A calma vence a fĂșria.
Passagens sobre FĂșria
83 resultadosO Cerimonial das MĂŁos
MĂŁe, onde foi que deixaste a outra metade,
a que anunciava o sol na turvação das noites,
a que iluminava a sombra no cerimonial das mĂŁos?
Em que cĂŽncavo de rochas buscava abrigo
essa outra metade que eu via projectada
para fora de mim como um sonho evadindo-se
do cĂrculo de medos em que a fĂșria se jogava?
Eu era gémeo de todos os assombros
e os meus segredos era com essa outra metade
que os partilhava Ă revelia das bocas
que em surdina me traçavam o destino.
Quanto de mim se perdia nessa metade
que me furtava o riso e me deixava a culpa,
que me feria o ventre e me fustigava a pele?
Quanto de mim me flagelava
sem que eu lhe conhecesse morada ou nome?
Mãe, eu pedia uma trégua ao vento
e um punhal Ă chuva e com ambos queria
separar de mim a metade incandescente
que Ă beira dos meus gestos
ganhava altura de nuvem e fulgor de estrela.
MĂŁe, eu vejo-me outro nesta cama
que guarda os instrumentos liquefeitos da insĂłnia
e sei que nĂŁo sou eu quem lĂĄ estĂĄ,
Sanhudo, InexorĂĄvel Despotismo
Sanhudo, inexorĂĄvel Despotismo
Monstro que em pranto, em sangue a fĂșria cevas,
Que em mil quadros horrĂficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do AteĂsmo:Assanhas o danado Fanatismo,
Porque te escore o trono onde te enlevas;
Por que o sol da Verdade envolva em trevas
E sepulte a RazĂŁo num denso abismo.Da sagrada Virtude o colo pisas,
E aos satĂ©lites vis da prepotĂȘncia
De crimes infernais o plano gizas,Mas, apesar da bĂĄrbara insolĂȘncia,
Reinas sĂł no ext’rior, nĂŁo tiranizas
Do livre coração a independĂȘncia.
Dentes
Os dentes, porque sĂŁo dentes,
iniciais. Na espuma,
porque nĂŁo sĂŁo saliva
estas ondas
pouco mordentes; este
sal que sobe quase
doce; donde?Numa espécie
de fogo: amor Ă© fogo
que arde sem se ver;
porque nĂŁo Ă©
de facto fogo este frio aceso;
da saliva Ă lava
passa pela espuma.SĂł os dentes.
Duros, ĂĄcidos, concentram-se
tacteando a pele,
tatuando signos sempre
moventes
de fĂșria. Mordida
a pele cintila; espelho
dos dentes, do seu esmalte voraz;
suavemente.
Em louvor do grande CamÔes
Sobre os contrĂĄrios o terror e a morte
Dardeje embora Aquiles denodado,
Ou no rĂĄpido carro ensanguentado
Leve arrastos sem vida o Teuco forte:Embora o bravo MacedĂłnio corte
Coa fulminante espada o nĂł fadado,
Que eu de mais nobre estĂmulo tocado,
Nem lhe amo a glória, nem lhe invejo a sorte:Invejo-te, CamÔes, o nome honroso;
Da mente criadora o sacro lume,
Que exprime as fĂșrias de Lieu raivoso:Os ais de InĂȘs, de VĂ©nus o queixume,
As pragas do gigante proceloso,
O cĂ©u de Amor, o inferno do CiĂșme.
Dança Do Ventre
Torva, febril, torcicolosamente,
Numa espiral de elétricos volteios,
Na cabeça, nos olhos e nos seios
FluĂam-lhe os venenos da serpente.Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
Que convulsĂ”es, que lĂșbricos anseios,
Quanta volĂșpia e quantos bamboleios,
Que brusco e horrĂvel sensualismo quente.O ventre, em pinchos, empinava todo
Como reptil abjecto sobre o lodo,
Espolinhando e retorcido em fĂșria.Era a dança macabra e multiforme
De um verme estranho, colossal, enorme,
Do demĂŽnio sangrento da luxĂșria!
De todas as doenças do espĂrito humano, a fĂșria de dominar Ă© a mais terrĂvel.
Afra
Ressurges dos mistĂ©rios da luxĂșria,
Afra, tentada pelos verdes pomos,
Entre os silfos magnéticos e os gnomos
Maravilhosos da paixĂŁo purpĂșrea.Carne explosiva em pĂłlvoras e fĂșria
De desejos pagĂŁos, por entre assomos
Da virgindade–casquinantes momos
Rindo da carne jĂĄ votada a incĂșria.Votada cedo ao lĂąnguido abandono,
Aos mĂłrbidos delĂquios como ao sono,
Do gozo haurindo os venenosos sucos.Sonho-te a deusa das lascivas pompas,
A proclamar, impĂĄvida, por trompas,
Amores mais estéreis que os eunucos!
O governo transfere para o povo toda sua fĂșria e sofrimento.
Julgar sem Ira
NĂŁo hĂĄ paixĂŁo que tanto abale a integridade dos julgamentos quanto a cĂłlera. NinguĂ©m hesitaria em punir de morte o juiz que, por cĂłlera, houvesse condenado o seu criminoso; por que serĂĄ mais permitido aos pais e aos professores açoitar as crianças e castigĂĄ-las estando encolerizados? Isso jĂĄ nĂŁo Ă© correcção: Ă© vingança. O castigo faz papel de remĂ©dio para as crianças; e tolerarĂamos um mĂ©dico que estivesse animado e encolerizado contra o seu paciente?
NĂłs mesmos, para agir bem, nĂŁo deverĂamos pĂŽr a mĂŁo nos nossos serviçais enquanto nos perdurar a cĂłlera. Enquanto o pulso nos bater e sentirmos emoção, adiemos o acerto; as coisas na verdade vĂŁo parecer-nos diferentes quando estivermos calmos e arrefecidos: agora Ă© a paixĂŁo que comanda, Ă© a paixĂŁo que fala, nĂŁo somos nĂłs. AtravĂ©s dela as faltas parecem-nos maiores, como os corpos no meio do nevoeiro. Quem tiver fome faça uso de alimento; mas quem quiser fazer uso do castigo nĂŁo deve sentir fome nem sede dele. E, alĂ©m disso, as puniçÔes que se fazem com ponderação e discernimento sĂŁo muito mais bem aceites e com melhor proveito por quem as recebe. De outra forma, ele nĂŁo considera que foi condenado justamente,
As FrĂĄgeis Hastes
NĂŁo voltarei Ă fonte dos teus flancos
ao fogo espesso do verĂŁo
a escorrer infatigĂĄvel
dos espelhos, nĂŁo voltarei.NĂŁo voltarei ao leito breve
onde quebrĂĄmos uma a uma
todas as frĂĄgeis
hastes do amor.Eis o outono: cresce a prumo.
Anoitecidas ĂĄguas
em febre em fĂșria em fogo
arrastam-me para o fundo.
Ode MarĂtima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhĂŁ de VerĂŁo,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nĂtido, clĂĄssico Ă sua maneira.
Deixa no ar distante atrĂĄs de si a orla vĂŁ do seu fumo.
Vem entrando, e a manhĂŁ entra com ele, e no rio,
Aqui, acolĂĄ, acorda a vida marĂtima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trĂĄs dos navios que estĂŁo no porto.
HĂĄ uma vaga brisa.
Mas a minh’alma estĂĄ com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele estĂĄ com a DistĂąncia, com a ManhĂŁ,
Com o sentido marĂtimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma nåusea,
Como um começar a enjoar, mas no espĂrito.Olho de longe o paquete, com uma grande independĂȘncia de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
NĂŁo deves resistir ao mal, pois o mal Ă© a âespada da falsidadeâ. Mesmo que a âespada da falsidadeâ seja brandida com fĂșria, ela se despedaçarĂĄ em contato com a Verdade.
Cantiga da velha mĂŁe e dos seus dois filhos
Ai o meu pobre filho, que rico que Ă©
ai o meu rico filho, que pobre que Ă©
Nascidos do mesmo ventre
Um vive de joelhos prĂł outro passar Ă frente
E esta velha mĂŁe para aqui jĂĄ no sol poenteUm dia hĂĄ muito tempo, vi-os partir
levando cada um do outro o porvir
Seguiram pela estrada fora
Um voltou-se para trĂĄs, disse adeus que me vou embora
Voltaremos trazendo connosco a vitĂłriaDe que vitĂłria falas, disse eu entĂŁo
Da que faz um escravo do teu irmĂŁo?
Ou duma outra que rebenta
como um rio de fĂșria no peito feito tormenta
quando nĂŁo hĂĄ nada a perder no que se tenta?Passaram muitos anos sem mais saber
nem por onde passavam, nem se por ter
criado os dois no mesmo chĂŁo
eram ainda irmĂŁos, partilhavam ainda o pĂŁo
E o silĂȘncio enchia de morte o meu coraçãoDepois vieram novas que o que vivia
da miséria do outro, se enriquecia
NĂŁo foi para isto que andei
dias que foram longos e noites que nĂŁo contei
a lutar pra ter a justiça como leiĂs vezes rogo pragas de os ver assim
Sinto assim uma faca dentro de mim
Sei que estou velha e doente
Mas para ver o mundo girar de modo diferente
Ainda sei gritar,
Soneto XVII
A Pero de Maris sobre o seu livro
Sentindo-se de força e vigor falta,
Mal a que o tempo enfim todos condena,
Renovar-se outra vez a Ăguia ordena,
Abre as asas ao Sol, e as nuvens salta.Depois que lĂĄ se vĂȘ soberba e alta,
Lança-se ao mar com fĂșria nĂŁo pequena,
E caindo-lhe a velha e antiga pena,
De nova glĂłria se reveste e esmalta.Mar sois Maris, a lĂngua lusitana
Ă esta Ăguia, que antiga se renova
E os ares sobre todas livre raia.Temo-lhe o caso de Ăcaro de ufana;
Mas se do Sol queimada em mar o prova,
SerĂĄ para que sempre nova saia.
Com FĂșria e Raiva
Com fĂșria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavrasPois Ă© preciso saber que a palavra Ă© sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pĂŽs sua alma confiadaDe longe muito longe desde o inĂcio
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a ĂĄgua
E tudo emergiu porque ele disseCom fĂșria e raiva acuso o demagogo
Que se promove Ă sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
A Ira nĂŁo Escolhe Idade nem Estatuto Social
A ira nĂŁo escolhe idade nem estatuto social. Algumas pessoas, graças Ă sua indigĂȘncia, nĂŁo conhecem a luxĂșria; outros, porque tĂȘm uma vida movimentada e errante, escapam Ă preguiça; aqueles que tĂȘm modos rudes e uma vida rĂșstica desconhecem as prisĂ”es, as fraudes e todos os males da cidade: mas ninguĂ©m estĂĄ livre da ira, tĂŁo poderosa entre os Gregos como entre os bĂĄrbaros, tĂŁo funesta entre aqueles que temem as leis como entre aqueles que se regem pela lei da força. Assim, se outras afecçÔes atacam os indivĂduos, a ira Ă© a Ășnica afecção que, por vezes, se apodera de um povo inteiro. Nunca um povo inteiro ardeu de amor por uma mulher, nem uma cidade inteira depositou toda a sua esperança no dinheiro e no lucro; a ambição apossa-se de indivĂduos, a imoderação nĂŁo Ă© um mal pĂșblico.
Por vezes, uma multidĂŁo inteira Ă© conduzida Ă ira: homens e mulheres, velhos e novos, os principais cidadĂŁos e o vulgo sĂŁo unĂąnimes, e toda a multidĂŁo agitada por algumas palavras sobrepĂ”e-se ao prĂłprio agitador: corre a pegar em armas e tochas e declara guerra ao seu vizinho e fĂĄ-la contra os seus concidadĂŁos; casas inteiras sĂŁo queimadas com toda a famĂlia e aquele cuja eloquĂȘncia lhe granjeara muitos benefĂcios Ă© eliminado pela ira que as suas palavras geraram;
Genérico
E tu, meu pai? Adivinho esses vidrilhos
das lĂĄgrimas quebrando
um a um na boca triste mas
por dentro, para que digamos
mais tarde, sem invenção escusada:
o pai nĂŁo chorou.Eu soube das tuas fĂșrias
mordendo-se em silĂȘncio,
ou de como te pÔes
Ă s vezes tĂŁo de cinza.
O barco, o barco. Ficaremos
ainda estes minutos quantos.
Do que quiseres. E como quiseres.
Fala. Mas nada de telegramas
para depois da barra
– posso nĂŁo os abrir,
juro que posso.
Se eu fosse um amigo, se estivesses
em frente dum copo.
Custava menos. Assim
deslizas a unha
pelo tecido da farda, inĂștil
dedo terno com os olhos longe.
O pai, que nĂŁo chorou, tremia
de modo imperceptĂvel.Lembro-me da bebedeira
em Alpedrinha, na estalagem,
com o LuĂs Melo
subitamente velho.
«Tramados, på, tramados.»
O carro falha, sĂŁo as velas
os platinados sujos
«a puta que os pariu» (LuĂs).Um Ășltimo aceno sĂł vinho
para estas adolescentes
ao balcĂŁo do bar e depois e depois?
Poema Cansado de Certos Momentos
Foi-se tudo
como areia fina escoada pelos dedos.
MĂŁe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do teu mundo de medos.
Meus braços, vĂȘ-os, estĂŁo gastos
de pedir luz
e de roubar distĂąncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvĂĄrio dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida,
dissipando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
ai, mĂŁe, sĂł um louco ou um Messias
estendendo a face de justopara os homens cuspirem o fel das veias,
sĂł um louco, ou um poeta ou um Cristo
poderĂĄ beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
MĂŁe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fĂșria dos rebanhos
pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e nĂŁo olhaste os pegos nem as cobras,
PrĂłlogo
Cavo a cova como um cavalo os cascos cava
se no cavĂĄ-lo invoca a fĂșria de ferir
E tanto mais se cava que a alma nĂŁo se lava
e as åguas jå me levam léguas a fingirCava costura cavo à cava enviesada
e o talhe tinge a sombra em descaĂda pena
Nessa escritura a sina foge desgarrada
e o corte torce a mĂŁo e a garra do poemaE dono nĂŁo sou mais senĂŁo o torto artĂfice
dessas linhas traçadas a dois e por um
E assim me assino esse uno e esse outro Majnun
que por louca paixĂŁo da noite Ă© seu partĂcipemesmo sem Laila veste a dor e se vislumbra
nos lobos do deserto donos da penumbra