Os Hábitos Embutidos
Já me não entendo com essa gente dos comboios suburbanos; esses homens que homens se julgam e que, no entanto, como as formigas, estão reduzidos, por uma pressão que não sentem, aos hábitos que lhes criam. Quando ociosos, em que ocupam eles os seus absurdos e insignificantes domingos?
Certa vez, na Rússia, ouvi tocar Mozart numa fábrica. Escrevi a esse respeito. Recebi duzentas cartas insultuosas. Não quero mal aos que preferem um reles café-concerto. Nenhuma outra harmonia eles conhecem. Mas abomino o dono do café-concerto. Não gosto que degradem os homens.
Passagens sobre Formigas
49 resultadosSete Haicais – um Poema
Este vale canta
– um pássaro fez morada
em sua garganta.O inverno me achou
lavrando a terra. Havia paz
no canto das pás.Botas de soldado
frente ao mar. – Vindes matar
até as gaivotas?Partes para a guerra.
Sim, nada digas. Ouçamos
o rio de formigas.A ideia da morte
vem-me ao colo e pede afagos
como um gato (abstracto).Ah! amigo, amigo
– além da morte, que posso
repartir contigo?Porque tudo já
foi dito, destravo a língua
no vazio, aos gritos!
Por mais que a alma lide, não rompe a sua solidão, e caminha com ela, como formiga num deserto perdido.
A cigarra canta o anúncio de sua morte – formigas na contra-dança.
Este Livro Podia Acabar Aqui
Este livro podia acabar aqui. Sempre gostei de enredos circulares. E a forma que os escritores, pessoas do tamanho das outras, têm para sugerir eternidade. Se acaba conforme começa é porque não acaba nunca. Mas tu, eu, os Flauberts, os Joyces, os Dostoievskis sabemos que, para nós, acaba. Com um ligeiro desvio, os círculos transfor-mam-se em espirais e, depois, basta um ponto como este: . O bico de uma caneta espetada no papel. Um gesto a acertar na tecla entre , e -. Um movimento sobre um quadradinho de plástico. Isto: . Repara como é pequeno, insuficiente para espreitarmos através dele, floco de cinza a planar, resto de formiga esmagada. Se o pudéssemos segurar entre os dedos, não seríamos capazes de senti-lo, grão de areia. Mas tu ainda estás aí, olá, eu ainda estou aqui e não poderia ir-me embora sem te agradecer. Aí e aqui ainda é o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objectos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. Até lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relógios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, este tempo encadernado. As tuas mãos seguram este livro e, no entanto,
A formiga sabe que folha come.
Conselho De Amigo
Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro,
Gosto da tua frívola cantiga,
Mas vou dar-te um conselho, rapariga:
Trata de abastecer o teu celeiro.Trabalha, segue o exemplo da formiga,
Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro,
E tu, não tendo um pouso hospitaleiro,
Pedirás… e é bem triste ser mendiga!E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava
(Quem dá conselhos sempre se consome…)
Continuava cantando… continuava…Parece que no canto ela dizia:
– Se eu deixar de cantar morro de fome…
Que a cantiga é o meu pão de cada dia.
Uma víbora envenena um homem, mas um homem sozinho arrasa uma capital. Os grandes monstros não chegam verdadeiramente na época secundária; aparecem na última, com o homem. Ao pé de um Napoleão, um megalossauro é uma formiga.
A Imaginação é a Base do Homem
De tal modo a imaginação é a base do homem — Joana de novo — que todo o mundo que ele tem construído encontra sua justificativa na beleza da criação e não na sua utilidade, não em ser o resultado de um plano de fins adequados às necessidades. Por isso é que vemos multiplicarem-se os remédios destinados a unir o homem às ideias e instituições existentes — a educação, por exemplo, tão difícil — e vemo-lo continuar sempre fora do mundo que ele construiu. O homem levanta casas para olhar e não para nelas morar. Porque tudo segue o caminho da inspiração. O determinismo não é um determinismo de fins, mas um estreito determinismo de causas. Brincar, inventar, seguir a formiga até seu formigueiro, misturar água com cal para ver o resultado, eis o que se faz quando se é pequeno e quando se é grande. É erro considerar que chegamos a um alto grau de pragmatismo e materialismo. Na verdade o pragmatismo — o plano orientado para um dado fim real — seria a compreensão, a estabilidade, a felicidade, a maior vitória de adaptação que o homem conseguisse. No entanto fazer as coisas «para quê» parece-me, perante a realidade,
Chamam crime matar um homem e não matar uma formiga. E, no entanto, a alma é uma só – Levantem-se, olhem o homem de cima, e ele lhes perecerá uma formiga. O que significa, então, matá-lo?
Ninguém se contenta com a estatura que Deus lhe deu, e não há homem tão pigmeu ou tão formiga, que não aspire a ser gigante.
Todos nós nos preparamos para matar dragões e terminamos sendo devorados pelas formigas dos detalhes, às quais nunca prestamos atenção.
Minuciosa formiga
Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.Assim devera eu ser
se não fora não querer.
Jardim da minha amiga todo mundo feliz até a formiga
Conjugação
Para o A. Cruzeiro Seixas
A construção dos poemas é uma vela aberta ao meio
e coberta de bolor
é a suspensão momentânea dum arrepio num dente
fino
Como Uma AgulhaA construção dos poemas
A CONS
TRU
ÇÃO DOS
POEMASé como matar muitas pulgas com unhas de oiro azul
é como amar formigas brancas obsessivamente junto
ao peito
olhar uma paisagem em frente e ver um abismo
ver o abismo e sentir uma pedrada nas costas
sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repenteNUM TÚMULO EXAUSTIVO.
O Homem Corrige Deus
Nós encontramos o soldado em várias espécies inferiores. A formiga tem exércitos e creio que polícia civil. Qualquer obscuro passarinho é um autêntico Bleriot. Não há industrial alemão que se aproxime da abelha. O canto do galo e os versos da Ilíada. João de Deus e o rouxinol, o castor e o arquitecto, a sub-marinha e os tubarões, representam cousas e criaturas que se confundem…
Mas o Filósofo revela-se apenas no homem. A Filosofia é o sinal luminoso que o destaca da mesquinha escuridade ambiente… Só o homem é susceptível de magicar, de refazer a Criação à sua imagem… O homem corrige Deus.
Retrocesso Civilizacional
São talvez as prioridades dos nossos tempos que acarretam um retrocesso e uma eventual depreciação da vida contemplativa. Mas há que confessar que a nossa época é pobre em grandes moralistas, que Pascal, Epicteto, Séneca, Plutarco pouco são lidos ainda, que o trabalho e o esforço – outrora, no séquito da grande deusa Saúde – parecem, por vezes, grassar como uma doença. Porque faltam tempo para pensar e sossego no pensar, já não se examina as opiniões diferentes: a gente contenta-se em odiá-las. Dada a enorme aceleração da vida, o espírito e o olhar são acostumados a ver e a julgar parcial ou erradamente, e toda a gente se assemelha aos viajantes que ficam a conhecer um país e um povo, vendo-os do caminho-de-ferro.
Uma atitude independente e cautelosa em matéria de conhecimento é menosprezada quase como uma espécie de tolice, o espírito livre é difamado, nomeadamente, por eruditos que, na sua arte de observar as coisas, sentem a falta da minúcia e do zelo de formigas que lhes são próprios, e bem gostariam de bani-lo para um canto isolado da ciência: quando ele tem a missão, completamente diferente e superior, de comandar, a partir de uma posição solitária,
Não Sejamos Inteiros numa Fé talvez sem Causa
Meu gesto que destrói
A mole das formigas,
Tomá-lo-ão elas por de um ser divino;
Mas eu não sou divino para mim.Assim talvez os deuses
Para si o não sejam,
E só de serem do que nós maiores
Tirem o serem deuses para nós.Seja qual for o certo,
Mesmo para com esses
Que cremos serem deuses, não sejamos
Inteiros numa fé talvez sem causa.
Poema da Voz que Escuta
Chamam-me lá em baixo.
São as coisas que não puderam decorar-me:
As que ficaram a mirar-me longamente
E não acreditaram;
As que sem coração, no relâmpago do grito,
Não puderam colher-me.
Chamam-me lá em baixo,
Quase ao nível do mar, quase à beira do mar,
Onde a multidão formiga
Sem saber nadar.
Chamam-me lá em baixo
Onde tudo é vigoroso e opaco pelo dia adiante
E transparente e desgraçado e vil
Quando a noite vem, criança distraída,
Que debilmente apaga os traços brancos
Deste quadro negro – a Vida.
Chamam-me lá em baixo:
Voz de coisas, voz de luta.
É uma voz que estala e mansamente cala
E me escuta.
Só o amor é capaz de criar nas sociedades humanas a ordem que o instinto estabeleceu há milhares de anos no mundo das formigas e das abelhas.