O Abraço
O abraço. O abraço que parece estar a acabar. O abraço raro, o abraço verdadeiro. Da mãe que recebe o filho, da mulher que recebe o marido, do amigo que recebe o amigo. O abraço que não se pensa, que não se imagina. O abraço que não é; o abraço que tem de ser. O abraço que serve para viver. O abraço que acontece – e que não se esquece. Um dia hei-de passar todo o dia a ensinar o abraço. A visitar as escolas e a explicar que abraçar não é dois corpos unidos e apertados pelos braços. Abraçar é dois instantes que se fundem por dentro do que une dois corpos. Abraçar é um orgasmo de vida, um clímax de partilha – uma orgia de gente. Abraçar é fechar os olhos e abrir a alma, apertar os músculos e libertar o sonho. Abraçar é fazer de conta que se é herói – e sê-lo mesmo. Porque nada é mais heróico do que um abraço que se deixa ser. Porque nada é mais heróico do que ter a coragem de abraçar, em frente do mundo, em frente da dor, em frente do fim, em frente da derrota. Abraçar é a vitória do homem sobre o homem,
Passagens sobre Estradas
309 resultadosSombra
De olheiras roxas, roxas, quase pretas,
De olhos límpidos, doces, languescentes,
Lagos em calma, pálidos, dormentes
Onde se debruçassem violetas…De mãos esguias, finas hastes quietas,
Que o vento não baloiça em noites quentes…
Nocturno de Chopin… risos dolentes…
Versos tristes em sonhos de Poetas…Beijo doce de aromas perturbantes…
Rosal bendito que dá rosas… Dantes
Esta era Eu e Eu era a Idolatrada!…Ah, cinzas mortas! Ah, luz que se apaga!
Vou sendo, em ti, agora, a sombra vaga
D’alguém que dobra a curva duma estrada…
Não Estás a Ver
Todos os dias, todos nós assistimos – seja como utentes, vítimas ou observadores – a uma prática irritantemente portuguesa.
Alguém faz uma longa e pormenorizada descrição de uma coisa extraordinária (ou, mais amiúde, banal) que lhe aconteceu. Nós ouvimos, com paciência e empatia exageradas, e comentamos conforme as mais bem equilibradas expectativas.
Descrevem-nos um momento de horror (“atravessou-se um gato na estrada, tive de desviar-me e quase bati noutro carro”) e, quando nós simpatizamos (muitos de nós tendo passado pela mesma experiência de medo de morrer ou matar), o nosso interlocutor dá como perdidos os quartos de hora que gastou a dar-nos uma narrativa completa e, apesar da nossa sincera afirmação de empatia (“Coitado! Sei exactamente o que sentiste!”), atira-nos invariavelmente à cara a mesma psicopática acusação: “Não estás a ver!”
É português pensar que aquilo que se sente ou que nos acontece não pode ser sentido ou acontecer a mais ninguém. Temos a ideia estúpida, avançada por Camões – do saber de experiência feito -, que cada um sabe o que sabe e vive o que vive. Dizer “não estás a ver” a quem vê perfeitamente – o mais das vezes espontaneamente – é uma espécie de distanciação.
Porque quando alguém, meu caro, vangloria-se
de ser um homem honrado, depois de dar
a sua palavra, esta deve ser sagrada.E mesmo que a estrada seja longa, feia ou bela,
custe o que custar, nem que ele tenha de ser morto,
mas a sua palavra deve ser mantida.
Os Caminhos Desapareceram da Alma Humana
Caminho: faixa de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada distingue-se do caminho não só por ser percorrida de automóvel, mas também por ser uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada não tem em si própria qualquer sentido; só têm sentido os dois pontos que ela liga. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho é em si próprio dotado de um sentido e convida-nos a uma pausa. A estrada é uma desvalorização triunfal do espaço, que hoje não passa de um entrave aos movimentos do homem, de uma perda de tempo.
Antes ainda de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem já não sente o desejo de caminhar e de extrair disso um prazer. E também a sua vida ele já não vê como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha conduzindo de uma etapa à seguinte, do posto de capitão ao posto de general, do estatuto de esposa ao estatuto de viúva. O tempo de viver reduziu-se a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar a uma velocidade sempre crescente.
Coisa arrojada a um canto, trapo caído na estrada, meu ser ignóbil ante a vida finge-se.
Morrer é apenas não ser visto. Morrer é a curva da estrada.
Horas Rubras
Horas profundas, lentas e caladas
Feitas de beijos rubros e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…Oiço olaias em flor às gargalhadas…
Tombam astros em fogo, astros dementes,
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas…Os meus lábios são brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras…Sou chama e neve e branca e mist’riosa…
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!
A estrada para o inferno está repleta de táxis.
Vi Jesus Cristo Descer à Terra
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
Quem me Dera que Eu Fosse o Pó da Estrada
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse…
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena
Os Amantes
Amor, é falso o que dizes;
Teu bom rosto é contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;O teu meu é mel azedo,
Não creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vão rosto ledo;
Já estou muito escaldado,
Já d’águas frias hei medo.Teus prémios são pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.Fartei-te assaz a vontade;
Em vãos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ávidos dentes
Os ossos ensanguentados.Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
Põe a mira em outra parte
Que daqui não tiras nada.Busca algum fofo morgado
Que, solto já dos tutores,
Ao domingo penteado,
Vá dizendo à toa amores
Pelas pias encostado;
Desigualdade Natural e Desigualdade Institucional
É fácil de ver que, entre as diferenças que distinguem os homens, muitas passam por naturais, quando são unicamente a obra do hábito e dos diversos géneros de vida adoptados pelos homens na sociedade. Assim, num temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza que disso dependem, vêm muitas vezes mais da maneira dura ou efeminada pela qual foi educado do que da constituição primitiva dos corpos. Acontece o mesmo com as forças do espírito, e a educação não só estabelece a diferença entre os espíritos cultivados e os que não o são, como aumenta a que se acha entre os primeiros à proporção da cultura; com efeito, quando um gigante e um anão marcham na mesma estrada, cada passo representa uma nova vantagem para o gigante. Ora, se se comparar a diversidade prodigiosa do estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exactamente as mesmas coisas, compreender-se-á quanto a diferença de homem para homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade; e quanto a desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição.
Romance de Dubrovnik
São estas casas de cinza
De cinza petrificada
É como se aqui a vida
tivesse jogado às cartas
e só a morte saíra
ganhando em cada jogada
É esta rua comprida
mas que se chama Platza
(embora em eslava grafia
se escreva apenas Placa)
e que na Ragusa antiga
já dois mundos separava
De um lado terra latina
e do outro terra bárbara
São as verdes gelosias
são as muralhas douradas
a segredarem que a vida
se inda quisesse ganhava
É agora ao meio-dia
a Porta Pile empilhada
E são cachos de turistas
trepando pelas muralhas
tirando fotografias
contudo não vendo nada
São fileiras de boutiques
São cafés sob as arcadas
É tudo a fingir que a vida
não se dá por derrotada
É no porto a maresia
quando mais avança a tarde
incrustada em cada esquina
suspensa de cada iate
Mas das naves bizantinas
é que ela sente saudades
e das galeras esguias
que Veneza lhe enviava
se bem que tal nostalgia
inda hoje a sobressalte
Nenhum sabor tem a vida
se a morte a não acicata
E são argolas vazias
as que há no porto à entrada
e de onde outrora pendiam
correntes sempre de guarda
Quem aliás adivinha
as marítimas estradas
que deste porto saíam
que neste nó se cruzavam
Com certeza agora vivem
na tinta azul de outros mapas
Ou permanecem cativas
Ou ficaram bloqueadas
São em redor tantas ilhas
tanta rocha tanta escarpa
tantas flutuantes ravinas
Mas quando a noite se abate
não são mais do que faíscas
no mar de prata lavrada
E já a Lua surgia
na sua rica dalmática
Nem mais a preceito vinha
do que no céu da Dalmácia
Será que o fulgor da vida
vem da morte iluminada
Subo ao monte Zarkovica
(Na língua serbo-croata
deve ler-se Djarkovitza)
e à sombra desta latada
bebo um copo de mastika
olho de novo a cidade
Ó memória empedernida
de uma divina morada
Ó ferradura de cinza
de algum cavalo com asas
Ó mediterrânea figa
mais propriamente adriática
que foi feita por Posídon
e no litoral deixada
O que a morte à vida ensina
através dos deuses passa
Mas não é só nas ruínas
que fica a sua pegada
As pessoas que fazem prevalecer a razão são como quem esmigalha pedras na estrada: enchem-vos de grãos de terra e de poeira.
Árvores Do Alentejo
Ao Prof. Guido Batelli
Horas mortas… Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido… e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!E quando, manhã alta, o sol pospoente
A oiro, a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
– Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!
Atravessa Esta Paisagem o Meu Sonho
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…Não sei quem me sonho…
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim,
O Monge
-“O coração da infância”, eu lhe dizia,
“É manso.” E ele me disse:-“Essas estradas,
Quando, novo Eliseu, as percorria,
As crianças lançavam-me pedradas…”Falei-lhe então na glória e na alegria;
E ele-alvas barbas longas derramadas
No burel negro-o olhar somente erguia
Às cérulas regiões ilimitadas…Quando eu, porém, falei no amor, um riso
Súbito as faces do impassível monge
Iluminou… Era o vislumbre incerto,Era a luz de um crepúsculo indeciso
Entre os clarões de um sol que já vai longe
E as sombras de uma noite que vem perto!…
No meio de tudo isto [Revolta da Armada] eu tive felizmente bastante lucidez para descobrir a estrada do dever, e nela estou e nela prosseguirei.
Chove ? Nenhuma Chuva Cai…
Chove? Nenhuma chuva cai…
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu…E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento…E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro… E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim…Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convésNo meu cansaço perdido entre os gelos,