Queixa das almas jovens censuradas
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corolaDão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idadeDão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocênciaDão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatroPenteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sósDão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medoTemos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombroDão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macacoDão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procuraDão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adianteDão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destinoDão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida,
Passagens sobre Calendário
27 resultadosO Tempo Passa? Não Passa
O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.
Lua Adversa
Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.E roda a melancolia
seu interminável fuso!Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…
O Calendário Ardente dos Teus Dias
o calendário ardente dos teus dias
a lista das tuas agoniascomo se atreve
como não ousa serenar
serenar-teno ímpeto fugidio e secreto
o sorriso
a alva gravidade do estilo
Começar um novo ano, para um cristão, não é só mudar o calendário ou adquirir uma nova agenda. O Ano Novo convida a parar um instante, a perceber a própria existência pessoal como um percurso de contínuo crescimento. Só se soubermos deter o frenesim e encontrar um breve espaço de reflexão, os votos não serão palavras vãs e os brindes não serão gestos efémeros sem significado.
A Memória da Leitura
Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuía de intensidade no céu azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que o que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora,
O Tempo
O tempo é a única prova segura de tudo. Não só é o crítico mais severo; é o crítico recto e preciso. Ninguém pode julgar do valor disto ou daquilo num momento, porque só o tempo o pode fazer. O tempo dar-lhe-á o valor que merece. (…) Nunca se deixe enganar pelo calendário. O ano só tem os dias que sabe empregar bem. Uma pessoa pode ter num ano o valor de uma semana, enquanto outra tira o valor de um ano inteiro em uma semana.
Este Livro Podia Acabar Aqui
Este livro podia acabar aqui. Sempre gostei de enredos circulares. E a forma que os escritores, pessoas do tamanho das outras, têm para sugerir eternidade. Se acaba conforme começa é porque não acaba nunca. Mas tu, eu, os Flauberts, os Joyces, os Dostoievskis sabemos que, para nós, acaba. Com um ligeiro desvio, os círculos transfor-mam-se em espirais e, depois, basta um ponto como este: . O bico de uma caneta espetada no papel. Um gesto a acertar na tecla entre , e -. Um movimento sobre um quadradinho de plástico. Isto: . Repara como é pequeno, insuficiente para espreitarmos através dele, floco de cinza a planar, resto de formiga esmagada. Se o pudéssemos segurar entre os dedos, não seríamos capazes de senti-lo, grão de areia. Mas tu ainda estás aí, olá, eu ainda estou aqui e não poderia ir-me embora sem te agradecer. Aí e aqui ainda é o mesmo lugar. Sinto-me grato por essa certeza simples. A paisagem, mundo de objectos, apenas ganhará realidade quando deixarmos estas palavras. Até lá, temos a cabeça submersa neste tempo sem relógios, sem dias de calendário, sem estações, sem idade, sem agosto, este tempo encadernado. As tuas mãos seguram este livro e, no entanto,
Passado não é Cronologia
O passado é um labirinto e estamos nele, um passado não tem cronologia senão para os outros, os que lhe são estranhos. Mas o nosso passado somos nós integrados nele ou ele em nós. Não há nele antes e depois, mas o mais perto e o mais longe. E o mais perto e o mais longe não se lê no calendário, mas dentro de nós.
O Natal é um tempo de benevolência, perdão, generosidade e alegria. A única época que conheço, no calendário do ano, em que homens e mulheres parecem, de comum acordo, abrir livremente seus corações.
Poema do Homem Novo
Niels Armstrong pôs os pés na Lua
e a Humanidade saudou nele
o Homem Novo.
No calendário da História sublinhou-se
com espesso traço o memorável feito.Tudo nele era novo.
Vestia quinze fatos sobrepostos.
Primeiro, sobre a pele, cobrindo-o de alto a baixo,
um colante poroso de rede tricotada
para ventilação e temperatura próprias.
Logo após, outros fatos, e outros e mais outros,
catorze, no total,
de película de nylon
e borracha sintética.
Envolvendo o conjunto, do tronco até aos pés,
na cabeça e nos braços,
confusíssima trama de canais
para circulação dos fluidos necessários,
da água e do oxigénio.A cobrir tudo, enfim, como um balão ao vento,
um envólucro soprado de tela de alumínio.
Capacete de rosca, de especial fibra de vidro,
auscultadores e microfones,
e, nas mãos penduradas, tentáculos programados,
luvas com luz nos dedos.Numa cama de rede, pendurada
da parede do módulo,
na majestade augusta do silêncio,
dormia o Homem Novo a caminho da Lua.
Cá de longe, na Terra, num borborinho ansioso,
Dias Inúteis
Ficarão perdidos os dias
que não tivemos juntos. Dias inúteis
encostados a paredes e muros envelhecidos.
Dias sem calendário,
horas evasivas e fugidas, desperdiçadas,
afundadas em rios sem margens nem pontes,noites, noites e mais noites deitadas fora
como casas desabitadas.
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.
Mentir-me não Adianta
Vieram hoje dizer-me
mentiras a meu respeito,
mas nunca podem esconder-me
o que lhes vai lá no peito.Só quero hoje a verdade,
mais nua que ave perdida…
Os sinos tangem-me a idade
na alta torre da vida.Mentiras, fora daqui!
Ide acampar noutra parte!
Existe um espelho que ri,
ao desnudar-vos com arte.Palavras, gestos, partissem,
morressem antes do dia!
Humildes, se diluíssem
na madrugada bem fria.Deixai-me as cordas do sino
de me sentir como sou.
Puxando-as, oiço o menino
que nas entranhas ficou.Idade! Já tenho tanta!
Nasci num dia riscado
do calendário do Tempo.
O meu destino é dobrado,
mentir-me não adianta!
Aos Vindouros, se os Houver…
Vós, que trabalhais só duas horas
a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras
na gandaia, pois tendes uma ética;que do amor sabeis o ponto e a vírgula
e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula,
jaculatórias fora, tarde ou cedo;computai, computai a nossa falha
sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha
a fazer passamanes com a história;que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.
Poema para Galileo
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
O Homem Irracional
Cubram-no de todos os bens terrenos, mergulhem-no na felicidade com a cabeça imersa de modo a só umas bolhas rebentarem à superfície; dêem-lhe uma prosperidade económica tal que não tenha mais nada que fazer senão dormir, comer doces e tratar da continuidade ininterrupta da história universal – então ele, o homem, mesmo assim, só por ingratidão, por maldade, far-vos-á uma pulhice qualquer. Arriscará até os doces e desejará propositadamente o mais prejudicial dos absurdos, o mais antieconómico disparate, unicamente para misturar com toda essa sensatez positiva o seu nocivo elemento fantástico. Desejará conservar precisamente os seus sonhos fantásticos, a sua estupidez mais ordinária, unicamente para confirmar a si mesmo (como se fosse assim tão indispensável) que as pessoas continuam a ser pessoas e não teclas de piano em que sejam as próprias leis da natureza a tocar, mas prometendo tocar a tal ponto que se tornará já impossível desejar qualquer coisa para além do calendário.
Mais ainda: mesmo que o homem se tornasse realmente uma tecla de piano, mesmo que tal facto lhe fosse provado por meio das ciências naturais e da matemática, não ganharia juízo, mas faria, de propósito, qualquer coisa contra, apenas por ingratidão; só para continuar na sua!
Natal
Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário…
E Deus não representou.
Bendito quem inventou o belo truque do calendário, pois o bom da segunda-feira, do dia 1º do mês e de cada ano novo é que nos dão a impressão de que a vida não continua, mas apenas recomeça…