Este Livro Podia Acabar Aqui
Este livro podia acabar aqui. Sempre gostei de enredos circulares. E a forma que os escritores, pessoas do tamanho das outras, tĂŞm para sugerir eternidade. Se acaba conforme começa Ă© porque nĂŁo acaba nunca. Mas tu, eu, os Flauberts, os Joyces, os Dostoievskis sabemos que, para nĂłs, acaba. Com um ligeiro desvio, os cĂrculos transfor-mam-se em espirais e, depois, basta um ponto como este: . O bico de uma caneta espetada no papel. Um gesto a acertar na tecla entre , e -. Um movimento sobre um quadradinho de plástico. Isto: . Repara como Ă© pequeno, insuficiente para espreitarmos atravĂ©s dele, floco de cinza a planar, resto de formiga esmagada. Se o pudĂ©ssemos segurar entre os dedos, nĂŁo serĂamos capazes de senti-lo, grĂŁo de areia. Mas tu ainda estás aĂ, olá, eu ainda estou aqui e nĂŁo poderia ir-me embora sem te agradecer. AĂ e aqui ainda Ă© o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objectos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. AtĂ© lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relĂłgios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, este tempo encadernado. As tuas mĂŁos seguram este livro e, no entanto, nas tuas mĂŁos, Ă© manhĂŁ. Nas tuas mĂŁos, a minha mĂŁe, o IlĂdio e o Cosme estĂŁo no andar de cima, ouve-se os passos, as cadeiras a serem arrastadas. Nas tuas mĂŁos, a vila descansa e Paris Ă© tĂŁo longe. Ă€s vezes, penso em ti sem te dizer. Mesmo esses pensamentos invisĂveis estĂŁo agora nas tuas mĂŁos. Seguras o meu nome. Este livro que estás a ler e que estou a escrever, onde estamos, Ă© exactamente o mesmo que a minha mĂŁe me pousou nas mĂŁos, como na primeira frase. TambĂ©m esse livro era este. O inĂcio tambĂ©m Ă© agora. O amanhecer apenas se distingue do anoitecer por aquilo que o antecedeu e pela sucessĂŁo que lhe imaginamos, o antes e o depois. Agradeço-te por teres aceitado que este livro se transformasse em ti e pela generosidade de te teres transformado nele, agradeço-te pela claridade que entra por esta janela e por tudo aquilo que me constitui, agradeço-te por me teres deixado existir, agradeço-te por me teres trazido Ă Ăşltima página e por seguires comigo atĂ© Ă Ăşltima palavra. Sim, tu e eu sabemos, isto: . Insignificância, pedaço de nada, interior da letra Ăł. Mas isso será daqui a pouco. Por enquanto, aproveitemos, ainda estamos aqui.