Ode MarĂtima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhĂŁ de VerĂŁo,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nĂtido, clĂĄssico Ă sua maneira.
Deixa no ar distante atrĂĄs de si a orla vĂŁ do seu fumo.
Vem entrando, e a manhĂŁ entra com ele, e no rio,
Aqui, acolĂĄ, acorda a vida marĂtima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trĂĄs dos navios que estĂŁo no porto.
HĂĄ uma vaga brisa.
Mas a minh’alma estĂĄ com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele estĂĄ com a DistĂąncia, com a ManhĂŁ,
Com o sentido marĂtimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma nåusea,
Como um começar a enjoar, mas no espĂrito.Olho de longe o paquete, com uma grande independĂȘncia de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Passagens sobre FĂșria
83 resultadosNĂŁo deves resistir ao mal, pois o mal Ă© a âespada da falsidadeâ. Mesmo que a âespada da falsidadeâ seja brandida com fĂșria, ela se despedaçarĂĄ em contato com a Verdade.
Cantiga da velha mĂŁe e dos seus dois filhos
Ai o meu pobre filho, que rico que Ă©
ai o meu rico filho, que pobre que Ă©
Nascidos do mesmo ventre
Um vive de joelhos prĂł outro passar Ă frente
E esta velha mĂŁe para aqui jĂĄ no sol poenteUm dia hĂĄ muito tempo, vi-os partir
levando cada um do outro o porvir
Seguiram pela estrada fora
Um voltou-se para trĂĄs, disse adeus que me vou embora
Voltaremos trazendo connosco a vitĂłriaDe que vitĂłria falas, disse eu entĂŁo
Da que faz um escravo do teu irmĂŁo?
Ou duma outra que rebenta
como um rio de fĂșria no peito feito tormenta
quando nĂŁo hĂĄ nada a perder no que se tenta?Passaram muitos anos sem mais saber
nem por onde passavam, nem se por ter
criado os dois no mesmo chĂŁo
eram ainda irmĂŁos, partilhavam ainda o pĂŁo
E o silĂȘncio enchia de morte o meu coraçãoDepois vieram novas que o que vivia
da miséria do outro, se enriquecia
NĂŁo foi para isto que andei
dias que foram longos e noites que nĂŁo contei
a lutar pra ter a justiça como leiĂs vezes rogo pragas de os ver assim
Sinto assim uma faca dentro de mim
Sei que estou velha e doente
Mas para ver o mundo girar de modo diferente
Ainda sei gritar,
Soneto XVII
A Pero de Maris sobre o seu livro
Sentindo-se de força e vigor falta,
Mal a que o tempo enfim todos condena,
Renovar-se outra vez a Ăguia ordena,
Abre as asas ao Sol, e as nuvens salta.Depois que lĂĄ se vĂȘ soberba e alta,
Lança-se ao mar com fĂșria nĂŁo pequena,
E caindo-lhe a velha e antiga pena,
De nova glĂłria se reveste e esmalta.Mar sois Maris, a lĂngua lusitana
Ă esta Ăguia, que antiga se renova
E os ares sobre todas livre raia.Temo-lhe o caso de Ăcaro de ufana;
Mas se do Sol queimada em mar o prova,
SerĂĄ para que sempre nova saia.
Com FĂșria e Raiva
Com fĂșria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavrasPois Ă© preciso saber que a palavra Ă© sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pĂŽs sua alma confiadaDe longe muito longe desde o inĂcio
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a ĂĄgua
E tudo emergiu porque ele disseCom fĂșria e raiva acuso o demagogo
Que se promove Ă sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra
A Ira nĂŁo Escolhe Idade nem Estatuto Social
A ira nĂŁo escolhe idade nem estatuto social. Algumas pessoas, graças Ă sua indigĂȘncia, nĂŁo conhecem a luxĂșria; outros, porque tĂȘm uma vida movimentada e errante, escapam Ă preguiça; aqueles que tĂȘm modos rudes e uma vida rĂșstica desconhecem as prisĂ”es, as fraudes e todos os males da cidade: mas ninguĂ©m estĂĄ livre da ira, tĂŁo poderosa entre os Gregos como entre os bĂĄrbaros, tĂŁo funesta entre aqueles que temem as leis como entre aqueles que se regem pela lei da força. Assim, se outras afecçÔes atacam os indivĂduos, a ira Ă© a Ășnica afecção que, por vezes, se apodera de um povo inteiro. Nunca um povo inteiro ardeu de amor por uma mulher, nem uma cidade inteira depositou toda a sua esperança no dinheiro e no lucro; a ambição apossa-se de indivĂduos, a imoderação nĂŁo Ă© um mal pĂșblico.
Por vezes, uma multidĂŁo inteira Ă© conduzida Ă ira: homens e mulheres, velhos e novos, os principais cidadĂŁos e o vulgo sĂŁo unĂąnimes, e toda a multidĂŁo agitada por algumas palavras sobrepĂ”e-se ao prĂłprio agitador: corre a pegar em armas e tochas e declara guerra ao seu vizinho e fĂĄ-la contra os seus concidadĂŁos; casas inteiras sĂŁo queimadas com toda a famĂlia e aquele cuja eloquĂȘncia lhe granjeara muitos benefĂcios Ă© eliminado pela ira que as suas palavras geraram;
Genérico
E tu, meu pai? Adivinho esses vidrilhos
das lĂĄgrimas quebrando
um a um na boca triste mas
por dentro, para que digamos
mais tarde, sem invenção escusada:
o pai nĂŁo chorou.Eu soube das tuas fĂșrias
mordendo-se em silĂȘncio,
ou de como te pÔes
Ă s vezes tĂŁo de cinza.
O barco, o barco. Ficaremos
ainda estes minutos quantos.
Do que quiseres. E como quiseres.
Fala. Mas nada de telegramas
para depois da barra
– posso nĂŁo os abrir,
juro que posso.
Se eu fosse um amigo, se estivesses
em frente dum copo.
Custava menos. Assim
deslizas a unha
pelo tecido da farda, inĂștil
dedo terno com os olhos longe.
O pai, que nĂŁo chorou, tremia
de modo imperceptĂvel.Lembro-me da bebedeira
em Alpedrinha, na estalagem,
com o LuĂs Melo
subitamente velho.
«Tramados, på, tramados.»
O carro falha, sĂŁo as velas
os platinados sujos
«a puta que os pariu» (LuĂs).Um Ășltimo aceno sĂł vinho
para estas adolescentes
ao balcĂŁo do bar e depois e depois?
Poema Cansado de Certos Momentos
Foi-se tudo
como areia fina escoada pelos dedos.
MĂŁe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do teu mundo de medos.
Meus braços, vĂȘ-os, estĂŁo gastos
de pedir luz
e de roubar distĂąncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvĂĄrio dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida,
dissipando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
ai, mĂŁe, sĂł um louco ou um Messias
estendendo a face de justopara os homens cuspirem o fel das veias,
sĂł um louco, ou um poeta ou um Cristo
poderĂĄ beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
MĂŁe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fĂșria dos rebanhos
pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e nĂŁo olhaste os pegos nem as cobras,
PrĂłlogo
Cavo a cova como um cavalo os cascos cava
se no cavĂĄ-lo invoca a fĂșria de ferir
E tanto mais se cava que a alma nĂŁo se lava
e as åguas jå me levam léguas a fingirCava costura cavo à cava enviesada
e o talhe tinge a sombra em descaĂda pena
Nessa escritura a sina foge desgarrada
e o corte torce a mĂŁo e a garra do poemaE dono nĂŁo sou mais senĂŁo o torto artĂfice
dessas linhas traçadas a dois e por um
E assim me assino esse uno e esse outro Majnun
que por louca paixĂŁo da noite Ă© seu partĂcipemesmo sem Laila veste a dor e se vislumbra
nos lobos do deserto donos da penumbra
Ao Tempo
Levanta o pano, Ăł tragador das eras,
A cena mostra das fatais desditas,
Pois que no giro das paixÔes que incitas
Tragar venturas, vorazmente, esperas.Do vĂĄrio mundo que sĂł nutre feras,
Co’a torva dextra lhe desvia as ditas.
Solta das asas as TentaçÔes malditas,
Os filhos traga, que indolente geras.Leva de rojo, c’o decretado gume,
Planos que traças ao profundo Averno.
Acende e apaga da RazĂŁo o lume!Ă Tempo, Ăł Tempo, regedor do Inferno!
Louvem-te as FĂșrias, de quem tens ciĂșme,
Que só adoro as decisÔes do Eterno.
O Homem Congrega Todas as Espécies de Animais
HĂĄ tĂŁo diversas espĂ©cies de homens como hĂĄ diversas espĂ©cies de animais, e os homens sĂŁo, em relação aos outros homens, o que as diferentes espĂ©cies de animais sĂŁo entre si e em relação umas Ă s outras. Quantos homens nĂŁo vivem do sangue e da vida dos inocentes, uns como tigres, sempre ferozes e sempre cruĂ©is, outros como leĂ”es, mantendo alguma aparĂȘncia de generosidade, outros como ursos grosseiros e ĂĄvidos, outros como lobos arrebatadores e impiedosos, outros ainda como raposas, que vivem de habilidades e cujo ofĂcio Ă© enganar!
Quantos homens nĂŁo se parecem com os cĂŁes! Destroem a sua espĂ©cie; caçam para o prazer de quem os alimenta; uns andam sempre atrĂĄs do dono; outros guardam-lhes a casa. HĂĄ lebrĂ©us de trela que vivem do seu mĂ©rito, que se destinam Ă guerra e possuem uma coragem cheia de nobreza, mas hĂĄ tambĂ©m dogues irascĂveis, cuja Ășnica qualidade Ă© a fĂșria; hĂĄ cĂŁes mais ou menos inĂșteis, que ladram frequentemente e por vezes mordem, e hĂĄ atĂ© cĂŁes de jardineiro. HĂĄ macacos e macacas que agradam pelas suas maneiras, que tĂȘm espĂrito e que fazem sempre mal. HĂĄ pavĂ”es que sĂł tĂȘm beleza, que desagradam pelo seu canto e que destroem os lugares que habitam.
Dia dai-me a sabedoria de Caetano nunca ler jornais a loucura de Glauber tem sempre uma cabeça cortada a mais a fĂșria de DĂ©cio nunca fazer versinhos normais
FĂșria nas Trevas o Vento
FĂșria nas trevas o vento
Num grande som de alongar,
NĂŁo hĂĄ no meu pensamento
SenĂŁo nĂŁo poder parar.Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.
MĂŁe, Eu Estou tĂŁo Cansado
MĂŁe, eu estou tĂŁo cansado e sinto nos ossos
o chamamento da ĂĄgua, o chamamento sibilino
que se confunde com o ranger das portas das casas
onde jamais voltarei: venha veloz o sono capaz
de me resgatar e que dentro dele se perfilem
as sombras e os gestos, exército dos meus medos
mais secretos, temores enrodilhados na roupa hĂșmida
das camas. MĂŁe, a luz nĂŁo se demora no meu quarto,
morre nas corolas das flores que trouxeste
para o riso nĂŁo murchar, e eu fico doente sĂł de olhar
os muros onde a hera Ă© espiral de espanto, raiz
de uma enfermidade latente. NĂŁo voltarei
Ă s actas do desespero, que sĂŁo sombrias e magras
como os corpos dos amantes que definham sobre a
[areia
na fĂșria da marĂ©, com uma gramĂĄtica de murmĂșrios
escondida na solidĂŁo branca das dunas, mĂŁe.
Rosas Vermelhas
Que estranha fantasia!
Comprei rosas encarnadas
Ă s molhadas
dum vermelho estridente,
tĂŁo rubras como a febre que eu trazia…
– E vim deitĂĄ-las contente
na minha cama vazia!Toda a noite me piquei
nos seus agudos espinhos!
E toda a noite as beijei
em desalinhos…A janela toda aberta
meu quarto encheu de luar…
– Na roupa branca de linho,
as rosas,
sĂŁo coraçÔes a sangrar…Morrem as rosas desfolhadas…
Matei-as!
Apertadas
Ă s mĂŁos-cheias!Alvorada!
Alvorada!
Veio despertar-me!
Vem acordar-me!Eu vou morrer…
E nĂŁo consigo desprender
dos meus desejos,
as rosas encarnadas,
que morrem esfarrapadas,
na fĂșria dos meus beijos!
Na sua fĂșria de masculinização, a mulher começou por nos encantar, e, estejamos certos, hĂĄ-de acabar por nos bater.
Canção tão simples
Quem poderĂĄ domar os cavalos do vento
quem poderĂĄ domar este tropel
do pensamento
Ă flor da pele?Quem poderĂĄ calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que nĂŁo se diz
a fĂșria em riste
do meu paĂs?Quem poderĂĄ proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pĂĄtria viĂșva
a dor que passa?Quem poderĂĄ prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que sĂŁo precisas?
O Dote que se Oferece no Horror
o dote que se oferece no horror
dessa cidade Ă© mais uma manobra difĂcil
das marés viradas em nossos pulsos
tal o esforço da visĂŁo da nĂ©voasonhos e vibraçÔes tĂ©cnicas estĂŁo aĂ
para tudo que seja atual
em frontes douradas pois ficou vazio
o que Ă© pesado como o antigo absurdoseu desejo excepcional ainda dentro
do medo com a mudança recente de vultos
interessados na superfĂcie do arrependimentomas chegou ao fim a fĂșria da indecĂȘncia
e as unhas vistas entre os ossos podem matar
elas conhecem o que pode ser morto de novo
Viagem
Ă o vento que me leva.
O vento lusitano.
Ă este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
Ă esta fĂșria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar…
Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na ĂĄrvore do meu sanguePergunta-me
se o vento nĂŁo traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fĂșria
e o tropel de mil cavalosPergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersĂŁo do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mĂŁo descrenteQualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifråvel
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer