O que Poderá Ver quem já da Vista Cegou?
Ante Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábeda é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n’água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amaram
como males lhe causaram
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidarom.A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tão mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam
que o dia que não se viam,
se via na saudade
o que ambos se queriam.Algumas horas falavam,
andando o gado pascendo;
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
pequena e, tinha cuidado
de guardar melhor o gado
o que lhe Crisfal dizia;
mas, em fim, foi mal guardado;Que, depois de assim viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem pera mor dor,
em fim se houve de saber
por Joana,
Passagens sobre Mágoa
243 resultadosMas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas.
Os Descrentes
Nunca encontrei um descrente, apenas desvairados inquietos… é assim que é melhor tratá-los. São pessoas diferentes, não se percebe bem o que são: tanto os grandes como os pequenos, os ignorantes como os cultos, mesmo a gente da classe mais simples, tudo neles é desvario. Porque passam a vida a ler e a interpretar e depois, fartos da doçura livresca, continuam perplexos e não conseguem resolver nada.
Há quem se disperse, de maneira que não consegue atentar em si mesmo. Há quem seja rijo como pedra, mas no seu coração vagueiam sonhos. Há também o insensível e fútil que só quer gozar e ironizar. Há quem só tire dos livros florinhas, e mesmo elas consoante a sua opinião, e há nele desvario e falta de perspicácia. E digo mais: há muito tédio.
O homem pequeno é necessitado, não tem pão, não tem com que sustentar os filhos, dorme na palha áspera, mas tem o coração leve e alegre; é pecador e malcriado, mas mantém na mesma o coração alegre. E o homem grande farta-se de comer e beber, senta-se num montão de ouro, mas tem sempre a mágoa no coração. Há quem domine as ciências mas não se livre do tédio.
É a mensageira da saudade, é o relicário da prece, é a cristalização da mágoa. É imortal, porque deriva da alma. É a água que não seca, a lágrima, água do coração – salgada porque vem de um oceano sem praias, que é o desespero, estrela porque demanda o céu.
Mais Triste
É triste, diz a gente, a vastidão
Do mar imenso! E aquela voz fatal
Com que ele fala, agita o nosso mal!
E a Noite é triste como a Extrema-Unção!É triste e dilacera o coração
Um poente do nosso Portugal!
E não vêem que eu sou…eu…afinal,
A coisa mais magoada das que o são?!…Poentes de agonia trago-os eu
Dentro de mim e tudo quanto é meu
É um triste poente de amargura!E a vastidão do Mar, toda essa água
Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa!
E a noite sou eu própria! A Noite escura!!
Dorme sobre meu seio, Sem mágoa nem amor… No teu olhar eu leio O íntimo torpor De quem conhece o nada-ser De vida e gozo e dor.
Amor
Tu acendeste-me o lume,
Naquela tarde de frio. E do jardim,
Solitário e sombrio,
Vinha até mim
Um suave perfume
De goivos a morrer.Sobre a cidade calma,
As nuvens, uma a uma,
Como flocos de espuma,
Passavam a correr.Era uma tarde, das tardes mais frias!
E as coisas não me sorriam.
Somente,
Doente,
Tu me sorrias.Na vidraça, como gelo,
Soluçaram gotas de água.
Afaguei o teu cabelo,
Com alegria e com mágoa.Era uma tarde sombria,
De luz bem singular.
Tarde tão fria,
Até parecia
Que tudo ia gelar.
Destino
Aquela voz era intranqüila. Trago-a
No ouvido ainda ininterruptamente:
Voz de alma que sofreu, voz de vivente,
Desoladora e trêmula de mágoa.Era o rio da Vida; a água paciente
Que, arrastando calhaus, de frágua em frágua
Ora beijava a sombra na corrente,
Ora abraçava o Sol com os braços de água.Deus te leve, água pura e fresca!… A treva
Não te interrompa a marcha transitória,
Porque o Destino ingrato que te levaPara o vale florido ou o amplo deserto,
É o mesmo que me arrasta o passo incerto
Para o despenhadeiro ou para a Glória.
Parto-me desses Olhos Graciosos
Bem pode, Sílvia minha, qualquer serra
tirar a estes meus olhos sua glória,
qualquer monte terá de mim vitória,
qualquer pequeno espaço, enfim, de terra.Mas contra um pensamento fazem guerra,
que traz em si pintada vossa história,
e quanto mais contrastes, mais memória
conserva um coração que vos encerra.Parto-me desses olhos graciosos,
mas por eles vos juro, que mudança
se não veja nos meus eternamente,Que a mágoa de os ver ficar chorosos
estímulo será para a lembrança
de quem se vê de vós viver ausente.
Juízo
Quando, nos quatro ângulos da Terra,
Troarem as trombetas ressurgentes,
Despertadoras dos mortais dormentes,
Por onde um Deus irado aos homens berra:Prontos, num campo, em apinhada serra,
Todos nus assistir devem viventes
Ao Juízo Final e ver, patentes,
Seus delitos, que um livro eterno encerra.Então, aberto o Céu, e o Inferno aberto,
Todos ali verão: e a sorte imensa
Duma mágoa sem fim, dum gozo certo.Verão recto juiz pesar a ofensa
Na balança integral, e o justo acerto,
Dando da vida e morte igual sentença.
Dói-me a Vida aos Poucos
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo,
Mas se eu pudesse, a mágoa que em mim chora, contar, não a chorava como agora, irmãos, não a sentia como sinto!
O Segredo é Amar
O segredo é amar. Amar a Vida
com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
ouvir os sons em cada voz
e ver todos os céus em cada olhar.Amar por mil razões e sem razão.
Amar, só por amar,
com os nervos, o sangue, o coração.
Viver em cada instante a eternidade
e ver, na própria sombra, claridade.O segredo é amar, mas amar com prazer,
sem limites, fronteiras, horizonte.
Beber em cada fonte,
florir em cada flor,
nascer em cada ninho,
sorver a terra inteira como o vinho.Amar o ramo em flor que há-de nascer,
de cada obscura, tímida raiz.
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis.Amar o tronco, a folha verde,
amar cada alegria, cada mágoa,
pois um beijo de amor jamais se perde
e cedo refloresce em pão, em água!
Alma Minha Gentil, que te Partiste
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.Se lá no assento Etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.E se vires que pode merecer-te
Algũa cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Esqueço-me das Horas Transviadas
PASSOS DA CRUZ
Esqueço-me das horas transviadas
o Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros…
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco… Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convésNo meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância…
Aqueles que nos magoaram fizeram apenas o que sabiam fazer, em função das condições de suas vidas. Se você não perdoar, permitirá que essas mágoas antigas continuem a dominá-lo.
Hino à Dor
Sorri com mais doçura a boca de quem sofre,
Embora amargue o fel que os seus lábios beberam;
É mais ardente o olhar onde, como um aljofre,
A Dor se condensou e as lágrimas correram.Soa, como se um beijo ou uma carícia fosse,
A voz que a soluçar na Desgraça aprendeu;
E não há para nós consolação mais doce
Que o regaço de quem muito amou e sofreu.Voz, que jamais vibrou num soluço de mágoa,
Ao nosso coração nunca pode chegar…
Mas o pranto, ao cair duns olhos rasos de água,
Torna mais penetrante e mais profundo o olhar.Lábio, que só bebeu na fonte da Alegria,
É frio, como o olhar de quem nunca chorou;
A Bondade é uma flor que se alimenta e cria
Dos resíduos que a Dor no coração deixou.Em tudo quanto existe o Sofrimento imprime
Uma augusta expressão… mesmo a Suprema Graça,
Dando aos versos do Poeta esse esmalte sublime
Que torna imorredoira a Inspiração que passa.É por isso que a Dor, sem trégua nem guarida,
Opiário
Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro
É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
Sofredora
Cobre-lhe a fria palidez do rosto
O sendal da tristeza que a desola;
Chora – o orvalho do pranto lhe perola
As faces maceradas de desgosto.Quando o rosário de seu pranto rola,
Das brancas rosas do seu triste rosto
Que rolam murchas como um sol já posto
Um perfume de lágrimas se evola.Tenta às vezes, porém, nervosa e louca
Esquecer por momento a mágoa intensa
Arrancando um sorriso à flor da boca.Mas volta logo um negro desconforto,
Bela na Dor, sublime na Descrença.
Como Jesus a soluçar no Horto!
In Memoriam
Ao meu morto querido
Na cidade de Assis, “il Poverello”
santo, três vezes santo, andou pregando
Que o Sol, a Terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! — E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbra foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!“Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água…”
Ah! Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoaBatida por furiosos vendavais!
— Eu fui na vida a irmã de um só Irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!