Farto de voar
Farto de voar
Pouso as palavras no chão
Entro no mar
Sinto o sal de mão em mão
Tenho um barco na vida espetado
Só suspenso por fios dum lado
E do outro a cair
a cair
no arpão
no arpãoLevo a dormir
Sonhos que andei para trás
Ergo o porvir
Trago nos bolsos a paz
Tenho um corpo na morte espetado
Só suspenso por balas de um lado
E do outro a escapar
a escapar
de raspão
de raspãoPonho a girar
Cantos que ninguém encerra
De par em par
Abro as janelas para a terra
Tenho um quarto na fome espetado
Só suspenso por água de um lado
E de outro a cair
a cair
no alçapão
no alçapãoFarto de voar
Pouso as palavras no chão
Entro no mar
Sinto o sal de mão em mão
Tenho um barco na vida espetado
Só suspenso por fios dum lado
E do outro a cair
a cair
no arpão
no arpão
Passagens sobre Fome
360 resultadosComo é que eu faço por estar bem disposto, encontrando-me na verdade tão triste e miserável como vocês todos? Há várias técnicas. A mais importante é a técnica do «proporcionamento». Consiste em atribuir a um dado problema pessoal a proporção que tem no mundo. Há tanta gente a sofrer de verdade, a morrer, de fome, de doenças, de terramotos, que o nosso sofrimento, quando é publicamente exibido, é pequenino e obsceno.
Ignoto Deo
Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.Chamar-Te amante ou pai… grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja…
– Tu é que não desistirás de mim!
Antes de dar ao povo sacerdotes, soldados e maestros, sería oportuno saber se ele não está morrendo de fome.
O que tem fome e te rouba O último pedaço de pão, chama-o teu inimigo Mas não saltas ao pescoço Do teu ladrão que nunca teve fome.
Ninguém está mais convencido do que eu de que todos os homens são iguais. Mas, com esta máxima, corre-se o risco de morrer de fome, dado que não se trabalhe.
A Fome E O Amor
A um monstro
Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,
Receando outras mandíbulas a esbangem,
Os dentes antropófagos que rangem,
Antes da refeição sanguinolenta!Amor! E a satiríasis sedenta,
Rugindo, enquanto as almas se confrangem,
Todas as danações sexuais que abrangem
A apolínica besta famulenta!Ambos assim, tragando a ambiência vasta,
No desembestamento que os arrasta,
Superexcitadíssimos, os doisRepresentam, no ardor dos seus assomos
A alegoria do que outrora fomos
E a imagem bronca do que inda hoje sois!
Dá a Surpresa de Ser
Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.Seus seios altos parecem
(Se ela tivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem Ter que haver madrugada.E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como ?
A fome é má cozinheira.
Poema da Eterna Presença
Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito!
Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote.O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim,
de mim, pobre de mim, que sou parte do todo.
E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas
porque eu não sou braço nem sou perna.Se eu tivesse a memória das pedras
que logo entram em queda assim que se largam no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz
que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram
continentes,
Quando se Deve Violar a Lei Moral
É legítima toda a violação da lei moral que é feita em obediência a uma lei moral superior. Não é desculpável roubar um pão por ter fome. É desculpável a um artista roubar dez contos para garantir por dois anos a sua vida e tranquilidade, desde que a sua obra tenda a um fim civilizacional; se é uma mera obra estética, não vale o argumento.
Quero a Fome de Calar-me
Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banqueteA única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedoQuero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. CercoOs sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncosAs mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadasCaem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança
A realidade não me surpreende. Mas não é verdade; de repente tenho uma tal fome de «coisa acontecer mesmo» que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego a viver da imaginação.
Se alguns jogadores vivem do que o jogo dá, quantos a morrer de fome por aí não há?
A Verdadeira Amizade
Na verdadeira amizade, em que sou experimentado, dou-me mais ao meu amigo que o puxo para mim. Não só prefiro fazer-lhe bem a que ele mo faça mas ainda que ele o faça a si próprio a que mo faça; faz-me ele, então, o maior bem possível quando a si o faz. E se a sua ausência lhe for quer prazenteira quer útil, torna-se-me ela bem mais agradável que a sua presença; e de resto não é propriamente ausência se há meios de comunicarmos um com o outro. Tirei outrora partido e proveito do nosso afastamento. Em nos separando, melhor e mais amplamente entrávamos em posse da vida: ele vivia, fruía e via para mim, e eu para ele, mais plenamente que se ele estivesse presente. Uma parte de cada um de nós permanecia desocupada quando estávamos juntos: fundíamo-nos num só. A separação espacial tornava mais rica a união das nossas vontades. A insaciável fome da presença física denuncia uma certa fraqueza na fruição mútua das almas.
A Noite de Pavese
Raras vezes me franquearam a porta
e me deixaram entrar. A febre
sitia-me a alma e quem me vê
assusta-se do aspecto do meu rosto,
esta barba por fazer onde um rouxinol
se esconde. E mais ainda assusta
a minha altura, este lugar de vertigem
e palavras poderosas, a presença
de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer,
o estremecimento que corre nos meus ombros.
Embora nada peça, sabem que sou um pedinte.
E quando entro nas casas os meus gestos
afeiçoam-se a alguma coisa enigmática
que contorna o pavor e o entrega
por não se saber que espécie de vida ou de morte
vem comigo. Obviamente, eu abençoo
quem me deixa entrar, dou a entender
que alguma coisa brilha nas minhas mãos
e posso matar a fome com uma ou outra palavra
próxima do amor, um dedo nos cabelos
de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa
em silêncio e em silêncio aceitei que me aguardassem
com as inefáveis sombras que vejo nos outros
e tento decifrar para meu contentamento.
Mandaram-me sentar e deram-me de beber.
Quem está com fome fica surdo até mesmo à voz de Deus.
O Seu Nome
I
Ella não sabe a luz suave e pura
Que derrama n’uma alma acostumada
A não vêr nunca a luz da madrugada
Vir raiando senão com amargura!Não sabe a avidez com que a procura
Ver esta vista, de chorar cançada,
A ella… unica nuvem prateada,
Unica estrella d’esta noite escura!E mil annos que leve a Providencia
A dar-me este degredo por cumprido,
Por acabada já tão longa ausencia,Ainda n’esse instante appetecido
Será meu pensamento essa existencia…
E o seu nome, o meu ultimo gemidoII
Oh! o seu nome
Como eu o digo
E me consola!
Nem uma esmola
Dada ao mendigo
Morto de fome!N’um mar de dôres
A mãe que afaga
Fiel retrato
De amante ingrato,
Unica paga
Dos seus amores…Que rota e nua,
Tremulos passos,
Só mostra á gente
A innocente
Que traz nos braços
De rua em rua;Visto que o laço
Que a prende á vida
E só aquella
Candida estrella
Que achou cahida
No seu regaço;
10
A nuvem anuncia a secura das casas.
Um homem desloca-se devagar,
atravessa uma plantação de café em
silêncio, como as aves da noite. A sua fome
é igual à dos pássaros que reflectem no espelho
uma máscara de dor. Quando o homem desperta
dessa travessia apenas encontra um rolo de tabaco
velho e um machado quebrado em cima de uma
mesa. E não volta nunca mais a esse lugar.
Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições.