Dói-me a Vida aos Poucos
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo,
Longos
2409 resultadosMúsica e Literatura
No México, enquanto escrevia «Cem Anos de Solidão» — entre 1965 e 1966 -, só tive dois discos que se gastaram de tanto serem ouvidos: os Prelúdios de Debussy e «A hard day’s night» dos Beatles. Mais tarde, quando por fim tive em Barcelona quase tantos como sempre quis, pareceu-me demasiado convencional a classificação alfabética e adoptei para minha comodidade privada a ordem por instrumentos: o violoncelo, que é o meu favorito, de Vivaldi a Brahms; o violino, desde Corelli até Schõnberg; o cravo e o piano, de Bach a Bartók. Até descobrir o milagre de que tudo o que soa é música, incluídos os pratos e os talheres no lava-loiças, sempre que criem a ilusão de nos indicar por onde vai a vida.
A minha limitação era que não podia escrever com música porque prestava mais atenção ao que ouvia do que ao que escrevia, e ainda hoje assisto a muito poucos concertos porque sinto que na cadeira se estabelece uma espécie de intimidade um pouco impudica com vizinhos estranhos. No entanto, com o tempo e as possibilidades de ter boa música em casa, aprendi a escrever com um fundo musical de acordo com o que escrevo.
O Sofrimento do Hipócrita
Ter mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão, é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cócegas com o punhal, por açúcar no veneno, velar na franqueza do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Causa náuseas beber perpétuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e há momentos de enjôo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento. Engolir essa saliva é coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. Há um eu desmedido no impostor.
Aniversário
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho… )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Confiança Audaz
Há um momento na aprendizagem de cada homem em que este chega à convicção de que a inveja é ignorância; que a imitação é suicídio; que ele tem que se tomar a ele próprio tanto para melhor, tanto para pior, como a sua parcela; que embora o universo esteja cheio de coisas boas, nenhuma semente de milho nutritiva chegará a ele senão através da labuta que ele ofereça nesse lote de terreno que lhe foi dado para cultivar. O poder que reside nele é novo na natureza, e nenhum outro senão ele sabe o que é que pode fazer, e não o saberá até que o tente. Não é por nada que uma cara, um carácter, um facto, causa muito impressão nele, e outros não têm qualquer efeito. Esta escultura na memória não existe sem uma harmonia pré-estabelecida. O olho foi colocado onde um raio deve cair, de forma a testemunhar esse raio em particular. Nós apenas nos exprimimos pela metade, e temos vergonha da ideia divina que cada um de nós representa. Podemos ser de confiança e de motivações boas e proporcionais, e darmo-nos fielmente, mas Deus não terá o seu trabalho mais manifesto feito por cobardes. Um homem está seguro e tranquilo quando coloca todo o coração no seu trabalho ou outra actividade e faz o seu melhor de acordo consigo próprio;
Pastelaria
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escuraAfinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócioAfinal o que importa não é ser novo e galante
– ele há tanta maneira de compor uma estante!Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vícioNão é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parolaQue afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que comeQue afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudoNo riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
A Realidade é Mais Poderosa que Qualquer Literatura
Eu costumava pensar que podia compreender tudo e exprimir tudo. Ou quase tudo. Eu lembro-me que quando estava a escrever o meu livro sobre a guerra no Afeganistão, Zinky Boys, que fui ao Afeganistão e eles mostraram-me algumas das armas estrangeiras que tinham sido capturadas aos combatentes afegãos. Fiquei espantada com a perfeição das suas formas, e quanto perfeitamente um pensamento humano poderia ser expresso. Havia um oficial ao meu lado que disse: “Se alguém pisar esta mina italiana que você diz que é tão bonita que parece uma decoração de Natal, não restaria mais nada deles além de um balde de carne. Você teria que raspá-los do chão com uma colher. ” Quando me sentei para escrever isto, foi a primeira vez que eu pensei, “Isto é algo que devo dizer?” Eu tinha sido educada na grande literatura russa, pensei que poderia ir muito muito longe, e então escrevi sobre aquela carne. Mas a Zona – é um mundo à parte, um mundo dentro do resto do mundo – e é mais poderoso do que qualquer coisa que a literatura tenha a dizer.
Sentes, Pensas e Sabes que Pensas e Sentes
Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada.Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Política de Interesse
Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.
A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.
A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.
À escalada sobem todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos (…) todos querem penetrar na arena,
O Mal das Doutrinas Religiosas
– Bem, o que até agora me pareceu mais interessante foi verificar que a grande maioria de todas essas crenças parte de um facto ou de uma personagem de relativa probabilidade histórica, mas todas evoluem rapidamente para movimentos sociais subordinados e enformados pelas circunstâncias políticas, económicas e sociais do grupo que as aceita. Ainda está acordada?
Eulalia assentiu.
– Uma boa parte da mitologia que se desenvolve à volta de cada uma destas doutrinas, desde a liturgia até às normas e tabus, provém da burocracia que é gerada à medida que evoluem e não do suposto facto sobrenatural que lhes deu origem. A maior parte das anedotas simples e bonançosas, um misto de senso comum e folclore, e toda a carga beligerante que conseguem desenvolver provém da interpretação posterior daqueles princípios, quando não tendem a desvirtuar-se, nas mãos dos seus administradores. A questão administrativa e hierárquica parece ser a chave da sua evolução. A verdade é revelada em princípio a todos os homens, mas depressa aparecem indivíduos que se atribuem o poder e o dever de interpretar, administrar e, nalguns casos, alterar essa verdade em nome do bem comum, estabelecendo para isso uma organização poderosa e potencialmente repressiva.
Indiferença em Política
Um dos piores sintomas de desorganização social, que num povo livre se pode manifestar, é a indiferença da parte dos governados para o que diz respeito aos homens e às cousas do governo, porque, num povo livre, esses homens e essas cousas são os símbolos da actividade, das energias, da vida social, são os depositários da vontade e da soberania nacional.
Que um povo de escravos folgue indiferente ou durma o sono solto enquanto em cima se forjam as algemas servis, enquanto sobre o seu mesmo peito, como em bigorna insensível se bate a espada que lho há-de trespassar, é triste, mas compreende-se porque esse sono é o da abjecção e da ignomínia.
Mas quando é livre esse povo, quando a paz lhe é ainda convalescença para as feridas ganhadas em defesa dessa liberdade, quando começa a ter consciência de si e da sua soberania… que então, como tomado de vertigem, desvie os olhos do norte que tanto lhe custara a avistar e deixe correr indiferente a sabor do vento e da onda o navio que tanto risco lhe dera a lançar do porto; para esse povo é como de morte este sintoma, porque é o olvido da ideia que há pouco ainda lhe custara tanto suor tinto com tanto sangue,
A Memória da Leitura
Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões para o lanche que nos obrigavam a levar e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, sobre a nossa cabeça, o sol diminuía de intensidade no céu azul, o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido, tudo isto, que a leitura nos devia ter impedido de perceber como algo mais do que a falta de oportunidade, ela pelo contrário gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que o que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora,
A Vantagem de Ter Pouca Memória
Não há outro homem a quem aventurar-se a falar de memória assente tão mal. Pois praticamente não reconheço em mim vestígio dela, e não creio que haja no mundo uma outra tão prodigiosa em insuficiência. Tenho banais e comuns todas as minhas outras qualidades. Mas nesta creio ser singular e muito raro, e digno de por ela ganhar nome e fama.
(…) Em certa medida, consolo-me. Em primeiro lugar porque esse é um mal pelo qual encontrei principalmente o meio de corrigir um mal pior que poderia facilmente ter surgido em mim, ou seja, a ambição, pois é uma falta (a falta de memória) inadmissível para quem se envolve nos negócios do mundo; e porque, como mostram vários exemplos semelhantes do andamento da natureza, esta de bom grado fortaleceu em mim outras faculdades na medida em que aquela se enfraqueceu, e facilmente eu iria deitando e enlaguescendo o meu espírito e o meu discernimento sobre os rastros de outrem, como faz o mundo, sem exercer as suas próprias forças, se as ideias e opiniões alheias estivessem presentes em mim pelo benefício da memória.
E porque as minhas falas são mais curtas, pois o armazém da memória costuma ser mais bem provido de matéria do que o da invenção;
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Não Há Dor Que Justifique a Fuga
A escuridão, as trevas desesperadas, é esse o círculo terrível da vida do dia-a-dia. Por que é que uma pessoa se levanta de manhã, come, bebe e se deita outra vez? A criança, o selvagem, o jovem saudável, o animal não padecem sob a rotina deste círculo de coisas e actividades indiferentes. Aquele a quem os pensamentos não atormentam, alegra-se com o levantar pela manhã e com o comer e o beber, acha que é o suficiente e não quer outra coisa.
Mas quem viu esta naturalidade perder-se, procura no decurso do dia, ansioso e desperto, os momentos da verdadeira vida cujas cintilações o tornam feliz e que apagam a sensação de que o tempo reúne em si todos os pensamentos relativos ao sentido e ao objectivo de tudo. Podem chamar a esses momentos, momentos criadores, porque parece que trazem a sensação de união com o criador, porque se sente tudo como desejado, mesmo que seja obra do acaso. É aquilo a que os místicos chamam união com Deus. Talvez seja a luz muito clara desses momentos que faz parecer tudo tão escuro, talvez a libertadora e maravilhosa leveza desses momentos faça sentir o resto da vida tão pesada,
O Poeta não é um Pequeno Deus
O poeta não é um «pequeno deus». Não, não é um «pequeno deus». Não está amrcado por um destino cabalístico superior ao de quem exerce outros misteres e ofícios. Exprimi amiúde que o melhor poeta é o homem que nos entrega o pão de cada dia: o padeiro mais próximo, que não se julga deus. Cumpre a sua majestosa e humilde tarefa de amassar, levar ao forno, dourar e entregar o pão de cada dia, com uma obrigação comunitária. E se o poeta chega a atingir essa simples consciência, a simples consciência também se pode converter em parte de uma artesania colossal, de uma construção simples ou complicada, que é a construção da sociedade, a transformação das condições que rodeiam o homem, a entrega da mercadoria: pão, verdade, vinho, sonhos.
Se o poeta se incorpora nessa nunca consumida luta para cada um confiar nas mãos dos outros a sua ração de compromisso, a sua dedicação e a sua ternura pelo trabalho comum de cada dia e de todos os homens, participa no suor, no pão, no vinho, no sonho de toda a humanidade. Só por esse caminho inalienável de sermos homens comuns conseguiremos restituir à poesia o vasto espaço que lhe vão abrindo em cada época,
O Talento na Juventude e na Velhice
Nada menos exacto do que supor que o talento constitui privilégio da mocidade. Não. Nem da mocidade, nem da velhice. Não se é talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas); e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes recíprocamente em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude.
Ser idoso não quer dizer que se seja necessáriamente intolerante e retrógado; e engana-se quem supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a história da ciência e contribuiram para o progresso humano são, em geral, obra dos velhos sábios; e a mocidade literária, negando embora sistemáticamente o passado, é nele que se inspira, até que o escritor adquire (quando adquire) personalidade própria.
(…) A mocidade, em geral, não cria; utiliza, transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem; completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o entusiasmo dos moços;
Valoriza-se mais o Ter que o Ser
A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados económicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer, de forma que todo o «ter» efectivo perde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim, toda a realidade individual tornou-se social e directamente dependente do poderio social obtido.
(…) O espectáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projecto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da actividade dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.
A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espectáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica espectacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente a uma base terrestre.
Não!
Tenho-te muito amor,
E amas-me muito, creio:
Mas ouve-me, receio
Tomar-te desgraçada:
O homem, minha amada,
Não perde nada, goza;
Mas a mulher é rosa…
Sim, a mulher é flor!Ora e a flor, vê tu
No que ela se resume…
Faltando-lhe o perfume,
Que é a essência dela,
A mais viçosa e bela
Vê-a a gente e… basta.
Sê sempre, sempre, casta!
Terás quanto possuo!Terás, enquanto a mim
Me alumiar teu rosto,
Uma alma toda gosto,
Enlevo, riso, encanto!
Depois terás meu pranto
Nas praias solitárias…
Ondas tumultuárias
De lágrimas sem fim!À noite, que o pesar
Me arrebatar de cada,
Irei na campa rasa
Que resguardar teus ossos,
Ah! recordando os nossos
Tão venturosos dias,
Fazer-te as cinzas frias
Ainda palpitar!Mil beijos, doce bem,
Darei no pó sagrado,
Em que se houver tornado
Teu corpo tão galante!
Com pena, minha amante,
De não ter a morte
Caído a mim em sorte…
Caído em mim também!
Olinda
(Do alto do mosteiro, um frade a vê)
De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência.Limpeza tal só imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.Quando a luz é muito intensa
é quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé: