Espírito
Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pode me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito.
Minha vida é um reflexo deformado assim como se deforma num lago ondulante e instável o reflexo de um rosto. Imprecisão trémula. Como o que acontece com a água quando se mergulha a mão na água.
Sentia-se aliviada, como uma pessoa que está se afogando e desiste de tentar lutar contra as águas. Ver um homem agir com autoconfiança era para ela um salva-vidas lançado à sua frente num momento em que ela já se esquecera da existência de salva-vidas.
Não haverá, entre um espírito que abarrota de invenções alheias e outro que inventa por si próprio, a mesma diferença que vai de um recipiente que se enche de água à fonte que a fornece ?
Debaixo das Oliveiras
Este foi o mês em que cantei
dentro de minha casa
debaixo
das oliveiras.O mês em que a brisa me pôs nas mãos
uma harpa de folhas
e a terra me emprestou
sua flauta e sua lua.
Maré viva. Meu sangue atravessado
por um cometa visível a olho nu
tangido por satélites e aves de arribação
navegado por peixes desconhecidos.Este foi o mês em que cantei
como quem morre e ressuscita
no terceiro dia
de cada sílaba.O mês em que subi a uma colina
dentro de minha casa
olhei a terra e o mar
depois cantei
como quem faz com duas pedras
o primeiro lume. Palavras
e pedras. Palavras e lume
de uma vida.Este foi o mês em que fui a um lugar santo
dentro de minha casa.
O mês em que saí dos campos
e me banhei no rio como quem se baptiza
e cantei debaixo das oliveiras
as mãos cheias de terra. Palavras
e terra
de uma vida.Este foi o mês em que cantei
como quem espelha ao vento suas cinzas
e cresce de seu próprio adubo
carregado de folhas.
O Testamento dos Namorados
Escolhamos as coisas mais inúteis
o verde água o rumor das frutas
e partamos como quem sai
ao domingo naturalmente.Deixemos entretanto o sinal
de ter existido carnalmente:
da tua força um castiçal
da minha fragilidade um pente.Esse hieróglifo essa lousa
deixemos para que uma criança
a encontre como quem ousa
um novo passo de dança.
O que Poderá Ver quem já da Vista Cegou?
Ante Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábeda é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n’água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amaram
como males lhe causaram
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidarom.A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tão mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam
que o dia que não se viam,
se via na saudade
o que ambos se queriam.Algumas horas falavam,
andando o gado pascendo;
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
pequena e, tinha cuidado
de guardar melhor o gado
o que lhe Crisfal dizia;
mas, em fim, foi mal guardado;Que, depois de assim viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem pera mor dor,
em fim se houve de saber
por Joana,
Abril, águas mil.
As Mãos
Brandamente escrevem dos espasmos do sol.
Envelhecem do pulso ao cérebro, ao calor baço
de um revérbero no eixo dos ventos, usura
das máscaras que, sucessivamente, as transformamde consciência em cal ou metal obscuro.
E já não é por si que a presença existe ou
subsiste o que separa. Destroem as sementes,
apodrecem como um sopro e não são remansona areia ou domadoras de chamas. Igualam-se
à água, para serem raiz do que se cala
e insinuam-se, para sempre, no pó da noite.Um castelo de pele tomba. Deixam de ser
nomeadas ou nome. Escrevem, brandamente,
do termo da música o luto do silêncio.
Não Sou Digno de um Anjo Tão Doce como Tu
Bom dia, anjo querido, beijo-te muito. Pensei em ti durante todo o caminho. Acabo de chegar. Sinto-me cansado e instalei-me para te escrever. Acabam de trazer-me chá, e água para me lavar, mas no intervalo escrevo-te umas linhas. (…) Na sala de espera da estação andei de lá para cá a pensar em ti e dizia comigo: mas porque deixei eu a minha Anuska?
Recordava tudo, até ao mais ínfimo escaninho da tua alma e do teu coração. Desde que casámos que descobri não ser digno de um anjo tão doce, tão belo, tão puro como tu – e que crê em mim. Como pude eu deixar-te? Para onde vou? Porquê? Deus confiou-te a mim para que nenhuma das riquezas da tua alma se perdesse – pelo contrário, para que tudo se desenvolva e floresça rica e esplendorosamente. Deus entregou-te a mim para que, por ti, eu resgate os meus enormes pecados, ao apresentar-te a Ele amadurecida, conservada, salva de tudo o que é baixo e ofende o espírito. E eu (…) eu o que faço é perturbar-te com coisas tão estúpidas como a minha viagem a este lugar.
Em uma Tarde de Outono
Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono… Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto…Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos…
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol…
Alma Serena
Alma serena, a consciência pura,
assim eu quero a vida que me resta.
Saudade não é dor nem amargura,
dilui-se ao longe a derradeira festa.Não me tentam as rotas da aventura,
agora sei que a minha estrada é esta:
difícil de subir, áspera e dura,
mas branca a urze, de oiro puro a giesta.Assim meu canto fácil de entender,
como chuva a cair, planta a nascer,
como raiz na terra, água corrente.Tão fácil o difícil verso obscuro!
Eu não canto, porém, atrás dum muro,
eu canto ao sol e para toda a gente.
Eu Peneiro o Espírito e Crivo o Ritmo
Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
Do sangue no amor, o movimento para fora
O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos
Sentidos da palavra que sopra a sua voz
Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
E encontro
O silêncio inigualável de quem escutaEis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
Ao da cítaraEu peneiro as entranhas e encontro a dor
De quem toca a cítara. A frágil raiz
De quem criva horas e horas a vida e encontra
A corda mais azul, a veia inesgotável
De quem ama
Encontro o silêncio nas entranhas de quem cantaEis porque o amor vibra no espírito de quem criva
O músico incompleto peneira a ideia das formas
Eu sopro a água viva. Crivo
O sofrimento demorado do canto
Encontro o mistério
Da cítara
O Sexo
Neste corpo, a densa neblina, quase um hábito,
lentamente descida, sedimento e sede,
subtilmente o acalma. Ancora que se desloca,
movediça e infirme. Só no olhar, alémda luz e da cal, se distinguem os desejos
e a mestria das palavras. E não há remos
nem astros. Convido a neblina a esta
mesa de chumbo, onde nada levanta o fogosolar ou os signos se alteiam. É a hora
em que o corpo treme e a sombra lavra as frouxas
manhãs. O que serão as tardes, sob a névoa,quando o vigor agoniza e o vão das águas abre
o caos e os ecos? Estaremos em paz,
usando a palavra, última herdeira das areias.
É a mensageira da saudade, é o relicário da prece, é a cristalização da mágoa. É imortal, porque deriva da alma. É a água que não seca, a lágrima, água do coração – salgada porque vem de um oceano sem praias, que é o desespero, estrela porque demanda o céu.
Mais Triste
É triste, diz a gente, a vastidão
Do mar imenso! E aquela voz fatal
Com que ele fala, agita o nosso mal!
E a Noite é triste como a Extrema-Unção!É triste e dilacera o coração
Um poente do nosso Portugal!
E não vêem que eu sou…eu…afinal,
A coisa mais magoada das que o são?!…Poentes de agonia trago-os eu
Dentro de mim e tudo quanto é meu
É um triste poente de amargura!E a vastidão do Mar, toda essa água
Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa!
E a noite sou eu própria! A Noite escura!!
Voz Que Se Cala
Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.Amo a hera que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!…
O mecenas não será aquele que olha com indiferença um homem a debater-se na água, e depois lhe prodigaliza uma ajuda embaraçosa mal ele chega à margem ?