Eu Peneiro o Espírito e Crivo o Ritmo
Eu peneiro o espírito e crivo o ritmo
Do sangue no amor, o movimento para fora
O desabrigo completo. Peneiro os múltiplos
Sentidos da palavra que sopra a sua voz
Nos pulsos. Crivo a pulsação do canto
E encontro
O silêncio inigualável de quem escutaEis porque as minhas entranhas vibram de modo igual
Ao da cítaraEu peneiro as entranhas e encontro a dor
De quem toca a cítara. A frágil raiz
De quem criva horas e horas a vida e encontra
A corda mais azul, a veia inesgotável
De quem ama
Encontro o silêncio nas entranhas de quem cantaEis porque o amor vibra no espírito de quem criva
O músico incompleto peneira a ideia das formas
Eu sopro a água viva. Crivo
O sofrimento demorado do canto
Encontro o mistério
Da cítara
Passagens sobre Canto
343 resultadosNinguém, com toda certeza, é capaz de assumir a liderança em todos os campos, pois para um homem os deuses concederam as proezas da guerra, a outro, a dança, para um outro, a música e o canto, e, num outro, o todo poderoso Zeus colocou uma boa cabeça.
Balada do Poema que não Há
Quero escrever um poema
Um poema não sei de quê
Que venha todo vermelho
Que venha todo de negro
Às de copas às de espadas
Quero escrever um poema
Como de sortes cruzadasQuero escrever um poema
Como quem escreve o momento
Cheiro de terra molhada
Abril com chuva por dentro
E este ramo de alfazema
Por sobre a tua almofada
Quero escrever um poema
Que seja de tudo ou nadaUm poema não sei de quê
Que traga a notícia louca
Da história que ninguém crê
Ou esta afta na boca
Esta noite sem sentido
Coisa pouca coisa pouca
Tão aquém do pressentido
Que me dói não sei porquêQuero um poema ao contrário
Deste estado que padeço
Meu cavalo solitário
A cavalgar no avesso
De um verso que não conheçoQue venha de capa e espada
Ou de chicote na mão
Sobre esta noite acordada
Quero um poema noitada
Um poema até mais nãoQuero um poema que diga
Que nada há que dizer
Senão que a noite castiga
Quem procura uma cantiga
Que não é de adormecerPoema de amor e morte
No reino da Dinamarca
Ser ou não ser eis a sorte
O resto é silêncio e dor
Poema que traga a marca
Do Castelo de ElsenorQuero o poema que me dê
Aquela música antiga
Da Provença e da Toscânia
Vinho velho de Chianti
Com Ezra Pound em Rapallo
E versos de Cavalcanti
Ou Guilherme de Aquitânia
Dormindo sobre um cavaloE com ele então dizer
O meu poema está feito
Não sei de quê nem sobre quêDormindo sobre um cavalo
Quero o poema perfeito
Que ninguém há-de escrever
Que ele traga a estrela negra
Do canto e da solidão
Ou aquela toutinegra
De Camões quando escrevia
Sôbolos rios que vãoQue venha como um destino
Às de copas às de espadas
Que venha para viver
Que venha para morrer
Se tiver que ser será
E não há cartas marcadas
Só assim poderá ser
O poema que não há
A Estranheza dá Crédito
O verdadeiro campo e assunto da impostura são as coisas desconhecidas. Isso porque em primeiro lugar a própria estranheza dá crédito; e depois, não estando sujeitas às nossas reflexões habituais, elas tiram-nos os meios de as combater. Por causa disso, diz Platão, é muito mais fácil satisfazer ao falar da natureza dos deuses do que da natureza dos homens, porque a ignorância dos ouvintes abre um belo e amplo caminho e toda a liberdade para o manejo de uma matéria secreta.
Advém daí que nada é aceite tão firmemente como aquilo que menos se sabe, nem há pessoas tão seguras como as que nos contam fábulas, como alquimistas, prognotiscadores, astrólogos, quiromantes, médicos, toda a gente dessa espécie (Horácio). A eles eu acrescentaria de bom grado, se ousasse, um bando de pessoas, intérpretes e controladores habituais dos desígnios de Deus, que têm a pretensão de descobrir as causas de cada acontecimento e de ver nos segredos da vontade divina os incompreensíveis motivos das suas obras; e, embora a variedade e a disparidade contínua dos factos os lance de um canto para o outro e do ocidente para o oriente, não deixam entretanto de persistir no que é seu e com o mesmo lápis pintar o preto e o branco.
Que um Homem Tenha a Força de ser Sincero
A maior parte das pessoas, seduzidas pelas aparências, deixam-se tomar pelos engodos enganadores de uma baixa e servil complacência; tomam-na por um sinal de uma verdadeira amizade; e confundem, como dizia Pitágoras, o canto das sereias com o das musas. Crêem, digo eu, que produz a amizade, como as pessoas simples pensam que a terra fez os Deuses; em lugar de dizerem que foi a sinceridade que a fez nascer como os Deuses criaram os sinais e as potências celestes.
Sim! É de uma força tão bruta que a amizade deve provir, e é de uma bela origem a que tira de uma virtude que dá origem a tantas outras. As grandes virtudes, que nascem, se ouso dizê-lo, na parte da alma mais subida e mais divina, parecem estar encadeadas umas nas outras. Que um homem tenha a força de ser sincero, e vereis uma certa coragem difundida em todo o seu carácter, uma independência geral, um império sobre si mesmo igual ao exercido sobre os outros, uma alma isenta das nuvens do temor e do terror, um amor pela virtude, um ódio pelo vício, um desprezo pelos que se lhe abandonam. De um tronco tão nobre e tão belo,
VI
P. Sião que dorme ao luar. Vozes diletas
Modulam salmos de visões contritas…
E a sombra sacrossanta dos Profetas
Melancoliza o canto dos levitas.As torres brancas, terminando em setas,
Onde velam, nas noites infinitas,
Mil guerreiros sombrios como ascetas,
Erguem ao Céu as cúpulas benditas.As virgens de Israel as negras comas
Aromatizam com os ungüentos brancos
dos nigromantes de mortais aromas…Jerusalém, em meio às Doze Portas,
Dorme: e o luar que lhe vem beijar os flancos
Evoca ruínas de cidades mortas.
Carta (Esboço)
Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo,
Pecadores
Ali – no canto escuro do jardim
não havia o menor sinal de gente…
Só nós dois… E eu então, sensualmente
beijei-te a boca… o seio… tudo enfim…Nem eu sei bem dizer o que se sente,
quando estreitei teu corpo junto a mim…
– Embriaguei-me talvez… completamente…
– naquele canto escuro do jardim…Fui ousado, bem sei… Dizias: – não!
– mas não pude te ouvir sentindo aquela
tão louca e indescritível sensaçãoE pequei. . . – Pecaria outro qualquer
– Foi mais culpado o Deus que te fez bela
e ele – o Demônio – que te fez mulher!
Os Interesses na Actividade Política
Os jornais feitos com os políticos criam nos seus meios restritos um estado de sobreexcitação doentia que cada qual julga partilhado por todos os outros, e daí vem que dum canto da capital, por definição a cabeça do país, o mais reduzido grupo partidário convictamente julga falar em nome da Nação. Mas há interesses mais directos e palpáveis em jogo na actividade política, e o que é pior é que à medida que o poder se corrompe e que o interesse colectivo é sacrificado a interesses individuais, ao mundo político que espera e provoca as mutações governativas, junta-se o outro mundo ávido dos negócios. Na alta finança, nos bancos, no comércio de especulação nos grandes empreiteiros, entre os grandes fornecedores, mesmo no campo da produção propriamente dita, em ramos cuja vida depende em grande parte de actos governativos, existem já numerosos indivíduos a interessar-se activamente pela política dos partidos. A influência corrosiva da sua acção traz mais duma dificuldade grave à governação pública.
Meu País Desgraçado
Meu país desgraçado!…
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…Meu país desgraçado!…
Porque fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!
Canção porque (não) Morres
Este é o último livro, prometia
como alguém que tivesse esquecido
que assim sempre tinha sido – aquele
era o último e depois que alguém viesse
fechar a porta contra o som do mar.
– Pagava por jogar no escuro
e por aqueles ardis já gastos
com que pensava e não pensava
enganar a morte branca e vermelha.
– Ah e não esqueças: – deitar fora a chaveCanção como não morres
se é a morte que em ti sobe até à fonte
do sangue, até à flor do sal queimando
os dedos; até à boca que por te cantar
se acende negra; até à copa
das árvores que distribuem o sol
sobre o corpo morto do amor
amante e desamado?Ou antes: de que morres, por que morres
tu, canção já sem voz, já
sem o canto,
– já sem outro assunto
de momento, me despeço de todos vós-
quem falou agora? – Que importa quem falou?
– Que importa? Nada e nonada. E, sim, tudo
é tudo o que importa, para quem veio
mandado a que chamasses quem
tivesse chamado.
Dói-me a Vida aos Poucos
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo,
Uma obra de arte é um canto da criação visto através de um temperamento.
A Esterilidade do Ódio
O ódio é um sentimento negativo que nada cria e tudo esteriliza: – e, quem a ele se abandona, bem depressa vê consumidas na inércia as forças e as faculdades que a Natureza lhe dera para a acção. O ódio, quando impotente, não tendo outro objecto directo e nem outra esperança senão o seu próprio desenvolvimento – é uma forma da ociosidade. É uma ociosidade sinistra, lívida, que se encolhe a um canto, na treva. (…) Mas que esse sentimento seja secundário na vasta obra que temos diante de nós, agora que acordamos – e não essencial, ou supremo e tão absorvente que só ele ocupe a nossa vida, e se substitua à própria obra.
Variações sobre
O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO
de Alexandre O’NeillOs ratos invadiram a cidade
povoaram as casas os ratos roeram
o coração das gentes.
Cada homem traz um rato na alma.
Na rua os ratos roeram a vida.
É proibido não ser rato.Canto na toca. E sou um homem.
Os ratos não tiveram tempo de roer-me
os ratos não podem roer um homem
que grita não aos ratos.
Encho a toca de sol.
(Cá fora os ratos roeram o sol).
Encho a toca de luar.
(Cá fora os ratos roeram a lua).
Encho a toca de amor.
(Cá fora os ratos roeram o amor).Na toca que já foi dos ratos cantam
os homens que não chiam. E cantando
a toca enche-se de sol.
(O pouco sol que os ratos não roeram).
A Religião e o Jornalismo São as Únicas Forças Verdadeiras
Todas as artes são uma futilidade perante a literatura. As artes que se dirigem à visualidade, além de serem únicos os seus produtos, e perecíveis, podendo portanto, de um momento para o outro, deixar de existir, não existem senão para criar ambiente agradável, para distrair ou entreter — exactamente como as artes de representar, de cantar, de dançar, que todos reconhecem como sendo inferiores em relação às outras. A própria música não existe senão enquanto executada, participando portanto da futilidade das artes de representação. Tem a vantagem de durar, em partituras; mas essa não é como a dos livros, ou coisas escritas, cuja valia está em que são partituras acessíveis a todos os que sabem ler, existindo ali para a interpretação imediata de quem lê, e não para a interpretação do executante, transmitida depois ao ouvinte.
As literaturas, porém, são escritas em línguas diferentes, e, como não há possibilidades de haver uma língua universal, nem, se vier a havê-la, será o grego antigo, onde tantas obras de arte se escreveram, ou o latim, ou o inglês ou outra qualquer, e se for uma delas não será as outras, segue que a literatura, sendo escrita para a posteridade, não a atinge senão,
Volúpia
Quisera te associar à pureza e à candura
quando pensasse em ti… Mas a emoção, teimosa,
transforma sem querer toda a minha ternura
numa estranha lembrança ardente voluptuosa…Não poderei dizer apenas que és formosa
quando a própria beleza em ti se transfigura,
– e pela tua carne há pétalas de rosa
e no teu corpo há um canto fresco de água pura!Um sincero pudor vislumbro em teus enleios,
mas se disser que te amo com pureza, eu minto,
– no olhar trago tatuada a visão de teus seios…E em vão tento associar-te ao céu, à fonte, à flor!
Quando falo de ti, penso em teu corpo, e sinto
que ainda estremece em mim teu último estertor!
A casa da saudade chama-se memória: é uma cabana pequenina a um canto do coração.
Despojado do que já não há solto no vazio do que ainda não veio, minha boca cantará cantos de alívio pelo que se foi, cantos de espera pelo que há de vir.
Encontra-se sempre, aqui e ali, algum semi-deus que consegue viver em condições terríveis, e viver vencedor! Quereis ouvir os seus cantos solitários? Escutai a música de Beethoven.