O Verdadeiro Ócio
A verdadeira riqueza é apenas a riqueza interior da alma, tudo o resto traz mais problemas do que vantagens (Luciano). Alguém assim rico interiormente de nada precisa do mundo exterior a não ser um presente negativo, a saber, o ócio, para poder cultivar e desenvolver as suas capacidades espirituais e fruir a sua riqueza interior. Portanto, requer propriamente apenas a permissão para ser ele mesmo durante toda a sua vida, a cada dia e a cada hora. Se alguém estiver destinado a imprimir, em toda a raça humana, o traço do seu espírito, haverá para ele apenas uma felicidade e infelicidade, ou seja, a de poder aperfeiçoar as suas disposições e completar as suas obras – ou disso ser impedido. O resto é-lhe insignificante. Sendo assim, vemos os grandes espíritos de todos os tempos atribuírem o valor supremo ao ócio. Pois este vale tanto quanto o homem. A felicidade parece residir no ócio, diz Aristóteles, e Diógenes Laércio relata que Sócrates louva o ócio como a mais bela posse.
Também corresponde a isso o facto de Aristóteles declarar a vida filosófica como a mais feliz. De modo semelhante, diz na Política: “Poder exercer livremente as próprias aptidões, sejam elas quais forem,
Textos sobre Sofrimento
129 resultadosA Ira
O que se irrita justificadamente nas situações em que se deve irritar ou com as pessoas com as quais se deve irritar, e ainda da maneira como deve ser, quando deve ser e durante o tempo em que deve ser, é geralmente louvado. Quem assim for é gentil, se é que a gentileza é uma disposição louvada. Porque o gentil quer permanecer imperturbável e não quer ser levado pela emoção, e apenas o sentido orientador lhe poderá prescrever as situações em que deve irritar-se e durante quanto tempo. Ou seja, o gentil parece pecar mais por defeito, porque não é do tipo vingativo mas mais do género que perdoa.
O defeito, seja uma certa fleuma seja o que for, é repreendido. Os que não se irritam quando têm motivo parecem parvos, o mesmo quando não se irritam de modo correcto, nem quando devem, nem com aqueles que devem. Parece até que não sentem a injúria ou não sofrem com ela. Mas se não se irritarem não conseguem defender-se, e aguentar um insulto ou tolerar os insultos feitos a terceiros é uma característica de subserviência.
Há excessos a respeito de todos os elementos circunstanciais envolvidos num acesso de ira (seja por se dirigir contra as pessoas indevidas,
Reagir à Saudade e à Tristeza
A maneira de reagir à saudade e à tristeza é ter um coração bom e uma cabeça viva. A saudade e a tristeza não são doenças, ou lapsos, ou intervalos, como se diz nos países do Norte. São verdades, condições, coisas do dia a dia, parecidas com apertar os atacadores dos sapatos. É banalizando-as que as acompanhamos. Um sofrimento não anula outro. Mas acompanha-o. Para isto é preciso inteligência e bondade.
Aquilo que resta são as pequenas alegrias. No contexto de tamanha tristeza e tanta verdade tornam-se grandes, por serem as únicas que há. Não falo nas alegrias que passam, como passam quase todas as paixões.
Falo das alegrias que se tornam rotinas, com que se conta: comprar revistas, jantar ao balcão, dormir junto do mar, dizer disparates, beber de mais, rir. Coisas assim. São essas coisas — entre as quais o amor — que não se podem deitar fora sem, pelo menos, morrer primeiro.
Felicidade Solitária
A solidão concede ao homem intelectualmente superior uma vantagem dupla: primeiro, a de estar só consigo mesmo; segundo, a de não estar com os outros. Esta última será altamente apreciada se pensarmos em quanta coerção, quantos estragos e até mesmo quanto perigo toda a convivência social traz consigo. «Todo o nosso mal provém de não podermos estar a sós», diz La Bruyère. A sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas e perversas, pois põe-nos em contacto com seres cuja maioria é moralmente ruim e intelectualmente obtusa ou invertida. O insociável é alguém que não precisa deles.
Desse modo, ter em si mesmo o bastante para não precisar da sociedade já é uma grande felicidade, porque quase todo o sofrimento provém justamente da sociedade, e a tranquilidade espiritual, que, depois da saúde, constitui o elemento mais essencial da nossa felicidade, é ameaçada por ela e, portanto, não pode subsistir sem uma dose significativa de solidão. Os filósofos cínicos renunciavam a toda a posse para usufruir a felicidade conferida pela tranquilidade intelectual. Quem renunciar à sociedade com a mesma intenção terá escolhido o mais sábio dos caminhos.
A Chama da Vida e o Fogo das Paixões
Nem sempre estar apaixonado é bom. A maior parte das paixões tomam conta da vontade e assumem o controlo do sentir e do pensar. Prometem a maior das libertações, mas escravizam quem desiste de si mesmo e a elas se submete.
A paixão é sofrimento, um furor que é o oposto da paz e do contentamento. Um vazio fulminante capaz das maiores acrobacias para se satisfazer. Mas que, como nunca se sacia, acaba por se consumir, por se destruir a si mesmo. Para ter paz precisamos de fazer esta guerra, na conquista do mais exigente de todos os equilíbrios: entre a monotonia de nada arriscar e a imprudência de entregar tudo sem uma vontade própria profunda. É essencial que saibamos desafiarmo-nos, por vezes, a um profundo desequilíbrio momentâneo. Afinal, quem nunca ousa está perdido, para sempre.
Há boas paixões. São as que trabalham como um fermento. De forma pacata, pacífica e paciente. Animam, mas não dominam. Orientam, mas não decidem. Iluminam, mas não cegam.Quase ninguém faz ideia da capacidade que cada um de nós tem para suportar e vencer grandes sofrimentos…
Por paixões comuns, há quem perca a cabeça, o coração e a alma.
Crónica de Natal
Todos os anos, por esta altura, quando me pedem que escreva alguma coisa sobre o Natal, reajo de mau modo. «Outra vez, uma história de Natal! Que chatice!» — digo. As pessoas ficam muito chocadas quando eu falo assim. Acham que abuso dos direitos que me são conferidos. Os meus direitos são falar bem, assim como para outros não falar mal. Uma vez, em Paris, um chauffeur de táxi, desses que se fazem castiços e dizem palavrões para corresponder à fama que têm, aborreceu-me tanto que lhe respondi com palavrões. Ditos em francês, a mim não me impressionavam, mas ele levou muito a mal e ficou amuado. Como se eu pisasse um terreno que não era o meu e cometesse um abuso. Ele era malcriado mas eu – eu era injusta. Cada situação tem a sua justiça própria, é isto é duma complexidade que o código civil não alcança.
Mas dizia eu: «Outra vez o Natal, e toda essa boa vontade de encomenda!» Ponho-me a percorrer as imagens que são de praxe, anjos trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa. Pobres e explorados, mas, entretanto, não excluídos do trato social através dos seus conflitos próprios,
Nós é Que Não Estamos Prontos
Nós é que não estamos prontos. Os objectos da nossa felicidade existem há dias, anos, talvez séculos; esperam que a luz se faça em nossos olhos para os vermos, e que o vigor chegue aos nossos braços para os agarrarmos. Eles esperam e espantam-se de há tanto tempo ali estarem inúteis. Sofremos, sofremos de cada vez que duvidamos de alguém ou de qualquer coisa, mas o nosso sofrimento transforma-se em alegria logo que apreendemos, nessa pessoa ou nessa coisa, a beleza imortal que nos fazia amá-la.
Desarmar e Esgotar o Sofrimento
A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida. A primeira diz à segunda: «Não me levas à certa; sei como te comportas, sigo-te e prevejo-te, gozo até ao ver-te agir, e roubo-te o segredo ao recriar-te em hábeis construções que travam o teu fluxo.» À parte este jogo, a outra defesa contra as coisas é o silêncio em que nos recolhemos antes de dar o salto. Mas é preciso que sejamos nós a escolhê-lo, e não deixar que no-lo imponham. Nem mesmo a morte. Escolhermos um mal é a única defesa contra esse mal. Isto significa aceitar o sofrimento. Não resignação, mas força. Digerir o mal de uma só vez. Têm vantagem os que, por índole, sabem sofrer de um modo impetuoso e total: assim se desarma o sofrimento e o transformamos em criação, escolha, resignação. Justificação do suicídio.
Aqui não há lugar para a Caridade.
Tremo Quando te Escrevo
Meu amor adorado: a tua querida cartinha ao chegar-me hoje às mãos veio dar-me o primeiro momento de alegria desde que partiste. O que eu sinto corresponde exactamente – ai de mim – aos sentimentos que expressas, mas é-me muito difícil responder na tua bela língua a essas doces expressões, que merecem uma resposta mais em actos do que em palavras. Espero, no entanto, que o teu coração seja capaz de sugerir tudo o que o meu gostaria de te dizer. Talvez que se te amasse menos não me custasse tanto exprimir o meu pensamento, pois tenho de vencer a dupla dificuldade de expor um sofrimento insuportável numa língua estranha. Desculpa os meus erros. Quanto mais bárbaro for o meu estilo, mais se assemelhará ao meu Destino longe de ti. Tu, o meu único e derradeiro amor – tu, minha única esperança – tu, que já me habituara a considerar só minha – partiste e eu fiquei sozinho e desesperado. Eis a nossa história em poucas palavras. É esta uma provação que suportaremos como outras suportámos, porque o amor nunca é feliz, mas devemos, tu e eu, sofrer mais ainda, pois tanto a tua situação como a minha são igualmente extraordinárias.
A Busca da Felicidade ou do Sofrimento
O homem recusa o mundo tal como ele é, sem aceitar o eximir-se a esse mesmo mundo. Efectivamente os homens gostam do mundo e, na sua imensa maioria, não querem abandoná-lo. Longe de quererem esquecê-lo, sofrem, sempre, pelo contrário, por não poderem possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo que são, exilados na sua própria pátria. Excepto nos momentos fulgurantes da plenitude, toda a realidade é para eles imperfeita. Os seus actos escapam-lhes noutros actos; voltam a julgá-los assumindo feições inesperadas; fogem, como a água de Tântalo, para um estuário ainda desconhecido. Conhecer o estuário, dominar o curso do rio, possuir enfim a vida como destino, eis a sua verdadeira nostalgia, no ponto mais fechado da sua pátria. Mas essa visão que, ao menos no conhecimento, finalmente os reconciliaria consigo próprios, não pode surgir; se tal acontecer, será nesse momento fugitivo que é a morte; tudo nela termina. Para se ser uma vez no mundo, é preciso deixar de ser para sempre.
Neste ponto nasce essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Apercebendo-se exteriormente dessas existências, emprestam-lhes uma coerência e uma unidade que elas não podem ter, na verdade, mas que ao observador parecem evidentes. Este não vê mais que a linha mais elevada dessas vidas,
Como Lidar com as Perturbações
Não pretendem os estóicos que a alma do seu sábio possa resistir às primeiras visões e fantasias que lhe sobrevêm; antes, como a uma sujeição natural, consentem que ele ceda ao grande barulho do céu ou de um desabamento, por exemplo, até à palidez e à contracção. Assim também nas outras paixões (impressões penosas), contanto que o seu julgamento permaneça salvo e íntegro e que a disposição do seu raciocínio não sofra dano nem qualquer alteração, e que ele não dê a menor aquiescência ao seu terror e sofrimento.
Para aquele que não é sábio acontece o mesmo na primeira parte, mas coisa muito diferente na segunda; pois nele a impressão das paixões não permanece superficial, mas vai penetrando até à sede da razão, infectando-a e corrompendo-a. Ele julga segundo as paixões e a elas se conforma. Vede muito eloquente e claramente o estado do sábio estóico: Inutilmente as suas lágrimas rolam: a sua alma é inflexível (Virgílio). O sábio peripatético não se isenta das perturbações, e sim modera-as.
Em Louvor das Crianças
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que,
Simplicidade Extrema
Põe de lado os estudos e não conhecerás o sofrimento. Põe de lado a erudição e afasta a sabedoria e o povo será cem vezes mais beneficiado. Põe de lado a benevolência e afasta a rectidão e o povo te pagará com dever filial e amor fraternal. Põe de lado o artifício e afasta o lucro e não haverá mais bandoleiros e ladrões. Mantém-te na simplicidade, restringe o egoísmo e refreia os desejos.
Se Pudesses Estar Comigo Vinte e Quatro horas do Dia
Se pudesses estar comigo durante as vinte e quatro horas do dia, observar cada gesto meu, dormir comigo, comer comigo, trabalhar comigo, tudo isto não poderia ter lugar. Quando me vejo afastado de ti, penso em ti constantemente e isso dá cor a tudo o que eu diga ou faça. Se soubesses o quão fiel te sou! Não apenas fisicamente, mas mentalmente, moralmente, espiritualmente. Aqui não há qualquer tentação para mim, absolutamente nenhuma. Estou imune a Nova Iorque, aos meus velhos amigos, ao passado, a tudo. Pela primeira vez na minha vida, estou completamente centrado em outro ser… Em ti. Sinto-me capaz de dar tudo, sem ter medo de ficar exaurido ou de me ver perdido. Quando ontem escrevi no meu artigo que «se eu nunca tivesse ido para a Europa…», não era a Europa que tinha em mente, mas sim tu.
Mas não posso dizer isso ao mundo num artigo. Tu és a Europa. Pegaste em mim, um homem despedaçado, e tornaste-me completo. E não hei-de desintegrar-me — não existe o menor perigo disso. Mas agora vejo-me mais sensível, mais receptivo a qualquer sinal de perigo. Se te persigo loucamente, se te imploro para ouvires, se fico à tua porta e espero por ti,
As Saudades que Sinto de Ti
Meu Bebé, meu Bebezinho querido:
Sem saber quando te entregarei esta carta, estou escrevendo em casa, hoje, domingo, depois de acabar de arrumar as coisas para a mudança de amanhã de manhã. Estou outra vez mal da garganta; está um dia de chuva; estou longe de ti — e é isto tudo o que tenho para me entreter hoje, com a perspectiva da maçada da mudança amanhã, com chuva talvez e comigo doente, para uma casa onde não está absolutamente ninguém. Naturalmente (a não ser que esteja já inteiramente bom e arranje as coisas de qualquer modo, o que faço é ir pedir guarida cá na Baixa ao Marianno Sant’Anna, que, além de ma dar de bom grado, me trata da garganta com competência, como fez no dia 19 deste mês quando eu tive a outra angina.
Não imaginas as saudades de ti que sinto nestas ocasiões de doença, de abatimento e de tristeza. O outro dia, quando falei contigo a propósito de eu estar doente, pareceu-me (e creio que com razão) que o assunto te aborrecia, que pouco te importavas com isso. Eu compreendo bem que, estando tu de saúde, pouco te rales com o que os outros sofrem,
As Pessoas Riam-se de Mim
A minha susceptibilidade a certo tipo de sustos (medo) era grande. Na rua, um homem caminhando na minha direcção, isto é, na direcção contrária, tirou da algibeira um lenço à minha frente; comecei de imediato a pensar, inconscientemente, acho, que estava a tirar uma arma ou um revólver.
A minha vista curta — nem sempre, mas excessivamente no que respeita aos traços das pessoas, aos gestos — afectava o meu cérebro desequilibrado. A minha imaginação interpretava mal o carácter dos seus olhares. Distorcia, não sabia explicar porquê, a intenção e o significado dos seus gestos. O meu próprio sentido de audição era débil; aplicava a mim próprio, retorcendo-as, as palavras que captava. Via em cada palavra um termo destinado a ofender-me, em cada frase, mal apanhada, a sombra e o vislumbre de um insulto.
As pessoas na rua riam-se: riam-se de mim. A minha vista débil não me deixava destruir esta ilusão. Não me atrevia a pôr os óculos que tinha no bolso, pois temia que as minhas desconfianças se revelassem fundadas.
Ansiava por ter uma grande auto-estima, para que a minha pessoa me fizesse esquecer de mim próprio. Desejava, oh, como desejava! — o impulso de me dedicar aos outros para que eles me fizessem esquecer de mim.
Parar de Pensar
O maior obstáculo à experimentação da realidade da ligação do leitor é a sua identificação com a mente, que faz com que o pensamento se torne compulsivo. Não ser capaz de parar de pensar é um padecimento terrível, porém não nos apercebemos deste facto porque quase toda a gente sofre dessa mesma maleita, sendo por isso considerado normal. Este ruído mental incessante impede o leitor de encontrar esse reino de calma interior que é inseparável do Ser. Gera ainda um eu falso engendrado pela mente que lança uma sombra de medo e sofrimento.
A identificação do leitor com a sua mente cria uma divisória opaca de conceitos, rótulos, imagens, palavras, juízos e definições, que bloqueia todo o relacionamento verdadeiro. Interpõe-se entre o próprio leitor, entre o leitor e o próximo, entre o leitor e a sua natureza, entre o leitor e Deus. É esta divisória de pensamento que gera a ilusão de afastamento, a ilusão de que há o leitor e um «outro» completamente distinto. Nessa altura, o leitor esquece o facto essencial de que, sob o nível da aparência física e das formas separadas, o leitor é uno com tudo o que existe.
A mente é um instrumento maravilhoso se usado adequadamente.
O Segredo dos Dias
Quando há muito para fazer, que é sempre, o melhor é fazer como se nada houvesse para fazer e deixar tudo para o pouco tempo – que infelizmente tem de ser medido – que resta para fazê-lo.
Nos dias de maior trabalho, permita-se o maior luxo. Não depois, mas antes. Ou melhor: antes para quem sente que roubou um pecado e tem de pagá-lo e depois para quem sente que merece uma recompensa por ter trabalhado tanto.Os seres humanos dividem-se entre os castigadores e os recompensadores. Talvez os primeiros sejam mais judeus e católicos e os segundos mais islâmicos e protestantes.
Para os castigadores o trabalho é o preço que se paga pelo prazer, pelo adiamento, pelo facto de não ter investido o tempo bastante para tentar urdir um resultado perfeito.
Para os recompensadores primeiro trabalha-se e depois celebra-se o ter trabalhado.Só agora me ocorre, tarde na vida, que ambas as atitudes são oprimentes, tornando-nos em porquinhos-da-índia que comem conforme põem a roda que está na jaula em movimento.
É um erro equiparar o trabalho ao prazer, seja anterior ou posterior. O trabalho é sempre um sofrimento, um esforço, uma coisa que,
São as Pessoas como Tu
São as pessoas como tu que fazem com que o nada queira dizer-nos algo, as coisas vulgares se tornem coisas importantes e as preocupações maiores sejam de facto mais pequenas. São as pessoas como tu que dão outra dimensão aos dias, transformando a chuva em delirante orvalho e fazendo do inverno uma estação de rosas rubras.
As pessoas como tu possuem não uma, mas todas as vidas. Pessoas que amam e se entregam porque amar é também partilhar as mãos e o corpo. Pessoas que nos escutam e nos beijam e sabem transformar o cansaço numa esperança aliciante, tocando-nos o rosto com dedos de água pura, soltando-nos os cabelos com a leveza do pássaro ou a firmeza da flecha. São as pessoas como tu que nos respiram e nos fazem inspirar com elas o azul que há no dorso das manhãs, e nos estendem os braços e nos apertam até sentirmos o coração transformar o peito numa música infinita. São as pessoas como tu que não nos pedem nada mas têm sempre tudo para dar, e que fazem de nós nem ícaros nem prisioneiros, mas homens e mulheres com a estatura da vida, capazes da beleza e da justiça,
A Morte que Trazemos no Coração
É no coração que morremos. É aí que a morte habita.
Nem sempre nos damos conta que a carregamos connosco, mas, desde que somos vida, ela segue-nos de perto. Enquanto não somos tomados pela nossa, vamos assistindo e sentindo, em ritmo crescente ao longo da vida, às mortes de quem nos é querido. A morte de um amigo é como uma amputação: perdemos uma parte de nós; uma fonte de amor; alguém que dava sentido à nossa existência… porque despertava o amor em nós.
Mas não há sabedoria alguma, cultura ou religião, que não parta do princípio de que a realidade é composta por dois mundos: um, a que temos acesso direto e, outro, que não passa pelos sentidos, a ele se chega através do coração. Contudo, o visível e o invisível misturam-se de forma misteriosa, ao ponto de se confundirem e, como alguns chegam a compreender, não serem já dois mundos, mas um só.
Só as pessoas que amamos morrem. Só a sua morte é absoluta separação. Os estranhos, com vidas com as quais não nos cruzamos, não morrem, porque, para nós, de facto, não chegam sequer a ser.Só as pessoas que amamos não morrem.